terça-feira, 29 de março de 2016

A Menina do Rochedo - Parte 4

Continuando...
Eu me recordo que parei num bar, na beira da estrada. Tinha que me aliviar... Estava quase me urinando todo. E também aproveitar para comer alguma coisa. Mas não sei onde fica esse lugar. Só sei que é em algum lugar na estrada Rio - Bahia. O bar estava bem cheio. A maioria era de caminhoneiros. Consegui uma mesa do lado do balcão. A poucos centímetros tinha o fogão. Num taxo de metal, fritavam pastéis. Não precisa nem dizer que o calor era infernal. Por isso é que a mesa estava vazia. Mas do jeito que estava com sede e fome, caiu do céu. Não, do inferno. Pedi primeiro uma garrafa de água mineral. Depois podia mandar um prato feito. Para acompanhar, um refrigerante. A água veio rápida. Bebi toda quase que num gole só. Foi só o garçom se afastar e uma mulher, parecia uma cabocla, se aproximou. Perguntou se podia se sentar, já que o bar estava lotado e a única mesa que tinha cadeiras disponíveis era a minha, gentilmente concordei. Agradeceu e sentou-se junto com um sorriso bonito e enigmático. O garçom voltou rapidamente e foi atendê-la.  Disse que queria o de sempre. Ele saiu e voltou como num passe de mágica, com uma cerveja, já aberta, e uma porção de linguiça. Cheguei a ameaçar uma reclamação, mas preferi não questionar a morosidade do meu pedido e a rapidez com que a moça foi atendida. E ela, como que percebendo, se adiantou e ofereceu-me um copo de cerveja e o tira gosto. Agradeci e peguei um pedaço de linguiça, mas me esquivei da cerveja, justificando que estava dirigindo. Não comi, devorei o petisco. Ela me olhava com o seu sorriso enigmático. Não tinha certeza se ela ria pra mim ou de mim. Também naquele momento não fazia a menor diferença.  Insistiu novamente para que eu aceitasse a cerveja.  Balancei a cabeça negando. Não pude responder, pois ainda estava mastigando um pedaço de linguiça. Não era das melhores, mas como a fome era grande, não podia dispensar. E ela continuava me olhando fixamente.  Não sei o que pensava.  Pegou a cerveja e encheu o seu copo. Não bebeu, mas começou a passar a língua em volta da borda. Fez isso, várias vezes. Perdi a noção do tempo que assim ficou. Não me esqueço daqueles olhos negros amendoados, cravados nos meus. Não piscou um momento sequer.  E aquele sorriso malicioso! Meu Deus do céu! Eu tremi! Juro por Deus! Eu tremi! Já estava hipnotizado. Ela então beijou o copo e me ofereceu. Já estava dominado. Peguei-o e bebi. Não resisti. Não tinha mais força de vontade.   Entornei o copo todo, goela abaixo. Não me lembro de tê-la visto beber. Até aqui a lembrança está cem por cento. Depois, é um branco só. E o prato feito? Não sei se comi só o pf. Depois disso tudo, só as ondas batendo nos meus pés. Já olhei o carro para ver se faltava alguma coisa, mas não consegui detectar nenhum roubo. A minha capanga estava intacta também. Não faltava dinheiro e nem documentos. O que será que aconteceu?  Estou aqui tentando me lembrar de algumas caras que vi por lá. Era muito falatório, muita fumaça de cigarro e muita incerteza.  Mas eu me recordo da morena e do garçom. Engraçado que de vez em quando, pegava ele me olhando. Não o vi atendendo outra mesa. Qual o significado disso? Acho melhor eu ir embora. Voltar para a estrada e chegar ao meu destino: Porto Seguro. Mas como deixar Omar aqui? Nós já somos amigos. Acho que velhos amigos. Um amigo não abandona o outro de jeito nenhum.  Já estou achando que esse cara era bom. Por que será que ele morreu? Tem hora que penso que vai falar comigo. Aquele medo inicial já foi embora. Não o vejo mais como uma caveira. Percebo apenas que ele é uma pessoa mais magra do que eu. Sei que isso é uma coisa muito esquisita. Muita gente vai achar que estou ficando maluco. Em alguns momentos acho isso também. Nem sei que horas são. Vou pegar meu celular. Porra! Me roubaram o celular! Por que me levaram o celular e deixaram o dinheiro, e as outras coisas? Não faz sentido. Ainda mais que era um celular velho. Só eu mesmo para usar aquele aparelho jurássico. Já estava quase na hora de jogá-lo na lata do lixo. Às vezes, quando saía de casa, ficava torcendo para alguém me assaltar e pedir o celular. Quando eu entregasse aquilo, o cara ia ficar muito revoltado. Omar será que você tem algum celular ai? Desculpe. Acho que estou ficando maluco mesmo. Você ia ligar pra quem? Na altura do campeonato os siris devem ter feito ligações para todo oceano atlântico. Um sirizinho deve ter falado com alguma sirizinha lá em Portugal. Não vai dar um sorrisinho não? Porra cara, você é sisudo mesmo, hein! Estou com vontade de ir embora, mas nem sei como sair daqui. Verdade, verdadeira. Omar. A verdade é que não tenho certeza se estou a fim de ir embora. Estou dividido. Porra!  Vou ou não vou? Vou segredar... Vou falar na sua orelha, ou onde era. Eu nunca estive num lugar tão sossegado. Verdade! Isso aqui é um paraíso. Só falta mesmo é uma linda mulher. Já sei que está pensando... Não cara! Eu sou solteiro! Eu parei aqui, mas estava indo para Porto Seguro. Precisamente Arraial d’Ajuda. Não conhece? Se não conhece, precisa conhecer. Desculpe. Agora é tarde, não é? Juro pra você. Se não fosse dar encrenca, colocava seus ossos dentro do carro e levava você comigo. Ia fazer o maior sucesso por lá. De repente eu digo que estudo medicina. Não. Não ia colar. Estou olhando pra você agora e estou achando que você podia ser uma mulher. Você tem cara de Amaralina. Conheci uma. Era um tremendo pé de cana. Bebia até álcool com gasolina. Vivia num desses postos de gasolina de beira de estrada. Tinha um cachorro que a acompanhava. Coitado do bicho. Quando ele lambia a sua cara, ficava bêbado também. Aqueles dois pareciam que tinham um amor platônico. Mas quando ela riscava um fósforo para acender o cigarro, o vira lata se afastava com uma rapidez danada. Não era só ele que tinha medo não, todo mundo achava que ela podia explodir a qualquer momento. Isso era questão de tempo. Não dá nem pra rir da situação. Diziam que ela tinha sido uma linda mulher. A cachaça acabou com ela. O vício é uma merda! Não acha? Falando em vício, até que eu tomava uma cerva geladinha. Vou dar uma olhada por ai, para ver se encontro algum ponto por onde eu possa me escafeder.  Você observou que o meu carro está na areia? Estou com medo que ele atole. Mas assim mesmo vou tentar movimentá-lo. Espera aqui. Engraçado. Aí Omar! Esse carro está com cheiro de novo! Tenho quase certeza que o meu já tinha perdido o cheirinho de zero, há muito tempo!  A placa é igualzinha, igualzinha! Só que... Estou observando que ela está muito nova.  Tem alguma coisa diferente. Que tem, tem! Mas o quê? Vejamos: pode ser impressão minha. Vou olhar meus documentos. Olhar pra quê! Sei que está tudo certo! Acho que deram um capricho nele, lá no posto. Ai Omar, está tudo certo! A hora que eu quiser, posso ir embora! Com certeza não me ouviu. Vou ficar lá com ele.  Não quero que o meu amigo fique solitário. Cheguei. Omar eu gostaria de saber ...  Sei que na atual conjuntura isso não vai fazer a menor diferença. Mas como sou um cara curioso, gostaria de saber se você já se aposentou.  Não precisa responder. Já vi tudo. Está na cara. No primeiro pagamento você enfartou. Foi isso? A pessoa trabalha a vida toda e na hora da aposentadoria... Eu queria entender. Você paga vários anos, aí ô! Top! Top! Parece que estão fazendo um grande favor. Você paga para receber dez salários e quando chega o primeiro pagamento, isso depois de uma porrada de meses esperando, não vem os dez. No ano seguinte o aumento não bate com o salário mínimo. Aí você desceu um pouquinho mais. E assim vai. E ainda colocam a culpa de tudo que está acontecendo no país, nos aposentados. Isso é uma trama diabólica em cima do povo. O que eles querem é alinhar todo mundo por baixo. Quando o país estiver com os seus aposentados e pensionistas ganhando um salário mínimo, aí vai estar do jeito que eles gostam.
Continua semana que vem... 

segunda-feira, 21 de março de 2016

A Menina do Rochedo - Parte 3

Continuando...

Só em pensar que Omar pudesse ter sido corrupto, meus olhos se encheram de lágrimas. Não posso nem enxugá-los, pois estou com as mãos cheias de areia. Será que ele chorava? É difícil imaginar uma pessoa que já está sem olhos, chorar. Eu fechei os meus e tentei imaginar Omar chorando e não consegui. Ele não tinha cara. Toda vez que tentava, saía um siri do buraco onde podia estar o olho. Muito complicado. Eu tinha que tentar dar alguma forma aquele rosto. Ou melhor, tentar fazer um rosto. É chato para cacete conversar com alguém sem rosto. Olhei em volta e achei algumas amêndoas. Peguei duas e fiz os olhos. Achei mais adiante um copinho de plástico para servir café. Botei na cavidade bucal. O nariz eu fiz com barro que estava num vaso de planta, jogado perto do carro. Mas não estava legal aquela cara. Parecia uma caricatura. Não podia fazer isso com ele. Só o nariz estava menos pior. Andei um pouquinho pela areia e acabei achando uma coisa perfeita: uma boneca de pano, com a cabeça de plástico. Por coincidência era um boneco. Se fosse boneca ia ser uma tremenda encrenca. Como mudar de nome? Arranjar um nome feminino ia ser complicado. Ele já devia estar acostumado com o nome que eu dei. Voltei até o carro e peguei um canivete. Cortei a cabeça ao meio, de cima para baixo. Tentei vestir o crânio, mas não deu. A cabeça do boneco era um pouquinho menor. Então dei uns cortes e consegui abri-la um pouco. Encaixou mais ou menos. Mas pelo menos ele agora tinha um rosto. Não é que casou bem com o nome! Omar está bom. Falei um pouco com ele, sem olhar no rosto. Agora que tinha um rosto, eu não estava olhando. Conversei normalmente, comentando como estava a maré. Até esqueci que ele não falava nada. Mas fui em frente. Falei que as ondas estavam chegando perto da gente. Olha! Um vôo rasante de um biguá. Eu acho que era. Já que ele nada falou, ficou sendo. Dei uma olhada para a cara dele. Ele sorria. O boneco sorria. Era melhor achar que ele estava sorrindo. De repente deu um estalo: tinha cara de professor! Não! Não podia ser! Professor que é professor é cheio de vida. Não ia ficar ali deitado inerte.  Ter uma falsa doença. Ele tinha cara de falso professor, isso sim! Não, não podia ser um bom professor nem aqui, nem na China. Tinha cara de armador. Aquele cara que é chegado a um “bombril”. Pendurado em sindicato. Pendurado em partido. Esse não é professor. Aquele ali era um mau professor, por isso estava morto. Mas, coitado, senti pena dele. O que será que ele ensinou aos filhos? Acho que vou chorar. Não por ele, mas pela educação do país. Depois desse papo, resolvi dar uma esticada. Andei um pouquinho pela beira d’água. Lembrei de novo da cerveja. O sol estava a pino. Tanto tempo exposto aos raios solares, os meus miolos deviam estar meio cozidos. Aquilo tudo devia ser uma alucinação. Não tinha cadáver nenhum. Respirei fundo e deixei escapar um sorriso. Corri um pouco. Falei bem alto alguma coisa, que não me recordo agora, e me joguei na água. Depois me liguei que estava de calça comprida e tênis. Como é que eu fui pra praia e não coloquei uma sunga? Fui até o carro e peguei um short que estava na mala. Não tinha planos para tomar banho de mar, por isso não tinha trazido a sunga. Fiquei procurando um lugar para trocar de roupa. Perdi um tempão. Depois cai na real: o lugar estava completamente deserto. Então fiquei peladão ali mesmo. Pulei. Gritei. Corri. Não me lembro de algum dia ter pegado um vento no saco. Me senti muito bem. Mas mesmo assim vesti o calção. Voltei para o mar. Novo susto. O morto estava no mesmo lugar. Então não era invenção da minha cabeça? Sentei de novo ao seu lado. Acho que já me simpatizava com ele. Me lembrava alguém. Vasculhei a memória. Andei por cada esquina. Achei uma porção de gente, menos ele. Mas era a cara de alguém. Quem seria? Que importância tem isso agora? Se parece com qualquer um. E não se parece com ninguém. Mas pode parecer com um jornalista? Não pode? Não. Isso não. Não poderia ser um. O jornalista conserva a notícia viva e sem sensacionalismo barato. Ele tem que pertencer a uma imprensa livre, limpa, sem preconceito... Jamais fazer parte de uma imprensa marrom. Falar coisas sérias. Não martelar a desgraça diariamente nas nossas cabeças. Preferir as notícias agradáveis. Infelizmente ele não se parece com um verdadeiro jornalista.  Se ele foi jornalista, vou imaginá-lo numa imprensa saudável. No momento me parece adoentada. Não toda. Espero que seja uma virose passageira. Ninguém aguenta mais assistir um lutador quebrando a sua perna. São várias vezes ao dia a cena sendo repetida. Tem gente até achando que a pessoa tinha mais do que duas pernas. Tem também as cenas de alagamento;  de morros caindo;  de gente desabrigada...  Pra que isso? É melhor cobrar solução para o problema, do que ficar explorando a desgraça alheia. Aquilo de ruim parece que fica tatuado no tempo. No ano seguinte, lá vamos nós presenciar ou passar pelo mesmo problema. Parece um bando de sado masoquista. O que eu sinto, é que tem gente torcendo para que a desgraça se repita. Dizem que a repetição é para que as pessoas fiquem bem informadas. Não. Acho que é para deixar todo mundo apavorado. Olhei para o meu caro defunto. Continuava na dele. Pensei em como tinha pavor em ir a um enterro. Quando ia, ficava do lado de fora do velório. Àquelas mãos em cima do peito me incomodavam. As narinas entupidas de algodão... Ficava pensando no dia da minha morte. Será que iam fazer a mesma coisa? E o ar? Só em pensar que não poderei respirar, com aquelas mexas de algodão entupindo o meu nariz, morro duas vezes. Por que será que estou pensando nisso agora? Até que não é tão difícil ficar do lado de um defunto. É mais difícil engolir história de corrupto. Rouba, mas afirma que não é ladrão. O que é ser ladrão? Pelo que eu vejo, corrupto é um serial killer. Um assassino em série.  Com uma canetada, esse ladrão de colarinho branco, mata mais do que uma guerra. Já imaginou um roubo na área da saúde? Quantas pessoas esse cara pode matar, meu Deus! Medicamentos, aparelhagens... O estrago que os pilantras do ”mensalão” e do “lava jato” fizeram no país... Quantas pessoas morreram? Só Deus sabe! Falando em Deus. Omar, você acredita em Deus? Pode meditar o quanto quiser. Se não estiver a fim de responder, pode ficar a vontade. Mas cá entre nós, pra você que está morto deve ser mais fácil. Acredito muito que você deva estar mais perto do criador. Mas eu não sei se você acredita nisso. Também se você for para outro lado lá em cima, tipo purgatório, aí não vai acreditar mesmo na existência de um Deus! Será que você já foi ou ainda vai?  Tem hora que eu sinto você, com vontade de falar alguma coisa. Quer falar da morte? Será pra onde foram os siris que estavam nos seus olhos? Estou aqui pensando... Como eu vim parar nesta praia? Já perguntei isso. Será que o esquecimento foi causado pelo susto? Susto causa amnésia?  Omar olha só! Tem uma porção de pegadas ali na areia! Ué! Eu não estou aqui sozinho? Eu sei que você está aqui também, mas só que você não deixa pegadas. Têm de urubus, siris – será que eles deixam pegadas?-, uma porção de coisas não identificadas... Como é que eu posso afirmar que siri deixa marca na areia? A gente afirma uma porção de coisa que pensamos que é. Essa porção de marca na areia pode não representar nada. Quem sabe não foi à onda! Será que não tenho nada mais importante para pensar?  Tenho que levantar e dar uma esticada nas canelas. Isso não. Me arrepiei todo. Omar é que esticou as canelas. Isso é meio estranho. Ele não tem cara de ortopedista. Me levantei e dei uma corrida até uma pedra que entrava no mar. De repente me lembrei de um poema. –“Tem uma pedra no meu caminho. No meu caminho tem uma pedra.” No meu caminho tem é uma pedreira! Isso sim! Mas aquela pedra ali não tem nada a ver com a minha pedreira. Aquela pedra ali não incomodava a ninguém. Fiquei sentado em cima dela e observei a interação dela com o mar. E com alguns habitantes marinho. Não tinha guerra aparente. Ela era hospedeira.  Alguém tem que ceder. Na vida, pra não ter guerra, alguém tem que engolir sapo.  Uma gaivota mergulhou próximo. E mais outras. Algumas conseguiram se dá bem. Outras ficaram com fome. Não demorou muito e o céu estava cheio de outra espécie de pássaro. Na maior cara de pau, alguns iam roubando o que podiam. Isso é que é tirar o pão da boca.  Eu não sei se é a gaivota que mergulha e pega o peixe ou se é o outro pássaro. De repente esse outro é a gaivota. Sei lá! Mas um deles é o ladrão! Meu Deus! Como tem ladrão nesse mundo! Olhei para um desses pássaros ladrão e achei que ele estava de gravata. Podia ser uma campanha eleitoral. Uma passeata aérea. Sorte que não tinha ônibus para incendiar. Nem vidraça para quebrar. Mas quase que um estilhaço de sardinha bateu na minha cabeça. Só não consegui me esquivar de uma chuva de cocô. Um mundo tão grande e esse pássaro vai cagar logo em cima de mim! Brincadeira né?  Ia perguntar a Omar sobre esses pássaros. Me sentei novamente ao seu lado. Olhei na sua cara, mas perguntei outra coisa: - Será que tem bala perdida por aqui? Perguntei, mas sabendo que não ia ouvir nenhuma resposta. Fiquei olhando e esperando algum milagre. Mas sabia que jamais isso ia acontecer. Ele era um túmulo.  Entretanto, pensando bem, não podia exigir tal façanha dele, tendo em vista que podia estar com as cordas vocais prejudicadas. É ou não é? Não me recordo se, nesse período do meu silêncio, pensei em mais alguma coisa. Isso não tem importância. Omar parecia uma pessoa que sabia guardar segredo.  Realmente estava ali um cara confiável. Enquanto olhava, alguns pássaros pousaram perto. Mais adiante alguns urubus rodearam alguma coisa morta. Devia ser algum peixe. Não consegui identificar nenhum pássaro, mas os urubus, eu reconheci na hora. Como têm urubus nesse país. Não posso só pensar em coisas ruins. Omar! Olha só aquele rochedo! Sabe que eu não tinha observado! Imponente! Será que é uma ilha sem vegetação? Não está dando para saber. Estranho é que às vezes que olhei, observei que tem sempre alguma neblina envolvendo o seu cume. Não é estranho? Ele deve estar bem longe daqui. Aparentemente está pertinho. No mar tudo parece perto, mas a gente, quando arrisca, custa a chegar ao objetivo mirado. Ele é bonito. É ou não é?  Pode ser que do outro lado tenha alguma vegetação. Seria um bom lugar para se visitar. Mas ainda estou preocupado com você. Até agora não achei um jeito, se por acaso alguém chegar, de explicar a sua presença aqui. Olhei para o rochedo mais uma vez. Omar continuava na dele. Sabe, estou me sentindo parte daquele pedregulho. Tem hora que me sinto uma verdadeira pedra. Tenho certeza que nunca o vi. Nesta praia aqui, também nunca tinha estado. Como eu vim parar aqui? Acho que já fiz essa pergunta inúmeras vezes. Então nem adianta insistir, pois já sei a resposta.
                               Continua semana que vem...

segunda-feira, 14 de março de 2016

A Menina do Rochedo - Parte 2

Continuando...

Preferi ficar com sede. Eu nunca podia imaginar que uma praia pudesse ficar completamente deserta. Sempre aparece alguém. Em algum lugar sempre tem uma pessoa. Algum morador. Não tinha casa alguma ali. Como consegui escolher uma praia deserta e fúnebre? Não sei como achei aquilo ali, essa é a verdade. Não me lembro nada, nada, como cheguei. Lugarzinho ruim, esse! Não, não posso ser tão radical assim. Deve existir alguma coisa boa ao meu redor. Pensando, pensando, conclui que havia de ter ali, algo de positivo. De repente não tem ladrão. Isso! Esse é um dado positivo! Mas por outro lado, tinha assassino. Será que eu ia ser pego também? Não. O cara matou e foi embora. É isso. E agora? De repente aquela era a chance de exorcizar todos os meus medos. Quem sabe? Olhei em direção à caveira. Continuava lá imóvel. Também, se ela se mexesse, pensei: com certeza eu atravessaria a nado, o oceano atlântico. Senti um arrepio danado, quando mais um siri entrou pela cavidade bucal. Não tinha mais boca, era só um buraco. Entrou e sumiu. Os urubus foram embora, pois não havia mais carne nenhuma pra alimentá-los. Só sobraram mesmo os ossos. Será que esse cara foi morto e enterrado aqui mesmo? Um afogado para chegar até a areia da praia tem que ter carne. Isso é o que penso. Só ossos... As ondas do mar exumaram o cadáver. E agora? Acho que sou a única testemunha. Mas testemunha do quê? Vou ligar para a polícia. Não. Acho melhor não. Do jeito que esse país é, posso me estrepar.  Tem gente matando... O ladrão de elite mata muita gente. Nunca vi desviar tanto dinheiro do país e ainda assim se colocar de vítima. Quando vai preso, não devolve o dinheiro, pega prisão especial e nós é que pagamos a conta. Mas se roubam galinha, podem até pegar  "perpétua"! Já pensou se aquele cadáver ali for de político? Por que é que o mar foi fazer uma coisa dessas comigo? Estou comprometido. Essa é a verdade. Eu não podia ver. Quem vê alguma coisa neste país está enrascado. O que fazer?   Não sei. Por outro lado, já que devo estar comprometido, e não tenho como sair dessa, vou lá olhar o defunto de mais perto. Só falta mesmo tomar coragem.  Vou ou não vou? Vou! Tomei coragem, caminhei o mais devagar possível, mas fui. Agi como no Brasil, onde as coisas se arrastam, e como se arrastam...  Devo ter caminhado uma eternidade. Entretanto, o inevitável aconteceu: cheguei. Olhar ficou difícil. Mas tinha que olhar. Tinha que tirar coragem de algum lugar. Encorajei-me e olhei cara a cara com... Com o quê? Só tinha mesmo ossos. Se eu quisesse conversar um pouco para quebrar a solidão, como é que ia ser? Me sentei do lado do... Vou dar um nome para ele. Conversar com alguém sem saber o seu nome, é muito chato. Que nome dar para esse conjunto de ossos? Que coisa, hein! Não tenho outra opção, a não ser falar com uma caveira? Não, tenho outra sim: trocar ideias com uma pedra. Ah! Pedra não! Caveira é melhor. Já pensou ficar num lugar sem ver uma alma viva? Você tem que falar até sozinho! Só não pode aparecer uma alma penada! Pelo amor de Deus! Se isso acontecer, vou me borrar todo! Caraca! Como não pensei nisso: vou pedir pra caveira não mostrar sua alma! Pode ser que respeite o meu medo.  Ah! Mas tem uma coisa a meu favor: não sou vidente! Ufa! Escapei por pouco! E agora o nome? Vou pensar. Achei. Omar. Isso! Omar! Tem tudo a ver! Agora posso fazer umas perguntas pra ele e eu mesmo responder. Mas se ele  responder?  Vai ser um Deus nos acuda! Tenho que ficar calmo. Vou ficar tranquilo. Arrisco ou não arrisco uma pergunta? Claro! O que tenho a perder? Omar, quem é você? (Que perguntinha chinfrin!). Acho que não devo perguntar nada. Vai que ele está sob algum juramento. De repente não viu nada. Não sabe de nada. Alguém fez isso, não eu. Aquele dinheiro num paraíso fiscal, não é meu, alguém botou lá. Essa assinatura não me pertence. Eu não fiz nada! Eu não sei de nada! Aí vai ficar difícil a gente manter uma conversa. Mas... Ele pode ter sido um guerrilheiro, quem sabe? Mas não vai falar nada. De repente foi guerrilheiro, mas nunca usou arma. Nunca deu um tiro. Estava só de passagem e... Nunca sequestrou ninguém. Se nunca fez nada, pode ter escrito o manual de guerrilha. Isso explicaria alguma coisa. Posso perguntar aonde mora. De repente ele pode responder que morava em Brasília. Será que era na periferia? Acho que não. Se bem que está tão magrinho! Ele não vai dizer se morava na asa norte, sul ou... Tem pinta de político. Um ar fechado, uma pessoa séria. Mas esse cabelinho está me deixando encucado. Não dá pra gente identificar qual a sua ideologia. Ainda não vi nenhum deputado com esse tipo de corte, nem senador, nem ministro... Normalmente eles cortam o que é bom para o povo. Mas também não é bem assim; não são tão egoístas.  Eles cortam e dividem sempre entre eles. Me lembrei de um fato comum: todo ano destinam verbas para prevenção de enchentes. Quando cai a chuva, parece que a força da água leva todo o dinheiro na correnteza. Aí é destinada outra verba para a próxima enchente. E por que será que a verba é sempre levada água abaixo? Tem que se fazer uma barragem. Isso mesmo, uma barragem. Complicou. A barragem vai formar um lago. Logo a água vai afogar a verba. Acho melhor tentar fazer outra pergunta. Mas está difícil. Vou continuar olhando para ele. Será que era médico? Não. Se fosse médico, não estaria ali. Estaria salvando vidas. E não iria se fingir de morto. Médico que é médico, nunca morre. Não tem medo de doença. Ele encara o mal e faz de tudo para que as pessoas se livrem das suas garras. Um médico, que realmente é médico, não diz para o paciente que ele está com os dias contados. Não, ele jamais faz uma coisa dessas. Ele dá a maior força para que a pessoa dê a volta por cima e consiga se sentir mais forte. Um médico dá força, não aniquila a força. Um médico é paciente e seu próprio paciente. Êta! Estou divagando demais! Tenho que fazer alguma pergunta mais simples. Vou observá-lo melhor. Omar tem as pernas compridas. Os braços também são bem longos. Mas não é muito maior do que eu. Vou medi-lo. Fui até o carro e peguei uma trena. Aproveitei e bebi um pouco d’água. Estiquei a trena. Não podia encostá-la na caveira. Peguei um pedaço de tábua que estava próximo, encostei-a na parte superior da cabeça e com um outro pedaço, que parecia ser um cabo de vassoura, fixei a tábua. Coloquei a ponta da fita da trena e estiquei até a sola do pé, digo, até o osso do pé. Estava cravadinho lá: 1,71 metros. Um, sete, um. Muito comprometedor. Seria um advogado com diploma comprado? Esses que falam "adevogado"? Pode ser. Mas pode ser coincidência. Esse número não quer dizer nada. Já estou pensando mal de Omar. Será que ele era daqueles que abriam um olho para um lado e fechava o outro? A balança dele só pendia para um lado? A justiça pode ser enrolada, mas não é injusta. Pelo menos não deveria ser. Mas tem ocasiões que deixa a gente com uma pulga atrás da orelha. É ou não é? Processos que se arrastam por anos e mais anos... Parece que não interessa a ninguém o desfecho. Principalmente quando o caso é de corrupção.  Isso é coisa do Brasil. Ou de outros lugares parecidos com o nosso. Entretanto, tem país sério que resolve em poucos dias casos de corrupção. É verdade. Pode acreditar. Será que a nossa justiça é injusta? Sabe que acabei de ficar triste.

Continua semana que vem...

sexta-feira, 4 de março de 2016

A Menina do Rochedo - Parte 1

A MENINA DO ROCHEDO
- José Timotheo -

Essa história pode ser real ou não. Isso não importa muito. Tudo parece um conto de fadas, mas também pode não ser. E se não for, que importância pode ter em pleno século vinte e um?
         Eu já não sou um garoto e lá vão décadas. Estava em uma das praias do sul da Bahia, e não era domingo. Tudo deserto. Não sei como ali cheguei. Eu, o céu, o mar e as ondas que vinham se arrastando pela areia até bater na sola dos meus pés. A água estava um gelo. Quando roçava em mim, me fazia tremer. Mas até que era um choque gostoso. Como gostoso, se nunca fui chegado à água fria? Mas até que aquela água, que quase congelava, estava me dando um prazer danado. Estava me fazendo ficar sem pensar em (quase) nada. Isso já era um tremendo sucesso, para quem carregava o estresse à tira colo vinte e quatro horas por dia. Estava de barriga para cima e ainda apreciava o céu azul. Não me lembro de algum outro dia ter ficado assim. Estava me sentindo confortável e bem relaxado. Não sei o tempo que assim fiquei. De repente me passou pela cabeça que eu podia estar morto. Um calafrio tomou conta do meu corpo. Um impulso natural foi de me mexer. E assim fiz. Mas depois me belisquei. Doeu. Aí falei pra mim mesmo: estou vivo. Isso me fez voltar ao estado inicial de bem estar.  Enfiei os cotovelos na areia, firmei os calcanhares e lancei-me um pouco mais em direção ao mar. Imediatamente uma onda forte cobriu-me o corpo. Fiquei debaixo d’água. Fechei os olhos por precaução mas não fiquei com medo. Para quem não consegue encostar a cara na lâmina d´água, foi uma senhora vitória. Fiquei ali um tempo que não sei precisar. A onda ia e vinha. Cobriu-me várias vezes. Já estava com o corpo quase coberto de areia, quando resolvi abrir os olhos. O susto foi grande: quatro urubus se aproximavam malandramente. Será que achavam que eu estava morto? Tinham cara de fome. O jeito não era de bons amigos. Olhei-os meio preocupado. A determinação do quarteto era visível. De repente estava morto mesmo e não sabia. Mexi a cabeça, mas eles continuaram se aproximando. Então resolvi levantar, mas não os intimidei muito. Afastaram-se um pouco e só. Me olhavam e eu os olhava, mas já demonstrando que não estava muito à vontade. Fui recuando, mas sem tirar os olhos deles. Nisso pousaram mais alguns. E eu continuei recuando. E eles vinham caminhando na minha direção. Dei mais uns dois passos para trás, tropecei em alguma coisa e caí. Ao tentar me levantar, olhei para ver no que havia tropeçado. Gritei tudo que tinha direito. O pavor estava estampado na minha cara, com certeza. O grito foi tão alto, que os urubus quase se chocaram ao partirem em fuga. Não sei como me levantei tão rápido. Mas fiquei em pé e corri para me afastar dali, imediatamente.  Corri o máximo que pude. Parei, só por conta da exaustão. Estava ofegante. A respiração era um descompasso só. Joguei-me na areia. Respirava fundo e soltava o ar bem devagar, procurando equilibrar corpo e alma. Parecia que já estava batendo as botas. Aquela cara olhando pra mim, me causava arrepios de pavor. Procurei em volta para ver se localizava alguém e nada. Queria dividir aquele desprazer com alguém. Mas nenhuma viva alma estava nos arredores. Parecia que estava numa cidade fantasma. Cidade? Ali só tinha areia e mar. Não vi nenhuma construção. Que lugar era aquele? Levantei-me sem muita convicção. No fundo queria ficar estirado ali para sempre. Olhei na direção de onde tinha vindo. Não acreditei que havia corrido aquela extensão toda. Devia ter batido os cem metros rasos, mole, mole! O que fazer? Não podia recuar sempre. De repente era tudo mentira. Pura imaginação. Mas tinha que ir lá e confirmar. Tentei colocar o medo sentado na areia, mas não tive sucesso. Peguei-o novamente. Se era pra eu ir até lá, que fossemos juntos. Sempre foi assim e agora não ia ser diferente. Tomei coragem, resolvi ir até o local e olhar cara a cara para o que me causou medo. Olhei as marcas que estavam cravadas na areia. Pelo menos podia voltar por elas. E assim eu fiz. Mas voltei de costas. Pisava dentro das marcas que estavam na areia. Ajeitava um pé de cada vez sem pressa nenhuma. Também, eu só ia olhar para a coisa, quando estivesse cravando meu pé na última cova, quer dizer, na última marca.  Assim fui naqueles quase 100  metros ou mais. Fiquei parado sem ter coragem de olhar para trás e para baixo. A coisa estava quase encostada no meu pé esquerdo. Respirei fundo e olhei. Meu Deus! Quase caí! Aquilo olhava para mim, sem olhos. Mas olhava. Os peixes tinham comido tudo, só deixando os ossos. Não dava para saber se era homem ou mulher. A única coisa que ainda existia, eram os cabelos. Curtos e ruivos. Pareciam ruivos.  Aonde deveria estar os órgãos sexuais, era um buraco. Os órgãos internos tinham sido devorados também. Tive vontade de vomitar. Fechei os olhos e respirei fundo. Ao abrir levei mais um susto: de dentro da cavidade ocular saia um siri. Achei que aquela pessoa tinha sido assassinada. Estava sem nenhuma roupa. Peixe não come roupa, não come sapato. Morreu de que? Achei melhor me afastar dali. Se chegasse alguém, eu não teria o que explicar. Mas se não tivesse o que explicar, qual era o problema? O pior seria explicar o medo. Não tem explicação. Ou tem? Todo mundo tem medo. Como não sou diferente dos outros, tenho muito medo também. Fui saindo devagar. De repente achei que o morto pudesse segurar a minha perna, aí preferi dar um pulo e sair correndo de novo.  Agora corri para o outro lado. Tive que pular por cima do defunto, e procurar me distanciar o máximo. Pensei na cerveja novamente. A sede apertou. Mas não tinha nenhuma barraca na redondeza. Aí me lembrei do carro. Dirigir depois de beber?  Nem pensar, entretanto continuava com sede. Surgiu mais um problema: o carro estava perto do defunto.

                              ...Continua semana que vem...