segunda-feira, 25 de julho de 2016

O Catador de Histórias - Parte 3

Continuando...
E lá foi Tião para a labuta. A sua atenção agora estava mais apurada. Os seus olhos pareciam que enxergavam mais. O olfato distinguia qualquer cheiro. Ficou até enjoado, coisa que só aconteceu no início da sua profissão. Parecia que o estômago tinha dado um nó. Estava se achando diferente. E pensou alto: - Realmente agora sou outra pessoa. Estou mi sintindo diferente. Que droga! Me sentindo! Sou poeta e também sou pintor. Tenho sensibilidade. Acho que falei direito: sensibilidade. Os artista são assim mermo. Tenho que ver se é mermo, que se fala. Moreno só fala assim. A convivência com eles é que me faz falar errado. Tenho que me ligar: pensar antes de falar. – Tirou do bolso um lenço velho e cobriu o nariz. Com o seu ancinho improvisado, foi espalhando o lixo.  Vasculhou aquele pedacinho de imundície e não encontrou nada do que ele queria. O que não queria, era o que ia dar para comprar o seu pão de cada dia. Ia alimentar o seu corpo, não o seu ego. Pensou duas vezes e começou a catar o lixo que dava para gerar dinheiro. Antes de jogar dentro de um saco um pedaço de alumínio, pensou: - Ouvi dizer que poeta morre de fome. E pintor também. Tenho que organizar a minha catação. Agora que posso ficar famoso, não posso bater as bota. - O estômago roncou.  Era mais uma manhã que Tião gastava da sua vida. Ele se sentia um gastador de manhãs. Se bem que desde a sua descoberta para as letras e artes plásticas, suas manhãs passaram a feder menos. O seu objetivo de vida era outro. Na realidade, nunca tinha tido um objetivo. Agora se sentia melhor, mas tinha uma coisa que o incomodava: alguém dentro da sua cabeça o acusava de ladrão. Nesse momento sentia um desespero danado, mas aos poucos conseguia se equilibrar novamente. Lutava diariamente contra esse dedo inquisidor. Às vezes gritava para o acusador, que o seu achado não tinha dono e que ele era o seu autor. Ou pelo menos coautor.
           Comeu alguma coisa e pegou novamente o seu ancinho improvisado e voltou a revirar o lixo. Mas a sua cabeça também estava sendo revirada. Interrompeu o que estava fazendo e ficou olhando os amigos de infortúnio. Observou-os durante algum tempo. A sua cabeça fervilhava. Olhava aquilo tudo a sua volta e estava começando a se sentir incomodado. Antes se achava meio lixo, como os amigos, mas naquele momento percebia que nascia outra pessoa dentro de si. Estava se sentindo melhor do que eles. Viu quando Moreno tirou uma garrafa de cachaça, que estava escondida no meio do papelão, no seu carrinho e ofereceu aos amigos. Cada um tomou a sua golada e fez cara feia. Mesmo se achando superior a eles, ficou com água na boca. Olhou-os, mas Moreno ignorou a sua presença. De repente o tal sentimento de superioridade deu uma queda. Perguntou-se do porquê de Moreno não ter lhe oferecido um gole de pinga. Aquilo fez com que se sentisse incomodado. Viu os três conversando animados e ele continuava só. Achou que devia ser por ter se tornado artista. Então preferiu ficar só.
          Mais um dia que ia rolando pela esteira do tempo. E aquele dia não estava sendo bom. Tião pensou, depois de ter virado artista, que fosse ser feliz todos os dias. Mas, com as suas atuais exigências, não estava sendo. Tinha que encontrar alguma coisa que valorizasse mais a sua alma de artista. Olhou para um pedaço de tijolo, pegou-o e colocou debaixo da sua bunda. Ficou sentado olhando para o nada. Estava desanimado. Colocou o seu ancinho improvisado descansando, pegou um pedaço de cabo de vassoura e começou a cutucar o lixo. Pelo jeito não estava procurando nada, apenas espetava o lixo, como se estivesse duelando com um adversário. A sua espada de cabo de vassoura, cravava no peito da raiva e do medo. No fundo sempre se sentiu engolido por aquele mundo podre, mas agora ele podia enfrenta-lo de frente, pois agora tinha arma. E começou a bater mais forte, com receio de ser derrotado. Não podia perder e não ia deixar isso acontecer. Levantou-se e partiu para dentro do seu adversário. Bateu, bateu, bateu... Já estava cansado de tanto bater e o oponente não cair. Os seus movimentos cresceram a ponto de chamar a atenção dos amigos. Os três foram se chegando silenciosamente, para não interromper o que quer que fosse aquilo. Se fosse briga com algum desconhecido, eles iriam ajudá-lo. Mas naquele tipo de luta não sabiam o que fazer. Sentaram-se os três e ficaram apreciando o combate. Tião espetava a sua espada na barriga do lixo e esperava para ver se ia haver alguma reação. Foi espaçando a sua investida, tendo em vista que o seu gás já estava se acabando. Suava em bica. Parecia que ia desmanchar. Estava tão envolvido com o seu duelo, que não percebeu que tinha plateia. Tentou lutar mais um pouco, mas acabou caindo vencido pelo cansaço. Só voltou à realidade quando uma voz soou atrás de si, próxima ao seu ouvido: -Tião, meu brodi! Você istá aprendendo a brigá com ispada?- assustou-se, mas, mesmo cansado, se levantou rapidamente e se deparou com os três amigos olhando para ele. De imediato não conseguiu falar nada, pois o cansaço tinha sugado quase todo o seu ar. A luta tinha sido terrível. E o seu inimigo mesmo atacado infinitas vezes, não morria nunca. Suas forças se multiplicavam feito vírus, quase não dando para os amigos entenderem o que falava. A final respondeu: - Não. Nem sei se luto. E se luto, não sei se é em vão. Os amigos sorriram, mas sem nada entender, e Moreno falou mais um pouco: - Aí brodi! Tô ti achandu meiu macambuzu! Você não podi mais ficá assim não! Você agora é poeta! Você agora é pintô! Iscreve alguma coisa pra genti! Vai que ispanta a tristeza!
          Tião não sabia direito o que responder, mas tentou: - Qualqué hora. Qualqué hora. Vocês vão ficá? Eu tô indo. – pegou os seus pertences, colocou-os em cima do burrinho sem rabo, e foi saindo. Mas até sumir das vistas dos amigos, foi ouvindo um ou outro gritando: - Até amanhã, poeta! Lá vai o nossu pintô! – continuou na sua marcha, sem muita pressa, sem responder verbalmente. Apenas batia com a mão. Quem estivesse próximo dele, ia ver que a sua tristeza tinha temporariamente ficado de canto. Pois sorria e os seus olhos brilhavam, iluminando corpo e alma. Pensou em parar, mas resolveu continuar a sua caminhada, mesmo sabendo que ao chegar em casa, ia voltar a ficar triste. A solidão estava de tocaia no seu barraco.  O único jeito quando chegasse, era tomar uma pinga, cozinhar um miojo e se jogar na tosca cama.
            Tião abriu a porta, acendeu a luz e se jogou numa cadeira. Pensou em tomar banho, mas lembrou-se que não tinha caído água na caixa. Levantou-se, pegou um balde, que tinha guardado cheio, e se lavou como pode. Depois fez o que tinha pensado: tomou uma cana, fez o miojo e foi para a cama. Olhou para o teto do barraco, com vários furos, e se lembrou da mulher. Rapidamente seus olhos se encheram d’água. Não sabia ou pensava que não sabia o porquê dela tê-lo abandonado. Na verdade ela se sentia, há muito tempo, relegada ao abandono. E ele tinha consciência disso. Às vezes tentava mascarar a verdade, mas não tinha como fugir dela. Sabia que tinha feito muitas promessas e não tinha conseguido cumprir nenhuma. Ela então não aguentou, teve coragem e foi embora, levando as crianças. Nem bilhete deixou. Lembrou-se de tudo. Pior que a lembrança não desgrudava nunca. Era sua companheira inseparável de todas as noites. Deitava com ela e acordava com ela. Tião carregava essa tristeza pra cima e pra baixo. Mas nada fazia para mudar esse quadro. De repente deixou que um sorriso aflorasse. Pensou: - Agora sou pintor e poeta! Quem sabe ela volta pra mim! Posso ficar famoso! E famoso tem dinheiro! Mas tenho que ter mais poemas e quadros, sem nomes, pois não quero me sentir um ladrão. - Depois que a palavra, ladrão ecoou dentro da sua cabeça, se lembrou de uma conversa que tinha ouvido, enquanto pegava papelão num supermercado perto, mas não tinha entendido direito, e que era mais ou menos assim: - Você soube da última? Roubaram petróleo! É isso mesmo! Roubaram petróleo! Pode ser que tenham roubado uma fábrica de petróleo! Sei lá! Uma casa de petróleo? Não sei direito. Só sei mesmo é que alguém disse que não deve ser roubo. Falou que já que o petróleo está debaixo da terra, ele não tem assinatura, então pertence a Deus. E com certeza Deus nunca vai reclamar. O que o Homem lá de cima tem demais, é riqueza. É ou não é? Então, a limpeza foi feita e está todo mundo limpo. Entendeu? – Tião ficou pensando nisso, como se estivesse tirando um peso das costas. – Então se alguém pega alguma coisa que não tem assinatura, é dono. Foi o que pensei. Então eu estou certo. - ficou pensando nisso quase a noite inteira. Quando começou a pegar no sono, o sol já estava passando pelos buracos das paredes do seu barraco. Um raio mais atrevido se instalou no seu olho. Tião começou a se revirar na cama. Mudou-se de lugar várias vezes, mas não adiantou nada. Eram tantos buracos, que parecia que o sol inteiro resolveu se deitar na sua cama. Pobre Tião, não teve outra opção, senão se levantar. Mas antes de lavar o rosto, reclamou do astro rei: - Acho o sol muito egoísta. Porque ele não se levanta sozinho e muda de direção? Penso que ele só procura a mim. A favela toda dorme, mas eu sou o único a tá de pé com ele. Isso é muita sacanagem! – O pensamento de Tião, que já saía pela boca, vinha carregado de revolta. Mas passado alguns segundos, acabou sorrindo e falou, abaixando o tom de voz: - Issu vai mudá! Issu vai mudá! – pegou o que tinha pra pegar e já estava ele a caminho do lixão. De repente parou, rodou nos calcanhares e voltou para casa. Decidiu naquele momento que ia ficar mais um pouquinho no seu barraco. Ia chegar mais tarde no lixão. Sempre foi o primeiro, mas a partir daquele momento não seria mais. Como agora era uma pessoa importante, ia chegar sempre depois dos outros.
              O sol já estava de rachar. Os amigos de Tião já estavam no cata-       cata desde, às sete da manhã. A preocupação era clara com a ausência do amigo. Ele sempre foi o primeiro a chegar, mas até o momento não tinha dado as caras. Moreno comentou, com ar de preocupação:
          - Aí, qui será qui aconteceu com nossu brodi? Tô preocupadão!
          - Podi tá doenti. Pegou a febri du musquito. – afirmou Tiziu.
          - Vira essa boca prá lá! Tá gorandu? - falou irritado Ximbica.
         Enquanto os três trocavam ideias a respeito do amigo, não perceberam que Tião estava chegando, arrastando o seu burrinho sem rabo. Só se deram conta da presença dele, quando ouviram um oi, meio murcho. Ninguém ousou falar nada, somente acompanharam, com os olhos, o seu trajeto até um dos seus pontos prediletos. Moreno colocou uma das mãos no ombro de Ximbica e falou, com ar preocupado: - Aí. Num tô gostando nada, nada dissu. U nossu brodi num tá legal. Agora qui tá ficandu famosu, ficô tristi? Num tô gostandu mermo! – o amigo não respondeu, mas balançou a cabeça afirmativamente, dando a entender que concordava com tudo que ele disse.
           Tião parou com o seu carrinho no ponto que sempre parava e observou que o lixo despejado ali, era recente. Pegou o seu ancinho e começou a fazer a sua garimpagem. Papelão tinha bastante. Depois achou um pedaço de cano de cobre e outro de chumbo. Encontrou também um pedaço de uma janela de alumínio. Algum objeto brilhou no meio daquela “lixarada” toda. Com cuidado foi tirando o lixo de cima, até chegar ao objeto. Era um anel com uma pedra azul. Não sabia se era ouro ou qualquer metal sem valor. Mas pegou e colocou no bolso. Mesmo não sendo, no momento, a sua prioridade catar papelão, metal... tinha que garantir o pão nosso de cada dia. Até que esse dia estava sendo bom, pois o seu carrinho já estava bem cheinho. Pensou em parar, mas resolveu garimpar mais um pouquinho. Mal acabou de espalhar uma camada de lixo e um embrulho chamou a sua atenção. Não era pequeno e estava bem amarrado.  Pegou-o com um pouco de medo. – Vai que tem uma bomba aí dentro! – pensou. Com o seu ancinho empurrou o embrulho de um lado e para o outro, se mantendo um pouco afastado. Já que não explodiu, cuidadosamente pegou-o e rasgou o saco plástico transparente que o envolvia. Colocou-o no chão e começou a observá-lo. A principio ficou com medo de ir tirando às várias camadas de folhas de jornal. Podia ter alguma coisa nos seu interior ou ter apenas folhas de jornal. A sua curiosidade estava aguçada. Acabou perdendo o medo e também a paciência. Foi retirando a fita crepe e rasgando o jornal, raivosamente. Mas de repente parou e ficou olhando fixamente para o que surgiu à sua frente. Os seus olhos pareciam que iam pular das órbitas. A voracidade para abrir o pacote, deu lugar a inércia. Foi um bom tempo até voltar a dar sinal de vida. Enquanto continuava com o olhar fixo no interior do embrulho, foi arriando o traseiro até encostar a bunda no seu banco improvisado. Ainda não tinha dado mostra do que ia fazer com o que estava vendo. O seu medo era explícito. A sua pele de coloração amarronzada, tinha ganhado um tom amarelado. Estava desbotado da cabeça aos pés. A sua palidez foi se acentuando. Um suor viscoso foi brotando no rosto e se espalhando pelo corpo. As suas mãos tremiam. O coração saltava dentro do peito, feito cavalo xucro. Teve a sensação que ia desmaiar. Mesmo vivendo numa comunidade, onde a violência era o café da manhã, o almoço e o jantar, mesmo assim nunca tinha passado a mão numa arma de fogo, ainda mais com ela no seu colo. Sentiu um nó na garganta, só em pensar que podia estar carregada. Com os nervos a flor da pele, colocou os dedos em cima dela. – Se estiver carregada? Pode disparar. Tenho que ficar atento. – pensou, enquanto passava as costas da mão na testa. Olhou o tambor e viu que estava cheio de balas. Com cuidado, pegando-o pelo cabo, levantou-o. Nisso caiu um envelope próximo aos seus pés. Parecia uma carta. Pegou o envelope e leu. Tinha um destinatário.
          -Para você.
          Achou estranho e esboçou até um sorriso. Nunca tinha recebido carta na vida. Abriu-o e encontrou dentro uma folha de caderno dobrada. Desdobrou-a e leu, com um par de olhos arregalados.

          - Comprei a arma, mas não tive coragem de usá-la. Ensaiei inúmeras vezes dar um tiro na minha cabeça, mas não consegui. Você vai perguntar, com certeza, o motivo e eu vou dizer: VERGONHA. Isso mesmo, VERGONHA! Mas depois fiquei sem vergonha.
            Continua semana que vem...

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O Catador de Histórias - Parte 2

Continuando...
          - E se eu pintar tudo? Posso arranjar tinta e fazer uma floresta do lado do castelo! Aí todo mundo vai saber que a pintura é minha! Vou voltar pru lixão! A gente sempre acha umas lata com resto de tinta por lá!
          E assim Tião fez: girou nos calcanhares e voltou para o lixão. Os amigos viram quando ele retornou com a sua carroça. Ele passou e não falou com ninguém. Procurou um lugar afastado dos outros catadores. Não foi difícil a sua missão, logo achou uma lata de tinta, mas não soube identificar a cor. Ela estava bem cheia. Não se preocupou em abri-la naquele momento. Depois que chegasse à sua casa, faria isso. Tinha que, de qualquer jeito, achar outras latas. Essa era a sua meta e não desviaria a sua rota em hipótese alguma. – Um pintor que se preze, não pinta com uma cor só!  – pensou, tentando transformar em verdade uma fantasia. E ele foi em frente, na sua busca. Depois de muita procura, Tião recolheu mais algumas latas, com algum resto de tinta, para engordar o seu acervo. Encontrou também alguns pincéis gastos. Achou que aquilo daria para torná-lo um pintor. Um artista plástico. Estava acreditando piamente naquele sonho. Voltou rapidamente para casa. Passou pelos amigos e apenas bateu com a mão.
          O sol já invadia o seu barraco. Tião se espreguiçou e viu as tiras de sol bordando o seu chão. Levantou-se rápido e pensou logo no dia que ia ter: um dia dedicado ao seu quadro. Não ia para o lixão. Nem pensou em tomar café, pegou a tela e prendeu-a na sua única parede que ainda estava sem buracos. Pegou as latas de tinta e foi abrindo uma a uma. Encontrou na primeira, a única que estava completamente cheia, uma cor parecida com azul. Não soube identificar que azul era aquele. Encontrou nas outras latas um pouco de verde, de vermelho, de branco e muito pouco mesmo de marrom.  Entusiasmou-se ao ver o verde. Ia fazer logo o seu gramado. Pegou uma trincha e passou em toda a parte que estava sem tinta. Achou meio estranho, mas mesmo assim se sentiu orgulhoso da sua primeira obra. O gramado estava pronto. Só não sabia como ia colocar as árvores.
         - Como é que vou colocar as árvores agora? Ainda tem boi, cavalo, cabrito pra entrar aí também! E a cachoeira?
          Ficou pensando alto. Falava com a tela, esperando que ela respondesse alguma coisa a ele. Quem sabe uma sugestão. Andava de um lado para o outro sem encontrar saída. Depois de muito peregrinar diante da tela, lembrou-se de umas revistas. Quem sabe não encontraria algumas paisagens. Começou a desfolhar as revistas. Foram várias. Não sabia o porquê de guardar todas àquelas revistas, já que nunca lia nenhuma. Finalmente encontrou alguma coisa que o agradou: uma floresta, com uma imensa cachoeira ao fundo. Os seus olhos encheram-se d’água. Só não escorreu, feito a água da cachoeira. Mas lá estava ele diante da solução para o término da sua obra. Já estava realmente se achando o pai daquele quadro. E lá foi ele com um pincel em uma das mãos e na outra o recorte da revista. Prendeu-o na parede, ao lado da tela. Focou olhando de um para o outro. Finalmente resolveu meter tinta no quadro. Não pensou duas vezes: meteu o pincel na lata de tinta branca e foi fazer a sua cachoeira. Não sabia que era tão fácil pintar. Com apenas uma pincelada fez a sua queda d’água. Depois parou um pouco, analisando a obra. Pensou na mata. – Como fazer? O gramado já está verde. A floresta também é verde. O que fazer? Só se fizer a minha em azul! Vai ficar diferente e bonita! – e lá foi ele pincelando todo pedaço que achava que cabia uma árvore. Nunca passou pela sua cabeça que era tão fácil pintar um quadro. Pensou... Pensou... Estava se sentindo importante. No dia seguinte ia levar para mostrar aos amigos.
          Levantou-se bem cedo. Mais cedo do que de costume. Saiu do barraco ainda no escuro. Chegou ao lixão antes do sol. Os amigos ainda não tinham dado as caras. Arrumou um local para colocar a tela. Esticou bem. Estava realmente orgulhoso do seu feito. Pensou que se tivesse dinheiro, daria uma festinha. Pelo menos uma garrafa de pinga. Mas podia deixar isso para depois... Depois que ficasse famoso? Quem sabe? Pensou bastante sobre isso. Sorriu e colocou seu par de luvas. Rodeou a montanha de lixo. Procurou alguma coisa, que não sabia o que era. Ainda estava escuro e isso estava atrapalhando a sua visão. A única claridade vinha de um poste público. Sentou-se em frente ao quadro e ficou apreciando-o, mesmo na penumbra. Depois acendeu um fósforo e foi passando o lume por toda a obra. Sorriu, deixando aparecer uma pontinha de orgulho. Mas enquanto olhava, lembrou-se dos papéis que tinha achado. E se perguntou:
          -Aquilo num parece poesia? Muita gente pensa que eu sou analfabeto, mas se engana. Não sei muito das letra, mas não sou burro. Estudei um pouquinho. Lembro que num livro aparicia umas coisa escrita. A professora dizia que era poesia. Então, isso deve sê poesia mesmo. Não é uma porção de palavras junta? Então... eu posso fazer poesia também! Não posso? Vou ler.
           E lá foi Tião tirando o pedacinho de papel do bolso. Leu novamente.
            - Lábios trêmulos
              Vermelhos e carnudos
              Mãos geladas
              Logo, logo sem vida
              Lábios...
           -Puxa vida! Até que é bonito! Mas não tem dono! Eu podia iscrever mais alguma coisa. Podia. Qualquer coisa, e botava meu nome. Eu ia virar poeta também.  Acho que não é difícil. Ela é minha! – o pensamento falava. Estava tão envolvido com a situação, que ainda não tinha se dado conta que estava pensando em voz alta. Silenciou novamente. Olhava para a “sua” poesia, envaidecido. Já tinha se apropriado dela. Como ele dizia:- Não tem assinatura, é minha. - Leu e releu várias vezes. Entender, entender, não conseguiu. Mas entender para quê? Pegou a sua caneta pela metade e colocou a ponta em cima do papel e ficou esperando. Esperando o quê? – E agora? – se perguntou. Nada saía da caneta. – Droga! Essa porra não escreve sozinha? – esbravejou. Levantou-se e deu um chute no lixo. Deu azar: bicou uma pedra. Saiu pulando feito saci-pererê e xingando aos quatro ventos. Quando a dor abrandou, foi examinar o local da pancada. Não estava sangrando e conseguiu colocar o pé no chão, isso o acalmou. Respirou aliviado. – Ufa! Que sorte! Puxa! Por que a vida é sempre assim? Parece que botam sempre uma pedra no nosso caminho! Pedra! Pedra! E mais nada! – voltou a olhar a poesia e ficou pensando na pedra. De repente falou entusiasmado. – Achei! Achei! Sou poeta! Sou poeta! A pedra! A pedra! – Pegou a sua mini caneta e riscou no cantinho do papel, para saber se ainda tinha tinta. Depois de confirmado, escreveu na linha de baixo: - Pedra. Pedra. – Em seguida, do lado direito do papel, assinou o seu nome. Olhava para a “sua” obra, extasiado. Estava se sentindo orgulhoso. Estava se sentindo o máximo. Agora era pintor e poeta. Olhou para o papel todo amassado e percebeu que não estava muito bom. Achou melhor arranjar outro que estivesse em melhor condição. O único que encontrou, era uma propaganda política. A cara do candidato não o agradou muito, mas como do outro lado estava limpo, pegou aquilo mesmo. E começou a passar a limpo o poema.

             Lábios trêmulos
             Vermelhos e carnudos
             Mãos geladas
             Logo, logo sem vida
             Lábios...
             Pedra. Pedra
                                                 Tião

              Quando terminou de assinar, deixou escapar um sorriso. Estava orgulhoso. Não parava de olhar. Nem percebeu que o sol já estava chegando. Foi despertado do seu êxtase pelos amigos que chegavam juntos com o sol. Ficou em pé para esperá-los. Eram três. Tião deu um bom dia. Como isso não era habitual, eles ficaram assustados com o gesto cortês dele. Responderam, mas não acreditando muito no que ouviram. Tião foi se chegando e antes que falassem alguma coisa, mostrou a tela. Os três ficaram espremidos bem de fronte ao quadro. Olhavam para a tela e depois para Tião. Moreno, um dos seus poucos amigos, olhou de novo para Tião e falou:
           - Tá legal! Manero mermo! Me diz uma coisa brodi: o qui é aquilu pintadu di brancu?
           - É a cachoeira.
           - Legal. Porra cara! Cadê os boi e us cabritu?
           - Eu ia colocar, mas disisti. E si comêssi a grama?
           - É. Faz sintidu. Pudia atrapalhá o seu quadru. Tem também o cocô. Cabrito então, caga muitu!
           Tião Não respondeu ao amigo. Não entendeu muito, o que ele queria dizer. Antes de mostrar a poesia, deixou os três olhando para a sua obra. Estava realmente se sentindo um artista plástico. Tinha ouvido alguém falar sobre artista plástico. Já que estava se sentindo um artista, colocou plástico. De repente tinha alguma coisa a ver com as garrafas pets que catava. Achava que era por causa disso. Já que era pintor, era um artista. E como era catador de garrafas pets, era plástico. Juntou os dois e se sentiu bem. – Será que todos esses artistas plásticos, que tem por ai, já foram catadores de lixo? – ficou se perguntando. Mas agora ele tinha que mostrar a poesia. Chamou os três e esticou o papel na direção deles. Moreno foi o primeiro a pegar. Olhou, mas passou para o outro, apelidado de Ximbica. Olhou também, mas passou para o terceiro, apelidado de Tiziu. Esse leu, pra si, sorriu para Tião e fez um comentário.
          - Aí  brodi! Tá bunitu! Poeta também?
          Tião deu um sorriso meio encabulado, mas respondeu.
          - É. A gente faz o que pode. Vocês gostaram?

          - Num sei! Lê pra gente, Tiziu! – respondeu de pronto Moreno, deixando claro que não tinha intimidade com as letras. O amigo então leu em voz alta. Ao termino da leitura, Ximbica sorriu e esticou o dedão dando o seu ok. Moreno demonstrou estar emocionado. Aquela demonstração dos amigos deixou, novamente, Tião com os olhos cheios d’água. Disfarçou e enxugou, com as costas da mão, os olhos. Em silêncio, cada um foi para o seu canto. Tião permaneceu no mesmo lugar. Dividia o seu olhar entre o papel e o quadro. Não sabia ainda o que ia fazer. Tinha que cuidar do seu sustento, isso era fato. Mas tinha que pensar como ia ser a sua vida dali para frente. Tinha que aliar as duas coisas: o sustento e a garimpagem. Agora ele tinha se transformado também em garimpeiro. Já estava sentindo que a sua pedra preciosa estava ali em algum lugar. A sua fama podia estar enterrada debaixo daquela imundície toda. Olhou de novo para a tela e pensou: - Podia agradar o meu amigo. Será que dá pra botar um boi e um cabrito? Acho que não. De repente ele pode achar que a minha pintura é dele também. Não dá pra dividir a fama. Num vou nem melhorá a minha obra. Segundo morreu de velho. Acho que é isso mesmo que falam. Segundo... Por que segundo? Se soubesse quem falou isso, ia perguntar. Também si é o segundo que morreu de velho, ele deve ter morrido primeiro. Vou voltar para o trabalho, que é o melhor que eu faço. Vou catar o quê? Acho que é o de sempre. Mas vou ficar de olho em qualquer papel amassadinho. Porra! Tenho que tomar cuidado, senão vou falar igual a Moreno e Ximbica! Os dois já falam bem parecidos! Tenho que me ligar. Agora sou poeta.
               Continua na semana que vem...

quarta-feira, 13 de julho de 2016

O Catador de Histórias - Parte 1

- Lá vamos nós juntos em uma nova aventura. Conto com a presença de vocês, todas as semanas, para acompanharem essa estória!

               O CATADOR DE HISTÓRIAS

     - José Timotheo -

                  Uma montanha de lixo olhava para Tião. Não dava para saber se ele devolvia esse olhar com a mesma intensidade. Talvez nem percebesse essa troca de olhares. Era uma coisa instintiva. Somente um olhar de catador de lixo? Será? Podia ser um gesto inconsciente mesmo. Um olhar sem muita importância? Quem sabe? Mas o lixo, não, encarava-o com vontade de devorá-lo. Essa era a sensação que aquela montoeira de rejeitos, passava para quem, com asco, mirasse os olhos do lixão. Parecia que ali estavam todas as imperfeições do homem. Mas Tião não. Quem olhasse para ele, com profundidade, achava que o seu olhar sugeria algo mais. Não vou dizer que aquilo podia ser amor. Estava mais para respeito. Era dali que ele tirava o seu sustento. Era papelão, garrafa pet, latinha de cerveja, de refrigerante, de suco... Qualquer coisa que pudesse ser transformada em dinheiro. Ele se misturava ao lixo, mas não era lixo. Porém pensou muitas vezes que aquele cheiro não ia larga-lo nunca. Parecia que estava pregado não só no seu corpo, mas até na sua alma.
                Tião andava pra baixo e pra cima empurrando o seu “burrinho sem rabo.” Começava cedinho e parava somente ao anoitecer. Ele era assim. Às vezes achava que não ia aquentar aquilo por muito tempo. Pensou até em mudar de vida. Mudar como? Não sabia como. Não conseguia se enxergar fazendo outra coisa. Era a sua vida. Mas pensou que podia ficar doente um dia.  Pois assim era pra todo mundo que vivia daquele jeito. Entretanto, mais na frente, aquela dúvida sumia. Achava estranho nunca ter ficado doente. Nem alergia tinha. Parecia que era de pedra. Muitos catadores iguais a ele já tinham até morrido: uns com complicações pulmonares, outros com infecções intestinais e mais alguns contaminados com substâncias tóxicas. Mas ele continuava ali firme: nem gripe pegava. Ele era de uma época que não se usava nem luva pra mexer no lixo. Se machucava, mas o corte cicatrizava sem precisar de nenhum medicamento. Esse era o Tião. Um dia alguém disse que ele tinha pegado resistência. Não sabia bem o que era isso, mas acabou rindo. Agora até que se protegia. Viu outras pessoas que iam chegando usando luvas, acabou aderindo também. Usava luvas e uma roupa que, aparentemente, afastava-o do contato com o lixo. Às vezes ficava pensando em como era forte e achava que aquela fortaleza toda, veio com ele lá do sertão. 
          Nunca tinha parado, conscientemente, para olhar aquela montoeira de lixo, como se devia olhar. Talvez um jeito mais romântico de ver o que o sustentava.  Então resolveu que hoje ia ser diferente. Com mais de vinte anos catando o que pudesse transformar em dinheiro, nunca tinha olhado aquele conjunto todo. Só olhava mesmo o local onde pudesse encontrar qualquer coisa valiosa que pudesse render alguns trocados.  Começou, então a andar em torno da montanha. De repente achou que o lixo falava com ele. Até música ele ouviu. - Devia ser de uns CDs quebrados – pensou. Mas ela vinha e ia embora. Achou que era de um cd quebrado, que estava coberto de lama. Ficou chateado porque não conseguiu identificar de quem era a gravação. Devia ser por isso que não identificou também a música. Depois ouviu alguém falar alguma coisa. Não conseguiu saber do que se tratava. – Será que estou ficando maluco? – se questionou. Olhou, olhou e achou um papel enrolado. Abriu-o e leu o seu conteúdo.
            -Lábios trêmulos
             Vermelhos e carnudos
             Mãos geladas
             Logo, logo sem vida
             Lábios...
          Não tinha o restante. O papel estava rasgado. Nem o nome do autor dava para saber. – E se achasse o restante? – pensou. Todo papel enrolado, ele iria abrir. Resolveu passar aquele dia procurando. Esqueceu até de catar as coisas que pudesse transformar em dinheiro. Naquele momento, essa busca estava sendo mais interessante. De repente, a mais importante da sua vida. Não sabia o porquê, mas foi o que mudou o trajeto do seu tempo. Nunca tinha tido um dia tão diferente. Não conseguiu achar o restante daquele escrito. Mas encontrou mais um papel amassado com um recado estranho.
          -“Hoje será o meu fim. Não sei se me encontrará com vida. Peço perdão pelo que te fiz passar. Vou te contar quem fez...”
         E o bilhete estava incompleto.  Ficou parado bastante tempo com uma pulga atrás da orelha. Tentou achar o complemento. Foi em vão. – Quem escreveu esse bilhete? - ficou se perguntando por muito tempo. Era sem dúvida uma carta de um suicida. Ele devia estar com a alma atormentada. Coitado. Não chorava há muito tempo, mas naquele momento sentiu uma lágrima deslizar pela face. Os seus poucos amigos, que estavam passando na hora, ficaram curiosos ao vê-lo chorar e foram ao seu encontro.
         - Aí Tião, tá com dor de corno? – pilheriou um. Outro se chegou e falou no pé do ouvido: – Aí meu brodi! O que se passa com tu? – Tião respondeu, ainda enxugando um fio de lágrima. – Foi... Nada de mais. Deixa pra lá. Foi só esse bilhete que achei aqui.
          O amigo pegou o papel amarrotado, fingiu que leu e amassou de novo. Bateu no ombro de Tião e comentou. – Que "brabera" irmão! – saiu rapidinho para que o amigo não percebesse que tinha ficado emocionado, com a emoção dele. Tião vasculhou novamente o local onde tinha encontrado o tal papel, tentando achar o outro pedaço, mas foi em vão. Procurou um lugar para sentar. Tinha que pensar. Lembrou-se de que nunca tinha sentado perto daquele lixo fétido. Sempre se afastava com o seu carrinho e arranjava algum lugar para descansar e comer alguma coisa. Naquele dia estava sendo diferente. Pegou uma cadeira com três pernas, calçou-a com uma lata velha de tinta e ficou olhando para o nada. – O que levaria uma pessoa a tirar a própria vida? – ficou com a pergunta zanzando dentro da cachola. – Podia não ser nada ou muita coisa. – respondeu sem nenhuma convicção.
           Um caminhão grande derramou mais algumas toneladas de lixo, próximo dele. Tião olhou-o e ficou pensando no que poderia encontrar naquela lixarada toda. Não pensou em objetos valiosos. Pela primeira vez, em anos como catador de lixo, direcionou sua atenção apenas para qualquer bolinha de papel amassada, que pudesse trazer o restante do bilhete do suicida. Mas um brilho chamou sua atenção. Se tivesse sido no dia anterior, já tinha ido ao seu encontro, mas agora não. Apenas passou o pé por cima e cobriu-o. Ficou surpreso com o que fez. O olhar de cobiça tinha se afastado. O que tinha mudado no Tião? Retornou para onde tinha sentado e voltou para sua contemplação. Naquele momento, o lixo já não era tão asqueroso. Alguma coisa despencou do alto do monte e veio rolando até próximo aos seus pés. Era um cilindro de lata, com diâmetro, aproximado, de oito centímetros e comprimento de, um metro, mais ou menos. Tião se sentiu um imã. – Como podia um negócio daquele vir rolando, de uma montanha de lixo, e quase tocar no seu pé?  – pensou, deixando escapar um sorriso. Não titubeou, pegou o objeto e abriu-o. Observou que no seu interior, tinha um tecido enrolado. A sua curiosidade não deixou por menos: levou-o a esticá-lo, imediatamente, ali no chão. Ficou surpreso quando apareceu uma pintura. Era uma tela inacabada. Só tinha um castelo, numa montanha. Não sabia dizer se o autor desistiu de continuar, ou se havia perdido. Procurou para ver se tinha nome, mas não achou. Ele sorriu e engoliu um bocado de saliva. Se sentiu satisfeito com o achado. – Aquela pintura podia ser sua. Não tinha nome. Podia botar o seu: Tião. E em letras maiúsculas! – pensou cheio de orgulho. Pelo menos teria alguma coisa que pudesse dizer que era seu. Ficou olhando e imaginando o restante do quadro. Podia não saber pintar, mas sabia pensar. Imaginou uma linda cachoeira. Uma mata bem verdinha. Flores se espalhando em volta do castelo. Um gramado que se perdia na distância. Lembrou que nunca tinha ido a uma montanha. Não devia ser igual aquele morro onde morava. De jeito nenhum. Os casebres pareciam mais com restos de bombardeio. Aquela lembrança inundou a sua alma de tristeza. Tinha ouvido muita gente dizer para se ter orgulho de morar numa favela. Como ter orgulho? Orgulho de quê? A pergunta dava chicotadas na sua cabeça. Alguns que falavam sobre isso, já não eram mais favelados.  Se lembrou de um vizinho. Se não estava enganado, tinha ganhado na loteria. Não era muito, mas foi o suficiente para ele sair no dia seguinte. Ninguém nunca mais ouviu falar dele. Se tivesse orgulho, permaneceria por lá.
           Tião pegou sua caneta, que na verdade era metade de uma, e escreveu o seu nome no cantinho. Enrolou e colocou novamente dentro do cilindro. Lembrou-se de que já tinha visto um quadro e que, no canto direito da tela, trazia o nome de uma pessoa. Não era uma tela de tecido, mas assim mesmo tinha uma assinatura. Sentiu-se orgulhoso. Alguma coisa na sua vida ia ter a sua assinatura.  Não seria um roubo... Tem muita gente assinando e desviando muita grana da nação e...  Não é justificativa, mas Tião achou que alguém não teve coragem de assumir a paternidade daquela obra, logo ele poderia adotar um órfão. Já, em se tratando de propina, muita gente assina, não assume a autoria, mas rouba. Concluiu que não estava roubando. 
           Tião abriu mais uma vez o cilindro e pegou a tela, desenrolou-a e ficou apreciando a obra. Andou de um lado para o outro, várias vezes.
Acabou chamando a atenção dos seus amigos. Curiosos, se aproximaram.
          - E aí Tião, achou o que mais? – perguntou um deles.
          Ele quis responder, mas apenas gaguejou alguma coisa ininteligível. Não conseguiu falar mesmo, apenas abriu mais a tela e mostrou-a. Um quê de espanto desenhou-se nas caras. As trocas de olhares se revezavam. O mutismo geral acabou trazendo tranquilidade para Tião. Conseguiu encarar os amigos e deixar escapar um sorriso. Com a descontração chegando, um deles arriscou perguntar alguma coisa.
          - Tião! Di quem é issu?
          Tião não respondeu de pronto. O seu rosto se iluminou e apontou para o cantinho direito da tela e depois falou baixinho: - É meu. Olha o meu nome. - Um olhar de espanto caiu em cima do quadro. Tião sentiu que ali nascia um artista. Estava realmente se achando um pintor. Já estava acreditando que tinha sido ele o autor daquela tela pela metade. Ia ficar importante. Os amigos iam olhar para ele com respeito. A família não ia mais vê-lo como um fracassado. Só não sabia como convencer a todos que era um pintor. Mas isso ia pensar depois. Nisso foi interrompido por um deles.
          - Meu brodi! Aí! Aonde tá o restu du quadru? Aqui só tem um pedaçu! Faltou tinta? Mas tu pinta mermo? Nunca soubi!
         Tião pensou um pouquinho antes de responder. Não sabia o que dizer. Mas arriscou alguma coisa.
         - Aí Moreno! Sabe que eu também não sabia? Foi de repente! Quando dei conta, tava lá no quadro esse casarão! É um castelo!  Agora tenho que esperar pra  como vai ser o restante do quadro! Já comecei a sacar algumas coisa. Tipo, um tremendo gramado!
         - Também achu! Vai ficá manero! Já pensô? Olha só: botaí uns boizinhu. Cabritu também pega bem! Bota capim. Os boi e os cabritu tem qui pastá!

         Tião sorriu satisfeito. Sentiu firmeza no papo com os amigos. Eles confirmaram a sua autoria da pintura. Isso acendeu um sorriso maior na sua alma. Conversaram bastante tempo. Aí se deu conta que nunca tinha acontecido isso. Quase ninguém falava com ele assim, durante tanto tempo. Agora estavam todos interessados na sua conversa. O bate papo estava tão bom, que se esqueceram da vida. Temporariamente ficaram desligados do lixo. E isso era coisa rara. Mas alguém se lembrou de que tinha que fazer dinheiro e trouxe todo mundo para cair na real. Deram um tchau para Tião, seguido de um tapinha no ombro, acompanhado de um sorriso, e cada um pegou o seu caminho. Tião percebeu que os caras estavam se sentindo importantes, porque achavam que tinham um amigo importante. Sorriu, enquanto enrolava a tela e a colocava dentro do cilindro. Depois resolveu dar um dia de folga para a sua vida. Não ia catar mais lixo nenhum naquele dia. Saiu com o seu achado debaixo do braço e tomou o caminho de casa. Ia pensando. Pensou nos escritos que tinha achado. Nenhum deles tinha nome. Abriu um por um. O do suicida fez com que ele se arrepiasse todo. Rasgou-o e jogou-o para o alto. Olhou os pedacinhos caindo pelo caminho, não percebeu que estava sujando a sua estrada, mas sentiu a sensação de estar se livrando de um lixo. Olhou a sua volta e não se sentiu culpado: todo mundo larga a sua falta de educação por onde anda, logo, ele não ia ser diferente. Continuou a sua caminhada. Um pensamento estranho surgiu na sua mente.
                          ...Continua na semana que vem...

quarta-feira, 6 de julho de 2016