terça-feira, 27 de novembro de 2018

A História de Helô - Parte 8

Continuando...

          Amélia levantou-se e foi em direção à porta, mas antes pegou uma toalha que a madre lhe ofertava. Já sabia para o que era. Enrolou a mão e saiu da sala. No corredor, pensou que fosse desmaiar, a dor era profunda. Sabia que as amigas, mais uma vez, iriam perguntar sobre a mão enrolada. E mais uma vez ia dizer que a queimou no fogão.
          Depois desse incidente, que já fazia três meses, Amélia passeava pelo jardim. A saudade que sentia da menina era muita. Tinha quase certeza que veria Helô, mas tinha que ter cuidado. Aproximar-se, nunca.  Somente à distância. Queria vê-la só por alguns minutos para matar a saudade. Enquanto não via a menina, ficou recordando do que tinha acontecido há três meses. A lembrança daquele dia causou um grande mal estar. Aquele episódio do passado, não tão distante, parecia que estava acontecendo naquele momento. Até a dor na mão ela sentiu. Sabia que tinha que ter muito mais cuidado. Não podia colocar a vida de Helô em risco e, se um dia fosse liberada para se aproximar da menina, teria que manter silêncio. Sabia que alguém escutava as suas conversas, só não sabia quem. Enquanto pensava, viu que Helô estava chegando na outra alameda com a irmã Gertrudes. Procurou esconder-se atrás de um arbusto para não ser notada pelas duas, mas de repente um calafrio percorrer todo o seu corpo, um mal estar apossou-se dela. Teve a sensação que alguém a estava vigiando. O bom senso mandou que se retirasse e assim ela obedeceu, mas antes, discretamente, mandou um beijo para Helô, mesmo ela não vendo.
          A irmã Gestrudes ficou observando Helô. Tinha certeza que alguma coisa a estava incomodando, além da saudade da irmã Amélia. Naqueles dez anos de convívio nunca tinha visto a menina daquele jeito. Estava muito ansiosa. Apresentava também um ar de preocupação e parecia que queria dizer alguma coisa, mas tinha medo de falar. Olhou-a nos olhos, mexeu na sua trança como se estivesse arrumando-a, pegou na sua mão e falou calmamente:
          - Meu anjo, estás me deixando preocupada. Se a madre me perguntar o porquê da tua tristeza, o que é que eu vou responder pra ela, guria?
             Helô deu um sorriso e um beijo na bochecha rosada da irmã e disse:
          - Diz pra ela que eu não estou triste!
          - Como não estás triste? Eu só vejo tristeza nesse rostinho de anjo! Se não é isso, então o que é? Não tens nada pra me dizer?
         - Irmã, triste é claro que estou. Eu sinto falta da mãezinha, mas já estou ficando até acostumada com os sumiços dela. Nem sei mais quantas vezes já aconteceu isso! Já perdi até a conta, sabe? Mas há outra coisa também. Estou com medo e muito assustada.
          - Assustada com o quê?
          - Irmã, eu não sei bem o que é. Eu vou falar, mas não vai achar que estou ficando maluca não! Está bem?
          A irmã Gertrudes olhou-a já com o riso querendo fugir, puxou-a pelas duas tranças e disse:
           - Minha querida, é claro que não vou achar! Desde quando a minha menina vai ficar maluca? De jeito nenhum isto vai acontecer! Mas agora me conta! Estou muito curiosa!
          - Irmã, sabe que eu gosto muito de brincar lá no pomar e eu fui um pouco mais além, mas não é bem isso. Isso não é importante. Lembra-se daquele dia que a irmã me pegou correndo pelo corredor, logo de manhãzinha? Então... sabe o que aconteceu? Não sabe. Vou falar: eu ouvi alguém falando no meu ouvido.
          - Como assim? Tu estás ouvindo vozes? Que imaginação, Helô!
         - Eu não estou inventando, irmã! Ouvi mesmo! E mais de uma vez!
          A irmã Gertrudes pegou novamente as mãos da menina, olhou mais uma vez dentro dos seus olhos e falou pausadamente:
          - Helô, meu anjo, deve ter sido o som do vento nas folhagens! Já aconteceu isto comigo também. Já ouviste o som do vento balançando o cipreste?
         - Já, irmã, parece fantasma. Quando venta muito, eu fico com medo. Eu sei que é o vento, mas fico com medo assim mesmo. As crianças todas ficam com um medo danado!
        - Então! Deve ter sido o vento no cipreste!
       - Só que não estava ventando, irmã! E o cipreste fica lá longe! Eu ouvi dentro do quarto! E depois do lado de fora!
          A irmã ficou fazendo caras e bocas e nada falou. Parece que tentava achar alguma coisa para dizer, mas nada vinha que pudesse esclarecer o que tinha acontecido com a menina. Estava tentando achar uma saída. De repente lembrou-se que realmente no dia não ventava. O que falar? Não sabia mesmo. Alisou o cabelo da menina e, finalmente, arriscou alguma coisa:
          - Helô, minha linda, acho melhor te calares a respeito disso. É prudente te manteres longe desse pensamento. Ninguém deve saber sobre este fato. Acho... pode ter sido o teu anjo da guarda! Isso! O teu anjo da guarda!
          - E ele fala com a gente?
          - Pode falar. Acho que pode. Mas é melhor não falares pra ninguém. É um segredo só nosso.
          - Mais um...
          - Mais um o quê?
          - Nada irmã. É...nada de mais. Sabe Alécia? Nós temos a mesma idade e vamos sair daqui juntas. Estamos pensando em ser cantoras. Esse é o segredo. Agora não é mais, não é?
          - Sermos, foi isto que quiseste dizer, mas, tudo bem. Não escutei nada, nada. Disse alguma coisa, guria?
.......................Continua semana que vem!
 

terça-feira, 20 de novembro de 2018

A História de Helô - Parte 7

Continuando...


Enquanto a madre superiora mantinha-se calada, apenas observando-a, Amélia procurava encontrar alguma coisa que tivesse feito de errado, ocasionando esse chamado. Sabia que teria um tempo suficiente para descobrir, pois a madre ficaria algum tempo bebendo aquele seu momento de sofrimento. Às vezes ela tinha impressão de ver escorrer alguma coisa viscosa do canto da sua boca e, de tempo em tempo, perceber um sorriso, típico das pessoas sádicas, aflorar levemente. Pensou, mas nada veio à mente. De antemão sabia que tinha alguma coisa e que não deveria ser boa, tendo em vista que sempre que alguém era chamado à sua presença era por algum motivo grave, mas pra ela todo e qualquer motivo era sempre grave.
          Amélia estava se sentindo desconfortável ali em frente da toda poderosa. Acabou arriando a cabeça novamente pois não conseguiu, mais uma vez, se manter firme ante aquele par de olhos azuis tenebrosos. Esfregou as mãos nervosamente. Queria falar, mas não conseguia e não  podia. Tinha que esperar. Era só esperar. Depois de algum tempo, num silêncio tumular, a voz da madre ecoou:
          - Amélia! Amélia! Olha-me nos olhos! Isso! Assim está melhor! Você está se sentindo culpada de alguma coisa?
          Amélia balançou a cabeça negando, pois a voz não ousou sair, e voltou a tremer. Sentia mais medo da madre quando ela falava suavemente. Para quem não a conhecia, poderia achar que estava na presença de um anjo de carne e osso, mas estava mais para osso. Um osso duro de roer.  Amélia tinha medo porque a conhecia profundamente e há muito tempo. Sabia muito bem que, por detrás daquela docilidade, daquela cara bonita, ali morava um coração endurecido, um ser que se alimentava do sofrimento alheio. E era nesses momentos de docilidade que a maldade se apresentava com mais evidência. Quando ela falava com rispidez, era mais dócil. Isso era um contrassenso.
          A madre, depois da pergunta, deu a entender que tinha aceitado a negação de Amélia, pois olhou nos seus olhos, balançou a cabeça e deixou à mostra os dentes brancos, num sorriso enigmático. A princípio Amélia achou que ia ser dispensada, entretanto essa falsa esperança aparecia todas as vezes que era chamada. No fundo ela sabia que não ia ser diferente tanto que, mais uma vez, “alguma coisa” soprou na sua orelha dizendo que isso não podia ser verdade. Na verdade era a sua intuição que estava de prontidão. E não deu outra: a madre, não permitindo que o seu sorriso cínico escapasse da boca e sem desviar o olhar de Amélia, esticou a mão direita, abriu a gaveta e retirou uma palmatória. Amélia quase caiu da cadeira. O seu corpo foi sacudido por um forte tremor. Sabia o que a esperava, pois essa não tinha sido a primeira vez e, pelo jeito, não ia ser a última. E com todo o medo que estava sentindo, num esforço hercúleo, conseguiu esticar o braço e colocou a palma da mão para cima. A madre se levantou, bateu levemente com a palmatória na própria mão e em seguida desferiu um golpe violento na mão da menina. O golpe foi tão forte que imprensou a mão de Amélia na mesa. Depois repetiu o gesto, sempre com muito ódio, por mais duas vezes. Amélia não chorou. Aguentou firme. Segurou a lágrima valentemente. Sabia que, se descuidasse e deixasse uma só vir à tona, o castigo seria dobrado. Não recolheu a mão, esperando a madre guardar a palmatória.  E foi ficando com o braço esticado, esperando. A madre parecia que não tinha pressa. Naquele instante o medo de olhar para a mão era proporcional ao medo de olhar para a madre. Sabia que ela estava esperando a sua reação ao olhar para a mão, que com certeza estava mutilada, e iria beber mais aquele instante da sua dor. Era o seu alimento preferido: a dor alheia. Respirou fundo e foi buscar um pouquinho de coragem em algum lugar que ela não sabia onde, porém sempre conseguia essa migalha de força que fazia com que ela olhasse para a mão, mas antes tentou fechá-la e, como das outras vezes, não conseguiu. Finalmente olhou. Olhou e engoliu o choro mais uma vez. A mão estava deformada de tanto inchaço. Não quis encarar a madre, mas sabia que ela estava transbordante de felicidade pela sua dor.
           Alguns minutos, Amélia ficou sem coragem para recolher o braço. A dor era aguda. Não só a mão doía, a alma também e parecia ser maior. Recusava-se a mirar a Madre Joana, mas de repente uma mão forte apertou o seu braço com tanta força, tanta força que a obrigou, de qualquer jeito, a olhá-la cara a cara. Quando os seus olhos se encontraram, Amélia estremeceu de pavor. A megera sorria de satisfação. Dos seus lábios escorriam um líquido viscoso que parecia fel. Amélia estava com um aperto no coração. Teve um pressentimento de que aquele dia era o último da sua vida, mas subitamente a boca que carregava o riso começou a ficar distorcida. As suas feições foram se transformando numa massa disforme. Os seus olhos já estavam injetados de sangue. Num repente ela deu um soco na mesa e destilou todo o seu ódio em cima de Amélia:
          - Sua desgraçada! Você sabe muito bem que não pode ficar falando a toda hora com a menina! E principalmente falar certas coisas! Escuta bem: se soltar essa língua, vocês duas vão dar um passeio sem volta! Estamos conversadas?
          Amélia ficou pálida. A dor na mão, naquele momento, era o que doía menos. Não podia nem imaginar se acontecesse alguma coisa com a menina. Tinha que se calar e se afastar de Helô para não prejudicá-la. Ela era a única razão da sua vida. Precisava pagar o preço do afastamento para preservá-la. Mais uma vez não conseguiu falar nada, apenas balançou a cabeça afirmativamente. Então a madre, já mais calma, continuou no seu discurso:
          - Escuta bem. Olha pra mim. Você não vai perder uma palavra que vou dizer. Grave isso aí dentro dessa cabecinha: já temos planos para Helô, para quando ela completar os dezoitos anos. Até lá ela vai ficar preservada, mas pra isso você tem que cumprir com a sua parte. E esqueça a história dela virar freira, lá fora é que está o futuro dela. E você vai continuar aqui. Pode, desde já, ir desfazendo os seus planos. Pode jogar fora a mala que já está arrumada dentro da sua cabeça. Você não vai atrás dela, de jeito nenhum. Eu sei de tudo que você planeja. Eu escuto mais do que você imagina. Agora, pode ir embora. Sem comentários. 
................Continua semana que vem!

terça-feira, 13 de novembro de 2018

A História de Helô - Parte 6

Continuando...

           A curiosidade era sempre muita, tanto das freiras como das adolescentes internas. Todos queriam saber o que tinha acontecido com elas. O interrogatório era imediato, todavia prevalecia o silêncio. O máximo eram respostas vãs, respostas que não condiziam com a verdade mas acabavam sendo realmente aceitas por todas. Respostas essas combinadas com a madre: - Eu me curei da tuberculose. O tratamento foi longo mas estou bem agora. – a culpa era sempre do bacilo de Koch. As que não voltavam eram as que não resistiam à moléstia. Entretanto existia um fato comum entre as que retornavam: viviam tristes e caladas. Ficavam arredias até saírem, aos dezoito anos, do convento. Tomavam destinos ignorados pelas irmãs.
          Numa manhã ensolarada de janeiro, duas meninas chegaram vindas da capital. Retornavam depois de doze meses de tratamento médico. A irmã Amélia olhava a entrada delas com um olhar triste. Aquele jeito de caminhar das meninas trouxe à tona o seu passado, arrastando-se por aquela mesma alameda.  Sentiu um aperto no coração. Uma lágrima se jogou dos seus olhos. Discretamente limpou o seu percurso. Virou-se para o lado, colocou a mão no ombro de Helô, que já tinha completado dez anos, e sem falar nada puxou-a para um canto. Procurou um lugar distante da curiosidade alheia. Aproximou a boca da orelha de Helô e falou, quase sussurrando:
          - Minha menina, vou lutar sempre por você. Vou lutar contra qualquer mal. Darei até minha vida pelo seu bem estar, pode ficar certa disso. Vou falar-lhe uma coisa... mas prometa-me que não vai comentar com ninguém! É um segredo só nosso! Certo?
          Helô olhou nos olhos de Amélia, sorriu levemente, enlaçou o seu pescoço e falou baixinho:
          - Mãezinha, eu juro. Eu juro por Deus que não falarei com ninguém, nem para a irmã Gertrudes. Quando eu ficar sabendo, ele vai ficar aqui dentro de mim para sempre.
          - Assim é que se faz. Segredo, só com duas pessoas. Se tiver uma terceira pessoa, deixa de ser segredo. Então com a promessa feita, agora vou segredar. Já falei com você sobre a saída das internas quando do aniversário de dezoito anos. Normalmente todas as meninas saem daqui com dezoito anos, mas estou lutando para você continuar aqui depois. Você pode virar freira como eu virei, entretanto eu não quero isso para você.
          - Não, mãezinha?
          - Não, Helô. Quero coisa melhor para você e quero o melhor também para mim. Então eu venho pensando, pensando e resolvi que vamos embora nós duas.
          - Verdade, irmã?
         - Verdade, meu amor! E falando em verdade, quando sairmos daqui você ficará sabendo de uma porção de coisas, mas por enquanto não posso falar nada. Só posso dizer que vamos embora juntas.
         - Oba! Oba!
        - Calma! Esconda essa alegria!
        - Está bem. Desculpe. 
        - Sem sorriso, por enquanto. Agora esqueça essa nossa conversa e não conversa esse assunto nem com o seu pensamento.  Finge que não falamos nada, está bem?
        - É difícil, mas está bem. Mas, mãezinha, me diz uma coisa.
        - O que é?
          A menina não respondeu de imediato, estava mergulhada na dúvida. Não sabia se deveria continuar a cobrar de Amélia a investigação da sua origem. Algumas vezes tinha tocado no assunto, mas nunca conseguiu qualquer resposta. Eram sempre promessas vãs, mas mais uma vez não resistiu e perguntou:
         - Mãezinha, já descobriu quem são meus pais?
          A irmã Amélia tentou esconder as lágrimas que já brotavam no canto dos olhos. Disfarçadamente enxugou-as e antes de responder abraçou a pequena e disse docemente:
          - Não, meu amor, mas eu prometo que quando sairmos daqui eu terei a resposta para a sua pergunta. De repente, até antes eu consiga descobrir quem são seus pais, mas até lá, segredo, hein!
          - Pode deixar. Esse segredo é só nosso.
          - Além desse, o outro também. Não fale pra ninguém que vamos sair daqui juntas. E se preocupar pra quê? Ainda temos oito anos pela frente, minha querida! Então temos que ser discretas. Não podemos levantar suspeitas! Promete segredo total?
         - Segredo total! Promessa feita!
         Dois dias depois dessa conversa com Helô, Amélia foi chamada a se apresentar à madre superiora. Não pestanejou e imediatamente  dirigiu-se ao escritório dela. Sabia que não podia retardar. Se o assunto era sério ficava mais sério ainda se não atendesse logo. Já conhecia de cor e salteado os critérios da madre. Pelo corredor pedia a Deus que a acudisse. Precisava muito da ajuda do céu. Suava de tanto nervoso. Era sempre assim quando era chamada. Toda vez pensava que aquela seria a última, pois com certeza iria ter um treco na presença da megera. Com o corpo já tremendo, meteu a mão na maçaneta e com muito sacrifício girou-a. Abriu a porta o mínimo que desse apenas para passar. Com a cabeça baixa, entrou. Mal terminou de fechar a porta atrás de si, a voz da madre soou por todo o escritório:
          - Irmã, sente-se. – disse, apontando uma cadeira.
          Amélia sabia que ia ter dificuldade de falar alguma coisa. Sempre foi assim e agora, com certeza, não ia ser diferente. O medo que sentia por essa criatura era inimaginável. Sentou-se no local indicado sem, no entanto, olhar na cara da madre. Ajeitou-se na cadeira e tentou controlar os nervos. Respirou fundo e, com sacrifício, conseguiu levantar o rosto. Quando os seus olhos encontraram-se com os da madre, sentiu um tremor no corpo. Fechou os olhos e engoliu em seco. Depois, num esforço hercúleo, abriu os olhos e procurou manter os nervos o mais equilibrados possível. Encarou mais uma vez aquela cara angelical, mas que na verdade escondia um demônio.
.................Continua semana que vem!.