segunda-feira, 21 de março de 2016

A Menina do Rochedo - Parte 3

Continuando...

Só em pensar que Omar pudesse ter sido corrupto, meus olhos se encheram de lágrimas. Não posso nem enxugá-los, pois estou com as mãos cheias de areia. Será que ele chorava? É difícil imaginar uma pessoa que já está sem olhos, chorar. Eu fechei os meus e tentei imaginar Omar chorando e não consegui. Ele não tinha cara. Toda vez que tentava, saía um siri do buraco onde podia estar o olho. Muito complicado. Eu tinha que tentar dar alguma forma aquele rosto. Ou melhor, tentar fazer um rosto. É chato para cacete conversar com alguém sem rosto. Olhei em volta e achei algumas amêndoas. Peguei duas e fiz os olhos. Achei mais adiante um copinho de plástico para servir café. Botei na cavidade bucal. O nariz eu fiz com barro que estava num vaso de planta, jogado perto do carro. Mas não estava legal aquela cara. Parecia uma caricatura. Não podia fazer isso com ele. Só o nariz estava menos pior. Andei um pouquinho pela areia e acabei achando uma coisa perfeita: uma boneca de pano, com a cabeça de plástico. Por coincidência era um boneco. Se fosse boneca ia ser uma tremenda encrenca. Como mudar de nome? Arranjar um nome feminino ia ser complicado. Ele já devia estar acostumado com o nome que eu dei. Voltei até o carro e peguei um canivete. Cortei a cabeça ao meio, de cima para baixo. Tentei vestir o crânio, mas não deu. A cabeça do boneco era um pouquinho menor. Então dei uns cortes e consegui abri-la um pouco. Encaixou mais ou menos. Mas pelo menos ele agora tinha um rosto. Não é que casou bem com o nome! Omar está bom. Falei um pouco com ele, sem olhar no rosto. Agora que tinha um rosto, eu não estava olhando. Conversei normalmente, comentando como estava a maré. Até esqueci que ele não falava nada. Mas fui em frente. Falei que as ondas estavam chegando perto da gente. Olha! Um vôo rasante de um biguá. Eu acho que era. Já que ele nada falou, ficou sendo. Dei uma olhada para a cara dele. Ele sorria. O boneco sorria. Era melhor achar que ele estava sorrindo. De repente deu um estalo: tinha cara de professor! Não! Não podia ser! Professor que é professor é cheio de vida. Não ia ficar ali deitado inerte.  Ter uma falsa doença. Ele tinha cara de falso professor, isso sim! Não, não podia ser um bom professor nem aqui, nem na China. Tinha cara de armador. Aquele cara que é chegado a um “bombril”. Pendurado em sindicato. Pendurado em partido. Esse não é professor. Aquele ali era um mau professor, por isso estava morto. Mas, coitado, senti pena dele. O que será que ele ensinou aos filhos? Acho que vou chorar. Não por ele, mas pela educação do país. Depois desse papo, resolvi dar uma esticada. Andei um pouquinho pela beira d’água. Lembrei de novo da cerveja. O sol estava a pino. Tanto tempo exposto aos raios solares, os meus miolos deviam estar meio cozidos. Aquilo tudo devia ser uma alucinação. Não tinha cadáver nenhum. Respirei fundo e deixei escapar um sorriso. Corri um pouco. Falei bem alto alguma coisa, que não me recordo agora, e me joguei na água. Depois me liguei que estava de calça comprida e tênis. Como é que eu fui pra praia e não coloquei uma sunga? Fui até o carro e peguei um short que estava na mala. Não tinha planos para tomar banho de mar, por isso não tinha trazido a sunga. Fiquei procurando um lugar para trocar de roupa. Perdi um tempão. Depois cai na real: o lugar estava completamente deserto. Então fiquei peladão ali mesmo. Pulei. Gritei. Corri. Não me lembro de algum dia ter pegado um vento no saco. Me senti muito bem. Mas mesmo assim vesti o calção. Voltei para o mar. Novo susto. O morto estava no mesmo lugar. Então não era invenção da minha cabeça? Sentei de novo ao seu lado. Acho que já me simpatizava com ele. Me lembrava alguém. Vasculhei a memória. Andei por cada esquina. Achei uma porção de gente, menos ele. Mas era a cara de alguém. Quem seria? Que importância tem isso agora? Se parece com qualquer um. E não se parece com ninguém. Mas pode parecer com um jornalista? Não pode? Não. Isso não. Não poderia ser um. O jornalista conserva a notícia viva e sem sensacionalismo barato. Ele tem que pertencer a uma imprensa livre, limpa, sem preconceito... Jamais fazer parte de uma imprensa marrom. Falar coisas sérias. Não martelar a desgraça diariamente nas nossas cabeças. Preferir as notícias agradáveis. Infelizmente ele não se parece com um verdadeiro jornalista.  Se ele foi jornalista, vou imaginá-lo numa imprensa saudável. No momento me parece adoentada. Não toda. Espero que seja uma virose passageira. Ninguém aguenta mais assistir um lutador quebrando a sua perna. São várias vezes ao dia a cena sendo repetida. Tem gente até achando que a pessoa tinha mais do que duas pernas. Tem também as cenas de alagamento;  de morros caindo;  de gente desabrigada...  Pra que isso? É melhor cobrar solução para o problema, do que ficar explorando a desgraça alheia. Aquilo de ruim parece que fica tatuado no tempo. No ano seguinte, lá vamos nós presenciar ou passar pelo mesmo problema. Parece um bando de sado masoquista. O que eu sinto, é que tem gente torcendo para que a desgraça se repita. Dizem que a repetição é para que as pessoas fiquem bem informadas. Não. Acho que é para deixar todo mundo apavorado. Olhei para o meu caro defunto. Continuava na dele. Pensei em como tinha pavor em ir a um enterro. Quando ia, ficava do lado de fora do velório. Àquelas mãos em cima do peito me incomodavam. As narinas entupidas de algodão... Ficava pensando no dia da minha morte. Será que iam fazer a mesma coisa? E o ar? Só em pensar que não poderei respirar, com aquelas mexas de algodão entupindo o meu nariz, morro duas vezes. Por que será que estou pensando nisso agora? Até que não é tão difícil ficar do lado de um defunto. É mais difícil engolir história de corrupto. Rouba, mas afirma que não é ladrão. O que é ser ladrão? Pelo que eu vejo, corrupto é um serial killer. Um assassino em série.  Com uma canetada, esse ladrão de colarinho branco, mata mais do que uma guerra. Já imaginou um roubo na área da saúde? Quantas pessoas esse cara pode matar, meu Deus! Medicamentos, aparelhagens... O estrago que os pilantras do ”mensalão” e do “lava jato” fizeram no país... Quantas pessoas morreram? Só Deus sabe! Falando em Deus. Omar, você acredita em Deus? Pode meditar o quanto quiser. Se não estiver a fim de responder, pode ficar a vontade. Mas cá entre nós, pra você que está morto deve ser mais fácil. Acredito muito que você deva estar mais perto do criador. Mas eu não sei se você acredita nisso. Também se você for para outro lado lá em cima, tipo purgatório, aí não vai acreditar mesmo na existência de um Deus! Será que você já foi ou ainda vai?  Tem hora que eu sinto você, com vontade de falar alguma coisa. Quer falar da morte? Será pra onde foram os siris que estavam nos seus olhos? Estou aqui pensando... Como eu vim parar nesta praia? Já perguntei isso. Será que o esquecimento foi causado pelo susto? Susto causa amnésia?  Omar olha só! Tem uma porção de pegadas ali na areia! Ué! Eu não estou aqui sozinho? Eu sei que você está aqui também, mas só que você não deixa pegadas. Têm de urubus, siris – será que eles deixam pegadas?-, uma porção de coisas não identificadas... Como é que eu posso afirmar que siri deixa marca na areia? A gente afirma uma porção de coisa que pensamos que é. Essa porção de marca na areia pode não representar nada. Quem sabe não foi à onda! Será que não tenho nada mais importante para pensar?  Tenho que levantar e dar uma esticada nas canelas. Isso não. Me arrepiei todo. Omar é que esticou as canelas. Isso é meio estranho. Ele não tem cara de ortopedista. Me levantei e dei uma corrida até uma pedra que entrava no mar. De repente me lembrei de um poema. –“Tem uma pedra no meu caminho. No meu caminho tem uma pedra.” No meu caminho tem é uma pedreira! Isso sim! Mas aquela pedra ali não tem nada a ver com a minha pedreira. Aquela pedra ali não incomodava a ninguém. Fiquei sentado em cima dela e observei a interação dela com o mar. E com alguns habitantes marinho. Não tinha guerra aparente. Ela era hospedeira.  Alguém tem que ceder. Na vida, pra não ter guerra, alguém tem que engolir sapo.  Uma gaivota mergulhou próximo. E mais outras. Algumas conseguiram se dá bem. Outras ficaram com fome. Não demorou muito e o céu estava cheio de outra espécie de pássaro. Na maior cara de pau, alguns iam roubando o que podiam. Isso é que é tirar o pão da boca.  Eu não sei se é a gaivota que mergulha e pega o peixe ou se é o outro pássaro. De repente esse outro é a gaivota. Sei lá! Mas um deles é o ladrão! Meu Deus! Como tem ladrão nesse mundo! Olhei para um desses pássaros ladrão e achei que ele estava de gravata. Podia ser uma campanha eleitoral. Uma passeata aérea. Sorte que não tinha ônibus para incendiar. Nem vidraça para quebrar. Mas quase que um estilhaço de sardinha bateu na minha cabeça. Só não consegui me esquivar de uma chuva de cocô. Um mundo tão grande e esse pássaro vai cagar logo em cima de mim! Brincadeira né?  Ia perguntar a Omar sobre esses pássaros. Me sentei novamente ao seu lado. Olhei na sua cara, mas perguntei outra coisa: - Será que tem bala perdida por aqui? Perguntei, mas sabendo que não ia ouvir nenhuma resposta. Fiquei olhando e esperando algum milagre. Mas sabia que jamais isso ia acontecer. Ele era um túmulo.  Entretanto, pensando bem, não podia exigir tal façanha dele, tendo em vista que podia estar com as cordas vocais prejudicadas. É ou não é? Não me recordo se, nesse período do meu silêncio, pensei em mais alguma coisa. Isso não tem importância. Omar parecia uma pessoa que sabia guardar segredo.  Realmente estava ali um cara confiável. Enquanto olhava, alguns pássaros pousaram perto. Mais adiante alguns urubus rodearam alguma coisa morta. Devia ser algum peixe. Não consegui identificar nenhum pássaro, mas os urubus, eu reconheci na hora. Como têm urubus nesse país. Não posso só pensar em coisas ruins. Omar! Olha só aquele rochedo! Sabe que eu não tinha observado! Imponente! Será que é uma ilha sem vegetação? Não está dando para saber. Estranho é que às vezes que olhei, observei que tem sempre alguma neblina envolvendo o seu cume. Não é estranho? Ele deve estar bem longe daqui. Aparentemente está pertinho. No mar tudo parece perto, mas a gente, quando arrisca, custa a chegar ao objetivo mirado. Ele é bonito. É ou não é?  Pode ser que do outro lado tenha alguma vegetação. Seria um bom lugar para se visitar. Mas ainda estou preocupado com você. Até agora não achei um jeito, se por acaso alguém chegar, de explicar a sua presença aqui. Olhei para o rochedo mais uma vez. Omar continuava na dele. Sabe, estou me sentindo parte daquele pedregulho. Tem hora que me sinto uma verdadeira pedra. Tenho certeza que nunca o vi. Nesta praia aqui, também nunca tinha estado. Como eu vim parar aqui? Acho que já fiz essa pergunta inúmeras vezes. Então nem adianta insistir, pois já sei a resposta.
                               Continua semana que vem...

Nenhum comentário:

Postar um comentário