terça-feira, 27 de agosto de 2019

A História de Helô - Parte 47



Continuando...

Joana caminhou ao encontro deles. Os cumprimentos foram efusivos. Falavam baixinho com medo que as palavras os traíssem. O padre que  chegou mais rápido, pegou a mão da Madre, beijou-a e disse:
           - Mirna!
          - Pavan! Não me chame assim! Se houver esquecimento, no meio dos outros, e me chamar pelo meu nome, vamos ficar em maus lençóis!
          - Desculpe, Madre. Fiquei emocionado e estava também com saudade do seu nome.
         - Está bem, padre, depois matamos a saudade de...
         - Não fale! Senão fico nervoso!
           Nisso foi se aproximando o senador. Eles interromperam a conversa e esperaram a sua chegada. Ele apertou a mão da Madre e disse:
         - Joana, tem carne fresca?
        - Claro! Sempre tem!
        - Muito bom!
         Depois foram os três até a mureta e ficaram observando o movimento dos convidados. Alguns se dirigiam para o interior do prédio e outros se espalhavam pelo jardim. Após, aproximadamente, dois minutos de silêncio, o senador disse para a Madre:
         - Minha amiga e sócia, como prometi, consegui trazer alguns afeiçoados pelo jogo e que gostam de apostar até a alma. Quando disse que ia haver carteado e outros jogos de cassino, ficaram enlouquecidos. Alguns ainda comentaram que não podiam ficar fora dessa experiência única: jogar dentro de um convento. E já está tudo pronto?
          - Tudo certo, senador. Trouxe o croupier?
          - Claro, Joana, temos que fazer tudo com muita discrição, mesmo você sabendo que a nata da corrupção está aqui, pois nesse meio tem gente - por incrível que pareça! - que não aceita o jogo. O projeto da legalização não vai pra frente por causa desses “malucos”!
          - Mas é bom que não legalize, pelo menos por enquanto, porque a proibição estimula os adoradores das cartas e vão entrar pelos nossos porões e gastar uma fortuna! Só vão sair de lá quando estiverem lisos! Ah! Ah! Ah! Vamos ganhar uma grana preta, meus amigos!
           - Joana, Joana! Não posso rir! Se eu der uma gargalhada, que já atravessa a minha garganta, vai ser um Deus nos acuda! Deixa-me entrar na sua sala, rápido!
          O senador entrou ligeiro, apesar dos seus quilos a mais, fechou a porta atrás de si e gargalhou com os pulmões dos gananciosos.
          Do lado de fora a Madre Joana e o padre riam baixinho da gargalhada do amigo, que ainda conseguia escapar pelos quase inexistentes espaços vazios.
          Alguns minutos depois, com a cara bem vermelha, o senador voltou para o lado dos amigos. Com o seu retorno, a Madre comentou:
          - Senador, estive pensando nesses dois últimos dias. Acho que esse evento vai funcionar como teste.
          - Teste? Teste de quê?
          - Sim, teste. Vamos ver como tudo vai funcionar. Se render muita grana fácil, a gente repete o evento. Dá um espaço de alguns meses e a gente inventa alguma obra de ampliação. E festa neles!
          - Madre! Madre! És uma raposa!
          - Senador, Senador! Não estou sozinha! Somos o quê? Raposada?  
           O Senador sorriu e disse:
          - É jeito de falar! Somos raposas, sim!
             Vamos ao trabalho. Não é o meu forte, mas... Vou descendo para ir contatando os “meus jogadores”. Logo depois do almoço, podemos começar o jogo, certo? 
          O senador deixou os dois, o padre e a Madre, e foii pegando o caminho da escada. Estava sorridente! Acena para um e para o outro, espicha os olhos à procura dos amigos adeptos do carteado, da roleta e de outros jogos. Em pouco tempo de caminhada consegue acertar o horário da jogatina com todos eles.
          Com a saída do senador, o padre e a Madre continuaram apreciando o movimento no jardim.  Os seus conhecidos que circulavam eram poucos. A maioria dos convidados era do círculo do senador. O padre, aproveitando a proximidade da Madre, agarrou-a pela cintura. Joana pisou-o no pé e afastou-se. O padre reclamou, com ar aborrecido.
          - Puxa, Mirna, me machucou!
          - Já avisei que meu nome é Joana! Está maluco? Intimidade só lá dentro, entendeu?
          - Desculpe-me, Joana, acho melhor eu circular por aí. Vou seguindo as pegadas do senador, mas antes me diz uma coisa:
          - Tem umas cabritinhas para hoje, né?
          A Madre Joana olhou dentro dos seus olhos, parou alguns segundos até um sorriso malicioso brotar nos seus lábios descorados. Em seguida crava seus dentes na parte inferior, respira fundo e fala mansamente:
          - Meu amor, preste atenção! Preste mesmo! A única cabritinha aqui sou eu. Se por um acaso te entusiasmares por outra - meu querido! - verás o que te acontecerá. Vai ser a última vez que usas a tua ferramenta. Sabes que não brinco.
         - Mirna, não gosto quando você fala na segunda pessoa. Foi brincadeira. Foi da boca pra fora. Você sabe que só tenho olhos pra você.
         - Isso é que tem que ser.  Depois arranjamos um tempo para o nosso ninho, mas agora vamos dar atenção aos nossos convidados. Arcanjo, quantos amigos você trouxe para a festinha particular com as meninas?
         - Certo, são oito. De repente consigo mais alguns.
         - Temos seis cabritinhas, que já estão lá dentro à disposição.
         - Isso é bom.
         - E a grana?
         - Está na minha pasta. Cinco já me pagaram adiantado.
         - Quanto foi?
         - Cobrei dois mil por cada menina.
         - Já temos dez mil.
           A Madre Joana olha para o padre, com um olhar de cobiça, e quase o abraça, mas rapidamente consegue abortar a vontade. Sorri meio sem jeito e fala baixinho:
          - Puxa! Quase que te agarro! Fiquei emocionada com a grana! Pra começar, dez mil! Tá de bom tamanho! Dá pra faturar bem mais! Depois que sair alguém, Celeste dá um trato na menina e ela volta para o quarto.
          - É isso, minha Madre! Essas seis vão nos render bem!
          - Será que a gente consegue uns trinta mil reais?
          - Quem sabe?
          - Como estão os nossos negócios na capital?
          - Os negócios vão de vento em popa! Depois eu mostro todo o movimento. As nossas contas então recheadas!
          - Isso é que é notícia boa!    
..............Continua semana que vem!

terça-feira, 20 de agosto de 2019

A História de Helô - Parte 46



Continuando...


          Logo pela manhã o coral, comandado pela irmã Maria das Dores, composto de crianças com idades que variavam de nove, dez até treze anos, já estava sendo arrumado próximo ao portão principal. O nervosismo era evidente. As meninas nunca tinham se apresentado para um público que, pela estimativa, passaria de duzentas pessoas. Era de se esperar que ficassem ansiosas e até medrosas. A preocupação não passava só por elas, a própria irmã regente, desde cedo, já sentia um friozinho na barriga. 
         Às onze horas começaram a chegar os convidados. A Madre e suas assessoras, além do padre e do senador, estavam a postos para recebê-los. Toda a frente do convento aos poucos foi ficando intransitável. Vários grupos foram se formando. Eram vários amigos que se encontravam. A Madre então pediu à irmã Maria das Dores que começasse a apresentação do coral. Apesar do nervosismo, foi um sucesso. O início, enfim, foi coroado com êxito.
        A multidão começou a se espalhar. Os convidados, levados pela curiosidade, caminhavam pela propriedade, maravilhados. Realmente a estrutura administrativa comandada pela Madre Joana era de primeira, pelo menos ela fazia com gosto. Era uma boa administradora, cuidava bem do patrimônio da igreja. Apesar dos seus desvios morais, era amante da beleza, era cuidadosa com o prédio e com tudo que existia nele. Desde o primeiro dia da sua administração programou várias obras. Logo iniciou trocando os velhos móveis por um novo mobiliário, além de comprar várias obras de arte. Queria deixar o velho convento com cara de novo.  Dava gosto de andar por toda propriedade. Além do prédio, o cartão de visitas era o jardim. O encarregado era um jardineiro, único homem que circulava diariamente por ali, mas a sua área era restrita ao jardim e num horário limitado. Quando ele chegava ninguém circulava,  entretanto era vigiado à distância. Alguns pares de olhos não se desgrudavam dele. Ele, que já não era tão jovem, sentia-se incomodado com isso, mas como ali era o seu “ganha-pão” procurava não infringir as normas. Tocava em frente sem questionar.
          Qualquer pessoa que olhasse para as meninas ficaria impressionada. Todas, sem exceção, esbanjavam saúde, coradas e lindas. Alimentação de primeira e médico periodicamente, mas isso tinha um preço. A Madre não fazia isso por bondade, era apenas um investimento. Cada menina daquela, no futuro, transformaria aquilo em lucro pecuniário. O extremo zelo era uma aplicação de médio prazo e ela já vinha lucrando há um bom tempo.
          Depois das apresentações, foi anunciado que o almoço seria servido dentro de alguns minutos, mas ainda existiam alguns convidados que estavam a caminho. Então, a Madre achou conveniente atrasá-lo um pouco e tinha certeza que isso não ia apagar o brilho da festa. Os convidados, na verdade, nem perceberam que as doze badaladas de uns dos relógios do convento já tinham se perdido pelo ar. Os grupos que se formavam em vários pontos estavam mais preocupados, naquele momento, em jogar conversa fora, tramar, conspirar e o diabo a quatro. Como o senador e o padre conseguiram reunir tantos políticos e empresários de vários ramos envolvidos com tanta corrupção? Cem por cento carregando processos e mais processos, mas pareciam tão alegres e descontraídos que se podia jurar que eram todos injustiçados. Entretanto, para um crime tinha que existir um culpado. E o dedo em riste apontava para um: o povo. – Quem mandou trocar seu voto por merreca! – alguém lançou essa pecha sobre o brasileiro.
         Helô da varanda do segundo andar, escondida atrás de um pilar, não desgrudava os olhos do portão, olhava tudo e todos. Aquelas pessoas bem vestidas, mulheres e homens, para ela pareciam pessoas distintas, mas eram caras totalmente desconhecidas e ela tinha quase certeza que nenhuma delas, nesses quase dezoito anos que morava no orfanato, tinha passado por aquele portão. Aquelas pessoas eram somente aparência. Helô não tinha a menor ideia de quem elas eram, no entanto ali estava a nata da corrupção no Brasil. Sem exceção, todos envolvidos nos casos mais esdrúxulos e Helô nem desconfiava da moral de cada um dos senhores e senhoras, mas também não ouvia rádio, não via televisão e nem lia jornal. Era tudo proibido. Ali se vivia num mundo à parte.
          Helô estava deslumbrada com aquele entrar de casais alinhados. Um ou outro chegava desacompanhado e ela não sabia quem ela esperava. Segundo a Madre Maria de Lourdes ela ia reconhecer. De onde estava tinha uma boa visão, mas resolveu descer para o jardim, que nesse momento já não estava tão congestionado. Ao sair viu a Madre Joana na outra extremidade do corredor. Procurou afastar-se sem ser vista.
          A Madre Joana, impávida, olhava todo aquele movimento do alto e deixava um sorriso de satisfação aflorar levemente. Sentia-se a verdadeira rainha. Quase que bateu palmas para si mesma. Foi despertada por passos e vozes que chegaram até aos seus ouvidos. Girou a cabeça e viu, com satisfação, a aproximação dos seus amigos. Vinha à frente o padre e mais atrás, com os passos vagarosos, o senador.  
............Continua semana que vem!

terça-feira, 13 de agosto de 2019

A História de Helô - Parte 45



Continuando...

A irmã Celeste, para alegria de Helô, girou nos calcanhares e desapareceu. Agora ia ser mais fácil à conversa rolar mais tranquila, mas ela tinha de ser muito discreta e cuidadosa para não deixar que o papo fosse comprometedor. Olhou em volta para ver se estavam sendo vigiadas. Constatou, para seu alívio, que a área estava livre de qualquer espiã. De repente sentiu que Amélia ia dizer alguma coisa que a deixaria em maus lençóis, rapidamente tapou-lhe a boca com a mão e em seguida abraço-a levemente. Depois se afastou um pouco, tirou cuidadosamente a mão da sua boca e fez um sinal, com um dedo na frente da boca, pedindo que ficasse em silêncio.
           Amélia olhava-a assustada. Não estava entendendo nada do que se passava. Duas vezes fora interrompida de tentar falar. Até dificuldade em respirar teve. Pensou que fosse morrer. Não entendia realmente o que estava acontecendo, mas percebeu, pois não era burra, que devia ficar muda. E então ficou esperando que Helô dissesse alguma coisa e não demorou muito para que ela se manifestasse.
          - Mãezinha, vamos sentar.  Não se esforce. A senhora viu como ficou cansada?
         Enquanto falava, Helô meteu a mão no bolso, discretamente, e tirou um papel dobrado, que dava na palma da mão. Depois o colocou no colo e abriu-o. Estava escrito:
          - Cuidado. Não fale nada. Nos escutam. Estamos sendo vigiadas.         
          A irmã Amélia mostrou-se nervosa. Queria falar alguma coisa, mas não conseguia. Helô, percebendo a sua agonia, adiantou-se e disse:
          - Oh, Mãezinha! A senhora está bem melhor! Eu só falei que senhora estava um pouco cansada, mas isso é normal para quem está em recuperação. Para o dia da festa a senhora vai estar totalmente curada. Se Deus quiser! Eu sei que a Madre Joana está cuidando bem da senhora. Ela é enérgica, mas é uma boa pessoa.
          Helô piscou para ela e perguntou:
          - A senhora não tem nada para me falar?
          A irmã Amélia engoliu um bocado de saliva. Estava nervosa com certeza, porém entendeu o recado da menina. Ficou procurando as palavras na sua cabeça. Estava difícil falar alguma coisa. Helô então percebendo a sua dificuldade, abraçou-a carinhosamente. Depois deitou a sua cabeça no seu ombro. Ficaram assim por alguns minutos, silenciosas. Amélia tentava se tranquilizar, mas o coração teimava em pulsar quase aos saltos. Não sabia direito o que dizer, entretanto num esforço sobre humano, disse:
       - É, minha filha, ela é uma boa pessoa. Principalmente nesses dias ela...
         Interrompeu o seu raciocínio, pois a amargura que invadia o seu coração tomou conta dos seus olhos e grossas lágrimas escorreram abundantes pelas faces.  Nem mais uma palavra conseguiu expressar.
          Helô sabia que a irmã Amélia queria desabafar, entretanto foi obrigada pelas circunstâncias a abortar a vontade, por isso estava sofrendo. Naquele momento sentiu orgulho dela. Viu que ali estava uma mulher corajosa, de fibra, uma fortaleza. Sabia que não era para qualquer pessoa, depois de anos e anos de sofrimento, conseguir chamar o seu verdugo de “uma boa pessoa”. Olhou ternamente para ela e deu-lhe um beijo no rosto. A irmã Amélia que ainda trazia a face úmida devolveu um olhar também cheio de amor. Depois, num esforço hercúleo, conseguiu balbuciar no ouvido de Helô:
          - Minha filha. Minha menina.
          Em seguida levantou-se bruscamente e tentou dar alguns passos, mas caiu de joelhos. Helô rapidamente socorreu-a, colocando-a sentada novamente no banco. Examinou-a atentamente e respirou aliviada ao constatar que não havia qualquer tipo de lesão, apenas sentiu-a um pouco tensa.
         Passados alguns minutos, a irmã Celeste apareceu para pegar a irmã Amélia. Notou que ela estava nervosa. Então inquiriu Helô:
         - O que houve com ela? Estou sentindo que ela está tensa!
         - Ela foi levantar-se e acabou caindo, mas está tudo bem.
         - Vou levá-la.
          A irmã Celeste tentou erguê-la, mas não conseguiu. Então pediu a ajuda de Helô. As duas com cuidado levantaram-na, mas Amélia se encontrava muito debilitada. Com isso a sua capacidade de locomoção ficou comprometida, os seus passos eram muito lentos, ela quase se arrastava. Pacientemente as duas levaram-na à enfermaria. Depois de ela ser medicada, deixaram-na no quarto.   
          O tempo correu célere. Foi tão rápido que, numa piscadela, já estava no dia da festa. O convento amanheceu nervoso. Não havia uma alma sequer que estivesse sossegada. A agitação contaminou até as crianças. Era uma correria só.
           O início dos festejos estava marcado para as 12 horas, com almoço feito por um chefe da cozinha francesa. Seria servido um cardápio de variadas iguarias que causaria inveja aos grandes restaurantes classe A. As tradicionais cozinheiras do convento não passariam nem na porta do refeitório. A alimentação para as internas seria feita em outra ala, distante da cozinha principal.
          A maioria dos convidados fizera a sua doação meses antes. No convite estavam incluídas todas as refeições, inclusive bebidas. As  alcoólicas seriam servidas em lugares reservados, fora das vistas das irmãs e das crianças. Tudo do bom e do melhor. Para a Madre Joana de Maria valia o investimento. Tinha certeza que o lucro seria exorbitante. Realmente, pelos seus planos, não cabia dúvida alguma. Não seriam somente as doações que cobririam os gastos e ainda dariam lucro. De jeito nenhum! As doações cobririam sim as refeições e bebidas, mas deixariam uma margem muito pequena de lucro. O lucro em si cheirava a jogo e sexo.
.....................Continua semana que vem!