quarta-feira, 24 de abril de 2024

Concurso Contos Curtos - Milagre Sertanejo

 

                                MILAGRE SERTANEJO

- José Timotheo -

          Semente. O solo é árido, mas uma mão calejada goteja esperança. O buraco é feito, mas só devolve poeira. O homem não deixa o desânimo brotar e prossegue rasgando o chão pedregoso. Vai uma semente. Mais uma e mais outras. Segue em frente, passo cadenciado, sem parar. Pés descalços, com pele grossa e envelhecida, esmagando a dúvida. Vai pisando como se tivesse no início da sua esperança.

           O dia é sempre diferente. Não acredita que a luz seja a mesma do dia anterior. Reza que a noite chegue ao meio dia. Assim é o sinal de que Deus vai chorar em cima da sua plantação. Olha para o céu e tira o seu chapéu de couro, já quase transparente, de tão gasto. É um gesto quase automático, diário. É um “cabra” de fé. Esse é! E sempre foi. Sempre acreditou que era igualzinho aquele chão. Aprendeu que tinha vindo do pó e que para o pó, um dia voltaria. Aquele chão era ele. Como não acreditar nele?

            A cabeça às vezes passava a perna na sua lembrança. Não sabia ao certo quanto tempo fazia aqueles pequenos furos no chão. E nem sabia mais quantas vezes viu aquela terra sorrir, com grãos apontando o verde para o céu. Sabia que num ano, ou mais, a semente ficava sepultada, com direito à missa de morte. Mas não deixava que a dor escorresse pela sua face. Sabia que em alguma oportunidade, ia poder sorrir com toda a família em volta da mesa, sendo alimentada pelos grãos da última esperança, não a derradeira. Lá ia ele novamente fazer os pequenos buracos naquele chão duro, feito pedra. Cava aqui, cava um pouquinho mais à frente e vai cavando. E cavou por mais alguns anos, sem perder a fé.

            Sentado num banco tosco, já com a noite toda caída, mirava o firmamento. Tirou o seu chapéu de couro, o mesmo de anos atrás, e agradeceu a Deus por estar ali, ainda tentando tirar o sustento para si e para os seus. Não lamentava. Estava preparado para no dia seguinte continuar a sua missão. Lembrou que ainda tinha algum alimento da última plantação, isso, há dois anos. Mesmo assim, agradeceu de novo. Sabia que a chuva não passaria tão cedo por ali, assim mesmo não iria desistir de jogar uns grãos nas covas que ia abrir. Só tinha os seus dois braços para tal façanha. Os dois filhos criaram pernas e pegaram estrada. Só ficou ele, a esposa, já muito fraquinha, e uma filha. Menina pequena, que não conseguiu crescer.

           Abriu o primeiro buraco. E lá foi abrindo quantos pode. Perdeu a conta de quantas covas estavam esperando pela sua esperança. Meteu a mão no bolso e olhou para as suas últimas sementes. Aquelas eram de milho. No outro bolso eram de feijão. Voltou para o primeiro buraco. Afundou-o mais um pouquinho com os seus dedos. Jogou a primeira semente. Antes de passar para o segundo, viu que a terra estava mais vermelha. Olhou, mas não entendeu o que havia acontecido. Foi para o segundo. Cavou mais um pouco também e jogou a segunda. A terra estava molhada de vermelho. E plantou todas as sementes que tinha nos bolsos. Voltou e olhou cova por cova. Depois olhou para o céu, tirou o seu chapéu de couro e agradeceu. Mesmo sem chuva, todas as covas estavam molhadas de vermelho.

            O velho sertanejo pegou as suas gastas ferramentas, já com o sol morrendo no horizonte, e caminhou em direção a seu casebre. A cada passo, o chão ficava marcado com um ponto vermelho. Até chegar no seu lar, um caminho pontilhado de vermelho brilhou do chão, iluminado pela última luz do dia.

            Novo dia. Sol abrasador. O sertanejo sentou no seu banquinho tosco e olhou para o horizonte. Depois arrastou o seu olhar pelo chão. Milagre. Se levantou quase num salto. O chão parecia um tapete verde. Todas as sementes vingaram. De cada cova surgiam duas pequenas mãos, em forma de taça, erguidas em agradecimento ao altíssimo. O velho sertanejo não percebeu que dos seus olhos desceram duas grossas lágrimas. Olhou para o céu e fez uma oração muda. Depois olhou para os seus dedos, ainda sangrando, e beijou-os com gratidão.

 

 

Fim.

 

segunda-feira, 22 de abril de 2024

A Minha Casa Não é Essa - Parte 102 -Final

 


Continua...

                O silêncio era constrangedor. Pareciam três estranhos procurando alguma palavra para iniciar o assunto. Téo coçou a cabeça demonstrando seu estado interior. A irmã percebeu a sua ansiedade, porém preferiu continuar sem se dirigir a ele. Era sempre assim, quando conseguiam trocar algumas palavras, parecia um parto com alto risco. Entretanto percebeu que a mãe estava mais serena e arriscou uma conversa.

             - Mãe, veio brigar comigo, porque não fui almoçar com a senhora?

             Finalmente dona Anízia venceu o mutismo.

             - Não minha filha, já estou acostumada. A nossa vinda até aqui é por outro motivo.

             - A senhora está com uma cara muita séria. Aconteceu alguma coisa?

             A dona Anízia olhou para o filho. Arrumou-se na poltrona sem precisar levantar-se. Olhou novamente para Ângela.

             - Minha filha, vou ter que ficar aqui com você.

             - Por quê?

             - Porque... Fala Téo!

             Téo não estava se sentindo muito confortável. Falar com a irmã era pior do que enfrentar qualquer inimigo no campo de batalha. Mas não tinha saída. Engoliu em seco e procurou explicar o que estava acontecendo.

              - Ângela. Mamãe vai ter que ficar com você. Não sei por quanto tempo. Eu estou sendo procurado por um grupo de guerrilheiros. Hoje veio um homem para me matar. E eu suspeito também dos próprios americanos. Nem tenho certeza se aqui existe segurança para vocês. Por sorte a pessoa que estava com essa incumbência, era meu amigo.

             - Você mais uma vez, querendo dar uma de herói, arranjando confusão pra gente!

             - Não vim aqui para brigar. Mamãe, você, as crianças e Nestor têm que se protegeram também. Eu vou ter que partir hoje mesmo. Ainda não sei para onde. Eu e o meu amigo, Mohammed, vamos tentar sumir. Nestor não está?

             - Não. Mas não vai demorar. O que foi que você fez?

             - Esse é o problema: não fiz nada. Só sei de coisas que não deveria saber. E é melhor eu nem contar. Por favor cuida de mamãe, dos seus filhos e do seu marido. Não acredito que venham atrás de vocês, porque eles querem é a mim e a Mohammed. Estou indo. Não posso ficar mais. Não tenha raiva de mim. Dê um beijo nas crianças e um abraço no Nestor.

              Ângela ficou calada, mas sentiu, pela primeira vez, uma ponta de preocupação pelo irmão. Não sabia porque, desde criança, a convivência entre eles era difícil. Não se lembrava de já ter tido algum momento de conversa sem briga. A relação era sempre tempestuosa. Teve vontade de dar um abraço em Téo, mas recuou. Se encaminhou para a porta e esperou que o irmão se despedisse da mãe.

               Téo, antes de sair, ainda falou que ela procurasse sempre olhar pela janela, antes de sair de casa. E que qualquer coisa suspeita ligasse para polícia. Em hipótese alguma, deixar as crianças brincarem do lado de fora. Pela primeira vez deu tchau para Ângela, olhando em seu rosto.

            Téo antes de sair, olhou em torno para ver se tinha alguém suspeito, abriu o portão e voltou pelo mesmo caminho. Entrou em casa e encontrou Mohammed no mesmo lugar, de olho na direção de onde tinha havido o assassinato. Deu uma olhada também e viu que não tinha mais ninguém. A cena do crime estava desfeita.

              Mohammed olhou para o amigo e depois bateu no seu ombro.

             - E aí, tudo bem? Deixou a sua mãe em segurança?

             - Acho que sim. E como foi aí?

             - Limparam tudo. Apagaram todo e qualquer vestígio do assassinato. Depois foram embora. Ivan, antes de entrar no carro, ainda deu uma olhada aqui para a janela.

             - Será que viu você?

             - Acho que não. Viu você naquela hora, mas não me viu. Fiquei encoberto pelo seu corpo. Se eu fosse grande, aí sim, ele me veria.

             - Mohammed, vou preparar uma mochila. Você está sem roupa, não é?

             - Estou. A minha roupa, que não é muita, ficou lá no hotel. E eu não sou maluco de voltar lá.

             - Ivan, o terrível! Não viu você, mas sabe que você está aqui em casa. Temos que sair hoje mesmo. Vamos comprar alguma roupa pra você longe daqui.

             Mohammed foi até a cadeira, sentou-se. Sorriu e olhou para a roupa que estava usando e falou:

             - Realmente estou parecendo um mendigo. Essa calça comprida e essa camisa parece que foram feitas para serem explodidas. Tenho que comprar alguma coisa moderna e bonita.

             Téo balançou a cabeça levemente e foi em direção ao quadro. Sem dificuldade nenhum arrancou-o da parede e arremessou-o contra a outra parede, estilhaçando o vidro que espalhou o seu caco por uma grande parte da sala. Depois olhou para Mohammed e disse:

             - Viu Mohammed, não senti mais dor nenhuma!

              Mohammed sorriu e aplaudiu levemente o gesto do amigo.

             Téo não demorou muito. Veio de roupa trocada e com uma mochila nas costas. Vestia o que gostava: calça jeans e uma camisa verde oliva, bem passada. Estava bem apresentável. Trouxe uma mochila para o amigo, mas que não tinha nenhuma roupa, apenas alguns chocolates e biscoitos.

              Téo foi em direção aos fundos da casa, acompanhado pelo amigo. Um muro separava a casa de uma mata fechada. Era por ali que iam fugir. Ele conhecia cada pedaço daquela floresta, era o seu refúgio quando não estava bem de saúde mental. O seu remédio estava ali.

             Ele colocou as duas mãos entrelaçadas e mandou Mohammed colocar o pé. Com um impulso lançou-o para o outro lado. Depois, como era alto, pulou e segurou a borda do muro. Facilmente já estava do outro lado.

              Antes de entrarem na mata, Mohammed segurou o braço do amigo e falou bem devagar:

              Meu amigo e irmão. Até hoje fomos a caça. A partir desse instante, somos caçadores. Vamos ser a sombra que vai infernizar esses bandidos e os americanos que te perseguem.

              Téo não falou nada, apenas balançou a cabeça concordando. Depois estendeu a mão para o amigo e selaram ali uma parceria... Sobrevivência ou vingança?    

               Entraram silenciosamente na mata. Téo se adiantou, enquanto Mohammed voltava o seu olhar em direção à casa. De repente seus olhos foram mudando de cor até ficarem vermelhos como o rubi. Em seguida soltaram raios que envolveram o lar de dona Nádia. Em frações de segundos começaram a crescer vários tipos de árvores ao seu redor, já cobertas de flores de matizes variadas. Parecia uma fortaleza natural. Mohammed sorriu enigmaticamente e deu às costas para a casa da mãe de Téo. Depois retomou o seu caminho até alcançar o amigo.  

               

                                                          Fim

 

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou acontecimentos reais terá sido mera coincidência.