quinta-feira, 13 de outubro de 2022

O Socialista Burguês nas Eleições de 2022 - Parte Final

 


Continuando...

              Eu o interrompi de pronto: eu, candidato? Ele me olhou com deboche, balançou o seu livro e apontou para a capa, esfregando o dedo em cima do nome de Marx. Pelo que eu entendi, tive que deixar escapar um sorriso. Não gostou da minha reação, percebi logo. Andou de um lado para o outro algumas vezes, até que me olhou dentro dos olhos. Vou confessar que me arrepiei. De repente sorriu, meteu a mão dentro do bolso e tirou uma foice e martelo cruzados, impresso numa folha A4, bem amarelada. Tentei arriscar algum comentário, mas nem me deu bola. Joguei palavras ao vento.

           - Pensa bem. Estamos aqui, frente a frente, discutindo o futuro do país.

              Interrompi-o perguntando: Brasil? Mas ele me ignorou e continuou o seu discurso.

            - Esse país grandioso. Grandioso ainda não. Vai, com certeza, ser em breve. Já estávamos articulando com os camaradas da União Soviética. Vamos fazer tremular – ou tremer? – (colocando o dedo indicador na bochecha, pensativo) nos mastros em cada ponto do território a bandeira, que não é essa atual, com a foice e o martelo. Meu camarada, nas próximas eleições vamos até importar um candidato para concorrer à presidência da República. Só tem aí candidato fraco!

             Olhei-o sem entender o que estava dizendo. Um candidato importado, é demais. Mas não quis interrompê-lo.

          - Esse candidato é imbatível! – falou transbordando emotividade - Sabe... Mas na realidade ainda não consegui definir entre dois. Quero convidar, um deles, pessoalmente. Tenho certeza de que não vai haver recusa. A ideia é transformar essa terra desgovernada em mais um estado soviético.

          Aí eu ri. Tentei colocar a mão na boca para esconder o riso, mas não teve jeito, acabei gargalhando. Mas o cara não perdeu a pose. Com o olhar direcionado acima da minha cabeça - me lembrei até de um político já falecido - continuou, depois de uma pausa, a discorrer sorridente sobre o seu devaneio.

           - Você já pensou no mais novo estado soviético? Essa nossa terra nunca esteve em boas mãos. Eu não sei o que Che veio fazer aqui. Será que acertou com algum partido de direita? Virou a casaca? Sabe alguma coisa a respeito? (Balancei a cabeça negando. Estava assustado.)  E o Abraão? (Neguei também) É outro de direita radical. Na realidade são dois: o amigo de Moisés e o outro eu só sei que é do hemisfério norte. Tudo gente que quer atrapalhar a nossa política. Falam em progresso. Eu não, falo em trabalho. É o trabalho que vai nos fazer crescer. Temos que colocar calos nas palmas das mãos!

          Deu uma pausa e me apresentou as suas mãos. Olhei para tentar encontrar algum calo, mas não achei nenhum. De tão lisas, pareciam envernizadas.

            - Cada cidadão - continuou empolgado - tem que dar a gota do seu suor. Tem que pensar na grandeza da pátria. Pensar em colocar comida na mesa dos camaradas do partido. É isso! Dividir a renda. Quem precisa viver com muito? Tem que ter essa consciência. Olha só que grandeza de justiça. Isso até me emociona. Estou arrepiado. Olha só.

          Arregaçou as mangas e me mostrou um dos braços. Olhei, olhei e não vi nada arrepiado, além de algumas tatuagens. Percebi ainda que o braço estava depilado. Não entendi. Depois observei o seu rosto e notei que as sobrancelhas tinham sido aparadas. A barba continuava vasta, só deixando os olhos à mostra. Ali estava o meu amigo socialista. Marxista até debaixo d’água, assim ele sempre se auto intitulou.

          A alguns metros à frente, estava a sua moto. - Eu já tinha me afastado com medo. - De cara fiquei impressionado. Quase zero quilômetro. Devia ter sido bem cara. Depois de olhar bastante, me encorajei e perguntei por quanto tinha comprado. Falou rápido e entre dentes que não deu para entender. Insisti, mas enrolou do mesmo jeito. Olhei-o com um olhar que demonstrava decepção e tristeza. Deixei tão claro a minha suspeição, que ele imediatamente se justificou.

           - Gostou da moto? É de um camarada! Grande amigo! E foi um presente dado por muitos camaradas. Lembra do Mao? Contribuiu também. Sabe como é... (pausa) Como ele precisa se deslocar de uma cidade para outra, presentearam-no com esse mimo. Irmão é assim.

           Olhei-o por algum tempo, mudo. Procurei estudar aquela figura a poucos metros de mim. Nem superficialmente e muito menos profundamente consegui fazer uma avaliação daquele ser naquele momento. Já o conhecia de longa data. Sabia-o um liquidificador de ideias, um “maluco beleza”, mas naquela hora, duvidei da sua sanidade. A desonestidade que aflorou com tanta impetuosidade, era real? Ou estava fantasiando?  Com muitos adjetivos eu podia envolvê-lo, mas chamá-lo de desonesto me doía só em pensar. Como um sujeito desequilibrado, mas fiel aos seus princípios tivesse mudado tanto? Não podia acreditar. Enquanto envolvido em meus pensamentos ei-lo me acenando, passando quase no meu nariz, um santinho. Aquele que todo candidato está sempre portando. Ele passava tão rápido, que não conseguia identificar o que estava ali naquele pequeno papel retangular. Fiquei tão tenso que acabei segurando o seu braço pelo pulso. Ele sorriu e pegou o santinho com a outra mão. Depois virou-o e quase encostou-o no meu nariz. Sem demonstrar qualquer tensão, peguei o pedaço de papel e olhei com atenção. Não acreditei no que estava vendo. Estava lá. Eleição para 2022. Vote em Stalin. Ou Lenin. Embaixo das fotos uma frase que dizia: Essa é a juventude que o Brasil precisa. Depois, em letras bem pequenas, uma frase: para deputado, vote em mim. Só que não tinha o seu nome. Pensei em comentar, mas quando levantei a cabeça, ele já saía voando com a sua moto, ou de algum camarada. De repente, mais alguns santinhos vieram voando. Peguei dois. Um tinha uma bandeira desenhada. Embaixo tinha um nome grifado: Curdo. O outro santinho apresentava dois candidatos para 2022: presidente, Ulisses e vice Tancredo. Não sabia o que pensar daquilo. Estava boquiaberto. Mas enquanto eu fixava os meus olhos arregalados no santinho, ele veio quase voando na sua moto, pegou o papel da minha mão e sumiu das minhas vistas.     

          Enquanto o meu amigo sumia no horizonte, deixando apenas a poeira para trás, fiquei pensando nas promessas irrealizáveis e insanas que a maioria dos atuais candidatos despeja sobre nós, eleitores perseverantes, mas exaustos. Pensei até nas realizáveis, mas que na maioria das vezes não saem do papel, ou ainda naquelas que saem, mas que consomem uma fortuna e que, quase sempre, não são concluídas. Estamos cercados por um bando de corruptos e caras de pau. Você não identifica qualquer ideologia, nenhuma sinceridade nos discursos rápidos ou até nos longos desses candidatos que vão nos representar, e que só servem para nos saturar

          Não consegui até hoje entender como esse meu amigo só aparece quando se aproximam as eleições. Então, pelo jeito, só vou vê-lo daqui a quatro anos.  E, quem sabe, em algum manicômio.

                                                               fim

 

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