terça-feira, 28 de junho de 2022

A Minha Casa Não é Essa - Parte 07

 


Continuar...

           Téo olhava para o menino e não acreditava em nada que ele tinha dito. Mas tinha que entrar naquele universo do faz de contas de qualquer jeito. Não sabia como penetrar naquele mundo, porém ia achar um jeito. Estava na presença de um mentiroso ou uma pessoa perigosa, talvez até um terrorista.

            O menino, já tão escolado na violência e na malandragem, percebendo que o sargento estava muito pensativo, sorriu e tirou-o das suas cismas.

       - Ei, soldado. Aqui parados vamos virar um alvo certo. Ainda não sei como ainda não atiraram.

       - Sargento. Sou um sargento.

          Téo percebeu que ele não iria responder a qualquer pergunta que fizesse naquele momento, sorriu também e falou para que os amigos continuassem caminhando, mas atentos para qualquer movimento suspeito.   

          Os quatros homens e o menino desciam a rua com um olho no padre e outro na missa. O menino reclamou com Téo porque o cano da sua arma ficava batendo nas suas costelas.

         - Soldado...

         - Sargento. – disse Téo mais uma vez.

         - Está bem Sargento. Por favor tira esse cano da metralhadora das minhas costas. Se o senhor tropeçar pode me atingir. E me arranje uma arma para me defender.

         - De jeito nenhum. Mas fique aqui do meu lado. Do meu lado não. Quero você na minha frente.

         - Mas eu não sou inimigo, sargento!

         - Pode ser que sim, mas pode ser que não. A propósito, ainda não sabemos o seu nome.

         O menino emudeceu. Olhava em todas as direções, mas não mirava o sargento. Téo percebendo a dificuldade - preferiu chamar de dificuldade essa hesitação – e insistiu:

          - Ué! Você tem um nome, não tem? Qual a dificuldade?

          Finalmente o menino falou:

          - É. Sabe que eu não sei o meu nome? É muito chato a gente não saber quem a gente é. Mas no hospital me deram um nome: Mohammed. Sou Mohammed, mas não sou daqui. Essa não é a minha casa. E com certeza esse não é o meu nome.

         Téo ficou observando a expressão do menino para tentar descobrir se ele estava escondendo alguma coisa. Depois de algum tempo em silêncio ele disse:

          - Mohammed, eles deram alta para você sem saber a sua origem? Como é que você sabe que você é realmente brasileiro?

          O menino titubeou para responder. Parecia que procurava alguma resposta que fosse convincente. Téo estava atento para pegar qualquer coisa que tentasse ludibria-lo. Mohammed abaixou a cabeça e com as duas mãos, socou-a violentamente e em seguida sacudiu-a bruscamente. O sargento interviu rapidamente, segurando a sua mão e falando calmamente:

         - O que houve? Calma. Assim você vai arrancar a cabeça do pescoço. O que houve?

        - Eu não sei. Tem hora que os pensamentos se embolam na minha cabeça. Parece que vai explodir.

        - Eu só fiz duas perguntas.

          - Eu sei. Depois que eu acordei eles fizeram uma porção de perguntas, em inglês, e eu entendi tudo, só que eu não consegui responder. Disseram que a minha saúde estava ótima. E perguntaram pelos meus pais. Mas eu nada falei. Mas insistiram e eu continuei mudo. Suspeitaram que eu fosse americano. Depois acharam que eu podia ser brasileiro. Não sei até hoje de onde tiraram isso.   

 ............Continua semana que vem!

terça-feira, 21 de junho de 2022

A Minha Casa Não é Essa - Parte 06

 


Continua...

            Téo mirou o garoto, ficou pensativo, mas não respondeu à sua pergunta. Depois coçou a sua barba que estava por fazer, e do seu olhar brotou interrogações. Estava desconfiando dele, mas por outro lado sentia muita simpatia também. Não sabia de onde vinha esse gostar de uma pessoa que via pela primeira vez. A sensação era de que já o conhecesse há muito tempo. De repente a sua cara se iluminou e disse de supetão:

           - Ei menino. Estou aqui pensando numa coisa: como é que você tem acesso a esses bandidos e como estrangeiro nunca foi molestado por eles? Pelo o que eu sei, eles matam qualquer um, principalmente estrangeiros, que não apoiam a sua causa. Matam até gente do seu próprio povo, que são contrários a eles! Você consegue responder?

           - Esses bandidos não defendem causa nenhuma. Explicar, explicar eu não sei. Acho que é por eu não atrapalhar ninguém.  E eu falo a língua deles. Pensam que sou gente deles. No hospital eu aprendi a falar algumas línguas mais faladas no Afeganistão. Não sei como aprendi. Acordei entendendo e falando umas línguas estranhas. Mas parecia que eu sempre soubera. Depois de meses me deram alta, só que não sabia para onde ir. Aí encontrei alguns meninos, todos sem pai nem mãe, que viviam se virando para sobreviver. Aonde tinha escombros, lá estavam eles. E eu, como já cheguei falando a língua deles – até hoje eles pensam que sou igual a eles – fui aceito de imediato.

          - E como é que você chegou às armas?

          - Nós começamos a achar nas casas que tinham sido derrubadas por bombardeios. Aí fomos guardando. Tivemos que arranjar um esconderijo. Em um desses escombros encontramos um buraco. Um dos colegas mais corajosos entrou... – fez uma pequena pausa - e sumiu! Ninguém conseguia vê-lo. Começamos a ficar preocupados. Não podíamos gritar para não chamar atenção. A aflição era muita. E ninguém encontrava coragem para ir atrás dele. Já tinha passado quase meia hora, quando ele voltou. E voltou sorridente.

           - O que foi que ele achou? –  o grandalhão John, cheio de curiosidade, questionou-o.  

          O menino, antes de responder, sorriu. Tinha percebido o quanto era curioso o soldado John. Olhou-o bem na cara e disse, deixando em algumas frases um pouquinho de deboche:

          - Um lugar cheio de comida! Era tudo enlatado, mas era comida! Comida americana! Comida de vocês! Nos fartamos! E muita água – baixando o tom - em garrafas também. Encontramos o paraíso. Mas no meio daquilo tudo, ainda descobrimos dinheiro - dólar - e algumas armas. Essas armas, tudo revolveres, estavam numa caixa fechada. Ainda não tinha sido aberta. Então, depois de prepararmos a entrada direito – escondemos o máximo que pudemos – começamos a levar as armas que achávamos para lá. Mas aí surgiu um problema: o que é que a gente ia fazer com todas aquelas armas? A quantidade era muita. E o local já estava ficando apertado. Aí um dos garotos deu a ideia de vendermos. Ele já até sabia para quem.

          - E quem é essa pessoa? – Téo perguntou com firmeza.

           - É um parente dele ou quase parente, não sei direito. No início ele comprava tudo o que a gente achava. De armas que não funcionariam nunca, até uma infinidade de bugigangas. Passado um tempo, começou a selecionar todo o nosso achado. As armas muito danificadas, ele não quis mais, só ficando com as que, dizia, podia recuperar.  Alguém comentou que tínhamos armas novas, sem uso. Na hora ele disse que comprava tudo. Esfregou as mãos e abriu um sorriso de orelha a orelha. Dava até para ver a garganta. Sem rodeios perguntou logo onde estava tudo guardado:

           - Armas novas! Aonde é que vocês guardam? Isso me interessa muito! Posso ir lá! Compro tudo e pago muito bem! Dinheiro vivo!

          Quase que esse colega, que é parente ou só conhecido, entrega a nossa mina. Mas eu fui rápido e não deixei que desse o nosso esconderijo. Senti naquele momento que aquele senhor, até que não é muito velho, não era boa pessoa. Ele é perigoso, isso sim! Então, na hora, sugeri que o melhor era marcar em um lugar neutro, a partir daquele dia, para fazermos negócio. Percebi que ficou contrariado. Mas, não sei se foi por causa da minha firmeza, acabou aceitando, mesmo a contragosto. Sentiu que não tinha jeito mesmo. E assim começamos a negociar em campo neutro. E vendemos algumas dessas armas para ele. Ainda temos algumas guardadas. Só vamos vender em caso de emergência.

          - Por que? – perguntou curioso o sargento.

          - Diminuiu muito os nossos achados.  Eu vim para cá, porque um amigo escutou que tinha tido um atentado aqui na região. E que ainda os corpos e armas estavam espalhados pela rua. 

.......Continua semana que vem!

terça-feira, 14 de junho de 2022

A Minha Casa Nao é Essa - Parte 05

 


Continuando...

           - Eu não me lembro direito. Dizem que fiquei três meses dormindo.

           - E os seus pais? – interrogou-o outro soldado de nome Peter: um magricela com quase dois metros de altura, que mais parecia uma vara de bambu.

          O menino olhou-o, e antes de responder, passou as costas da mão em um dos olhos, enxugando uma lágrima que acabara de escorrer. Depois passou no outro olho, aí sim é que foi falar:

          - Eu não sei. Não consigo me lembrar. Eu falei que era brasileiro, mas também não tenho certeza. Nem meu nome eu sei.

          - Você está com amnésia. Tem muito tempo? – perguntou o quarto soldado, um baixinho troncudo, mais conhecido como apache.

         O menino ficou por alguns segundos sem responder, enquanto passava os olhos por aqueles corpos espalhados pelo chão. Téo teve a sensação que ele já estava acostumado com aquela cena de sangue, visto que olhava sem demonstrar qualquer emoção. Depois do silêncio, ele disse:

          - Acho que já tem um ano. Eu só sei da minha vida, quando abri o olho no hospital. Parece que já nasci com esse tamanho.

         O soldado magricela de nome Peter, aproximou-se de Téo e cochichou no seu ouvido:

        - Sargento, eu acho que esse garoto está inventando essa história toda. Ele deve ser um terrorista. Ele só tem cara de criança. Vamos leva-lo com a gente. Lá, querendo ou não querendo, ele vai falar tudo. A amnésia dele vai sair correndo!

       O amigo coçou a cabeça, sem tirar os olhos do menino e falou baixinho na sua orelha:

         - Peter. Peter. Você sabe que o seu método o comando não vai aceitar. Nem eu. Eu sei que esse menino é suspeito, e que não temos nenhuma alternativa, a não ser leva-lo preso. Sei que ele é muito esperto. De bobo não tem nada. E que não podemos tirar o olho de cima dele, nem por um segundo. Sei de tudo, Peter. Mas não posso aceitar tortura. Acho que não é terrorista, mas também não devemos facilitar. Viu como John quase deu cabo dele? E ainda continua com vontade. Mas vai ficar na vontade. Esquece Peter. Temos que recolher logo essas armas daqui.

         - E os corpos?

         - Ficam onde estão.

         - Eu sei. Estou falando sobre a identificação.

         - Um destacamento da OTAN depois faz o reconhecimento deles. Se fossem americanos, pegávamos a identificação de cada um. É melhor a gente sair daqui, para não termos surpresas. O garoto vai com a gente.

         - Está bem. Apache, John, vamos pegar essas armas, antes que sejam recolhidas pelos terroristas. E vamos sair logo daqui para não sermos surpreendidos.

         O sargento Téo pegou uma metralhadora que ainda estava dependurada no ombro do garoto e entregou-a a Apache. Depois mandou que o garoto seguisse na sua frente. O menino fez cara feia, mas obedeceu. E os cinco foram caminhando, e pulando os corpos, para sair dali e pegar a direção do centro da capital, Cabul.

          A periferia em que os quatro soldados e o menino estavam era um local muito perigoso.  Eles sabiam disso e a atenção era sempre dobrada. Não era à toa que de vez em quando algum destacamento era pego de surpresa, como aquele que não tinha sobrado nenhuma viva alma para contar a história. Eram mais de quinze corpos mutilados por bombas e tiros.

           O menino de repente parou. Téo então o empurrou com a ponta da metralhadora, mas ele fincou pé, virou-se e falou baixinho:

           - Está vendo aqueles escombros? Aquele lá à esquerda.

           - O que é que tem?

           - Tem gente de tocaia. Vão nos pegar.

           Téo a princípio duvidou. Mas por via das dúvidas, chamou os seus comandados:

            - Apache, John, Peter. Venham até aqui, mas devagar. Menino eu estou com a arma engatilhada. Se forem seus amigos, o primeiro a tombar vai ser você.

            - Se fossem meus amigos eu ia avisar? Eu nem conheço quem está lá. 

            - Como é que você sabe que tem gente de tocaia?

            - Eu sinto o cheiro de bandidos. Me acostumei na convivência com eles. Eles têm um cheiro que sinto a quilômetros.

            - Quem são eles? São Talibãs?

            - Não. Por aqui não tem Talibã. Tem ladrões espalhados por tudo que é lugar. E tem muitos milicianos também. Esses não têm ideologia. Só querem dinheiro. Lutam para quem der mais.

            - Você conhece esse tipo de gente e assim mesmo vende armas para eles?

            - Não. Eu nem conheço eles. Eu vendo para uma pessoa, que nem sei o nome. Mas é para sobreviver. Só para não morrer de fome. Além do mais, a maioria das armas já está inutilizada mesmo! Essas daí, - apontando para algumas metralhadoras retorcidas -  vão recolher para quê? 

 

...........Continua semana que vem!

terça-feira, 7 de junho de 2022

A Minha Casa Não é Essa - Parte 04

 


Continuando...

          NA GUERRA

 

           O dia amanheceu cheio de poeira avermelhada. Um menino corria pela rua e olhava os vários corpos que jaziam estendidos, sem nenhum resto de vida, vitimados por um atentado, talvez de madrugada.

          - Stop! – gritou um soldado americano, enquanto apontava uma metralhadora na direção do menino, que parou instantaneamente.

          Olhos arregalados mirava o soldado que estava a apenas poucos metros à sua frente. O grandalhão, mesmo com o olhar apavorado do menino, preparou a sua arma para atirar, mas foi travado pelo colega, que pressentiu o que ia acontecer. Falou alguma coisa e colocou a mão em cima da arma, pressionando-a para baixo. Disse mais alguma coisa, próximo a sua orelha, e caminhou em direção ao menino, que ainda estava estatelado no meio de alguns cadáveres. Parou na sua frente e falou em inglês, perguntando o que ele estava fazendo ali no meio daqueles soldados mortos.

          O menino entendeu o que ele perguntara, não sentiu qualquer ameaça na sua voz, esboçando um sorriso, falou:

          - Puxa!

          O soldado sorriu também e falou em português:

          - Ué! Você falou em português! Mas você entendeu o que eu perguntei?

          - Sim.

           - Você é Afegão, não é?

           - Não. Sou brasileiro.

           - Eu também. Meio brasileiro. – Téo falou batendo levemente no peito.

           - Verdade? Puxa vida! Eu pensei que hoje fosse morrer!

           - Foi milagre. Nem sei como consegui que o amigo não atirasse em você. Não sei por que fiz isso, mas parece que estava adivinhando que você era da terra da minha mãe. Sou brasileiro, mas tenho a cidadania americana também.

          - Acho que nasci de novo.

          - O que é que você está fazendo aqui e pegando essas armas?

          O menino abaixou a cabeça e parecia que pensava em alguma coisa. Talvez uma desculpa. Depois levantou-a, parecendo que já tinha a resposta na ponta da língua. Mas a voz não saiu e os seus olhos encheram-se de lágrimas. O soldado parecia comovido com a cena, já o outro, que estivera prestes a atirar, gritou, em inglês, para ele, ainda com a arma apontado para o menino. Téo então levantou o braço direito pedindo para que ele esperasse. Depois de algum tempo virou-se e falou para o amigo:

          - Calma John. Calma. Descobri que o menino é brasileiro.

          - Verdade Téo? Mas porque ele está pegando essas armas?

          - Isso eu vou saber agora.

           - Resolve isso logo, porque temos que sair daqui. Vamos pegar essas armas e ir em frente.

          - Tudo bem, John.

          Téo, já que o menino continuava calado, preso a uma forte emoção, foi até ele e pegou-o pelo braço e retirou-o do meio dos soldados mortos. Depois fez novamente a pergunta, aí o menino, parecendo mais equilibrado, respondeu:

          - Estou recolhendo as armas que eu posso pegar para vendê-las.

          - Ué! Vendê-las?

             Nisso o grandalhão do John, que tinha se mantido afastado, gritou:

          - Téo, o que o menino está falando? Não estou entendo nada!

          - Você não está entendendo, porque ele está falando em português.

          - Ele não fala em inglês, não?

          - Vem até aqui e pergunta a ele!

           John levantou de novo o cano da metralhadora na direção do menino e se juntou a Téo, seguido de outros dois soldados. Sem deixar de apontar a arma, mirou-o de cima a baixo, falou entre dentes:

            - Aí menino, não gostei de você. Te acho estranho. Por um acaso fala a minha língua?

            O garoto encarou-o com altivez e respondeu:

            - Claro que falo. Não só o inglês e o português, como também três línguas faladas aqui: farsi, pashtu e dari.

           - Téo, o garoto é letrado! – falou com deboche - Quantos anos você tem?

           - Não sei bem. Depois do atentado, muita coisa fugiu da minha cabeça.

           - Que atentado? – Téo perguntou curioso. 

 

........Continua Semana que vem!