Continuando...
Eu me recordo que parei num bar, na beira da estrada. Tinha que me
aliviar... Estava quase me urinando todo. E também aproveitar para comer alguma
coisa. Mas não sei onde fica esse lugar. Só sei que é em algum lugar na estrada
Rio - Bahia. O bar estava bem cheio. A maioria era de caminhoneiros. Consegui
uma mesa do lado do balcão. A poucos centímetros tinha o fogão. Num taxo de
metal, fritavam pastéis. Não precisa nem dizer que o calor era infernal. Por
isso é que a mesa estava vazia. Mas do jeito que estava com sede e fome, caiu
do céu. Não, do inferno. Pedi primeiro uma garrafa de água mineral. Depois
podia mandar um prato feito. Para acompanhar, um refrigerante. A água veio
rápida. Bebi toda quase que num gole só. Foi só o garçom se afastar e uma
mulher, parecia uma cabocla, se aproximou. Perguntou se podia se sentar, já que
o bar estava lotado e a única mesa que tinha cadeiras disponíveis era a minha,
gentilmente concordei. Agradeceu e sentou-se junto com um sorriso bonito e
enigmático. O garçom voltou rapidamente e foi atendê-la. Disse que queria
o de sempre. Ele saiu e voltou como num passe de mágica, com uma cerveja, já
aberta, e uma porção de linguiça. Cheguei a ameaçar uma reclamação, mas preferi
não questionar a morosidade do meu pedido e a rapidez com que a moça foi
atendida. E ela, como que percebendo, se adiantou e ofereceu-me um copo de
cerveja e o tira gosto. Agradeci e peguei um pedaço de linguiça, mas me
esquivei da cerveja, justificando que estava dirigindo. Não comi, devorei o
petisco. Ela me olhava com o seu sorriso enigmático. Não tinha certeza se ela
ria pra mim ou de mim. Também naquele momento não fazia a menor
diferença. Insistiu novamente para que eu aceitasse a cerveja.
Balancei a cabeça negando. Não pude responder, pois ainda estava mastigando um
pedaço de linguiça. Não era das melhores, mas como a fome era grande, não podia
dispensar. E ela continuava me olhando fixamente. Não sei o que
pensava. Pegou a cerveja e encheu o seu copo. Não bebeu, mas começou a
passar a língua em volta da borda. Fez isso, várias vezes. Perdi a noção do
tempo que assim ficou. Não me esqueço daqueles olhos negros amendoados,
cravados nos meus. Não piscou um momento sequer. E aquele sorriso
malicioso! Meu Deus do céu! Eu tremi! Juro por Deus! Eu tremi! Já estava
hipnotizado. Ela então beijou o copo e me ofereceu. Já estava dominado.
Peguei-o e bebi. Não resisti. Não tinha mais força de vontade. Entornei
o copo todo, goela abaixo. Não me lembro de tê-la visto beber. Até aqui a
lembrança está cem por cento. Depois, é um branco só. E o prato feito? Não sei
se comi só o pf. Depois disso tudo, só as ondas batendo nos meus pés. Já olhei
o carro para ver se faltava alguma coisa, mas não consegui detectar nenhum
roubo. A minha capanga estava intacta também. Não faltava dinheiro e nem
documentos. O que será que aconteceu? Estou aqui tentando me lembrar de
algumas caras que vi por lá. Era muito falatório, muita fumaça de cigarro e
muita incerteza. Mas eu me recordo da morena e do garçom. Engraçado que
de vez em quando, pegava ele me olhando. Não o vi atendendo outra mesa. Qual o
significado disso? Acho melhor eu ir embora. Voltar para a estrada e chegar ao
meu destino: Porto Seguro. Mas como deixar Omar aqui? Nós já somos amigos. Acho
que velhos amigos. Um amigo não abandona o outro de jeito nenhum. Já
estou achando que esse cara era bom. Por que será que ele morreu? Tem hora que
penso que vai falar comigo. Aquele medo inicial já foi embora. Não o vejo mais
como uma caveira. Percebo apenas que ele é uma pessoa mais magra do que eu. Sei
que isso é uma coisa muito esquisita. Muita gente vai achar que estou ficando
maluco. Em alguns momentos acho isso também. Nem sei que horas são. Vou pegar
meu celular. Porra! Me roubaram o celular! Por que me levaram o celular e
deixaram o dinheiro, e as outras coisas? Não faz sentido. Ainda mais que era um
celular velho. Só eu mesmo para usar aquele aparelho jurássico. Já estava quase
na hora de jogá-lo na lata do lixo. Às vezes, quando saía de casa, ficava
torcendo para alguém me assaltar e pedir o celular. Quando eu entregasse
aquilo, o cara ia ficar muito revoltado. Omar será que você tem algum celular
ai? Desculpe. Acho que estou ficando maluco mesmo. Você ia ligar pra quem? Na
altura do campeonato os siris devem ter feito ligações para todo oceano
atlântico. Um sirizinho deve ter falado com alguma sirizinha lá em Portugal.
Não vai dar um sorrisinho não? Porra cara, você é sisudo mesmo, hein! Estou com
vontade de ir embora, mas nem sei como sair daqui. Verdade, verdadeira. Omar. A
verdade é que não tenho certeza se estou a fim de ir embora. Estou dividido.
Porra! Vou ou não vou? Vou segredar... Vou falar na sua orelha, ou onde
era. Eu nunca estive num lugar tão sossegado. Verdade! Isso aqui é um paraíso.
Só falta mesmo é uma linda mulher. Já sei que está pensando... Não cara! Eu sou
solteiro! Eu parei aqui, mas estava indo para Porto Seguro. Precisamente
Arraial d’Ajuda. Não conhece? Se não conhece, precisa conhecer. Desculpe. Agora
é tarde, não é? Juro pra você. Se não fosse dar encrenca, colocava seus ossos
dentro do carro e levava você comigo. Ia fazer o maior sucesso por lá. De
repente eu digo que estudo medicina. Não. Não ia colar. Estou olhando pra você
agora e estou achando que você podia ser uma mulher. Você tem cara de
Amaralina. Conheci uma. Era um tremendo pé de cana. Bebia até álcool com
gasolina. Vivia num desses postos de gasolina de beira de estrada. Tinha um
cachorro que a acompanhava. Coitado do bicho. Quando ele lambia a sua cara,
ficava bêbado também. Aqueles dois pareciam que tinham um amor platônico. Mas
quando ela riscava um fósforo para acender o cigarro, o vira lata se afastava
com uma rapidez danada. Não era só ele que tinha medo não, todo mundo achava
que ela podia explodir a qualquer momento. Isso era questão de tempo. Não dá
nem pra rir da situação. Diziam que ela tinha sido uma linda mulher. A cachaça
acabou com ela. O vício é uma merda! Não acha? Falando em vício, até que eu
tomava uma cerva geladinha. Vou dar uma olhada por ai, para ver se encontro
algum ponto por onde eu possa me escafeder. Você observou que o meu carro
está na areia? Estou com medo que ele atole. Mas assim mesmo vou tentar
movimentá-lo. Espera aqui. Engraçado. Aí Omar! Esse carro está com cheiro de
novo! Tenho quase certeza que o meu já tinha perdido o cheirinho de zero, há
muito tempo! A placa é igualzinha, igualzinha! Só que... Estou observando
que ela está muito nova. Tem alguma coisa diferente. Que tem, tem! Mas o
quê? Vejamos: pode ser impressão minha. Vou olhar meus documentos. Olhar pra
quê! Sei que está tudo certo! Acho que deram um capricho nele, lá no posto. Ai
Omar, está tudo certo! A hora que eu quiser, posso ir embora! Com certeza não
me ouviu. Vou ficar lá com ele. Não quero que o meu amigo fique
solitário. Cheguei. Omar eu gostaria de saber ... Sei que na atual
conjuntura isso não vai fazer a menor diferença. Mas como sou um cara curioso,
gostaria de saber se você já se aposentou. Não precisa responder. Já vi
tudo. Está na cara. No primeiro pagamento você enfartou. Foi isso? A pessoa
trabalha a vida toda e na hora da aposentadoria... Eu queria entender. Você
paga vários anos, aí ô! Top! Top! Parece que estão fazendo um grande favor.
Você paga para receber dez salários e quando chega o primeiro pagamento, isso
depois de uma porrada de meses esperando, não vem os dez. No ano seguinte o
aumento não bate com o salário mínimo. Aí você desceu um pouquinho mais. E
assim vai. E ainda colocam a culpa de tudo que está acontecendo no país, nos
aposentados. Isso é uma trama diabólica em cima do povo. O que eles querem é
alinhar todo mundo por baixo. Quando o país estiver com os seus aposentados e
pensionistas ganhando um salário mínimo, aí vai estar do jeito que eles gostam.
Continua semana que vem...
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