terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A História de Helô - Parte 21

Continua...

          Helô resolveu voltar para a janela. Mal chegou, um vento leve entrou e encheu o alojamento de um frescor acompanhado de um perfume que não conseguiu identificar. Do lado de fora, a vegetação parecia que estava sendo acariciada pelo vento. Alguma coisa fez com que voltasse o olhar para o interior do alojamento. De repente uma luz clara inundou o ambiente e em frações de segundos foi tomando a forma de uma mulher. Era a entidade que voltava a aparecer para Helô. Ela a reconheceu mas assim mesmo levou um baita susto com a visão. Depois sorriu, mostrando que tinha superado o choque inicial e que as suas emoções estavam equilibradas. A aparição, sentindo que realmente estava tudo bem com a menina, flutuou em sua direção. Helô ficou deslumbrada com aquela cena, mas não entendeu como uma pessoa podia andar sem pisar no chão. Era assim que via a entidade: uma pessoa.  Nesse momento ela sorriu, mas veio um sorriso de incredulidade. De repente na sua cabeça se instalou uma dúvida: seria aquela visão fruto da sua imaginação? A entidade captando o seu pensamento, disse:
          - Não, Helô!  Você não está sonhando! Minha filha, você tem me ouvido e agora pode me ver! E isso é muito bom!
          - Mas, irmã...
          - Não precisa articular as palavras, apenas pense. As pessoas podem ouvi-la, aí... E ninguém precisa saber que você fala com um “fantasma”.
          - Mas a senhora é um fantasma, mesmo?      
          - Não, Helô! Foi brincadeira! Só estou em outra dimensão,  mas  você pode me ver e ouvir. São poucas as pessoas encarnadas que têm esse dom. Você é uma exceção.
          - Sou? Sou mesmo? Irmã, eu penso que estou sonhando.
          - Não, minha filha, isso tudo é real. Agora só me escute. Mais tarde poderemos voltar à gruta. Os olhos estarão voltados para outras direções.
          - Que direção?
          - Isso é modo de falar.
          Helô ficou olhando a entidade embevecida. De repente sorriu e pensou:
          - É a Madre Maria de Lourdes!
         Só foi ela pensar e a aparição confirmou o seu nome:
          - Você está certa. Há muitos anos eu dirigi esse convento, mas isso tem muito tempo para vocês. Do lado de cá, o tempo é diferente. Não sei nem como explicar, mas isso não importa. Ah! Viu como você falou direto sem abrir a boca? Isso é muito bom! Assim você não corre o risco de pegarem-na falando sozinha.
A entidade sorriu antes de terminar a frase. Helô acabou sorrindo também. Tinha entendido a colocação da Madre Maria de Lourdes.
          O almoço já tinha terminado. As crianças foram informadas que estavam liberadas das aulas da tarde. Logo uma agitação tomou conta de todas, ensaiaram uma correria. A irmã que estava designada para tomar conta da disciplina, que era a irmã Gertrudes, barrou as crianças na saída fechando a porta atrás de si. Como por encanto todas pararam. A irmã sorriu e, sem falar nada, abriu uma das bandas da porta. Ficaram em fila e foram saindo uma de cada vez, mas quando se viram no corredor a correria foi generalizada. Cada grupo ia para um canto diferente. As crianças mais novas foram para o parquinho, as acima de quatorze anos foram para a biblioteca, somente Helô foi para o alojamento. Escovou os dentes e foi até a janela. Em pouco tempo a entidade apareceu e chamou-a:
          - Vamos, Helô. Hoje vai ser um dia importantíssimo. Minha filha, aconteça o que acontecer você terá que manter a calma, e não se esqueça que estarei sempre do seu lado. Você poderá constatar isso porque agora não fico mais invisível na sua presença. Sei que está com muita responsabilidade em cima do seu ombro, mesmo sendo uma criança com apenas onze anos, mas está mais preparada do que muitos adultos. E você não vai falhar. Eu sei que não. Vamos?
          - Sim, Madre. Já estou indo.
          Saiu do alojamento sorrindo.  Como estava sozinha não se preocupou, mas mesmo assim colocou a mão na frente da boca. O riso era reflexo de um pensamento que veio à cabeça.
          - Como podia conversar com uma pessoa sem falar?
          A menina foi sorrindo até aproximar-se do pomar, mas parou ao avistar suas duas amigas, Sílvia e Bela, que acabavam de subir numa árvore. Estancou seus passos e demonstrou preocupação. Sabia que daquela árvore seria vista por elas. Então pediu socorro à entidade, que ia à sua frente.
          - Madre, não tem como eu passar! Elas vão me ver!
          - Calma! Pode vir. Continue andando sem preocupação. Elas não vão  vê-la. Ninguém neste momento vai pousar os olhos em você. Você acabou de ficar invisível.
         - Como assim? Ninguém vai me ver mais? Pra sempre?
         - Não, Helô! É só agora! Eu só escondi você dos olhos delas! Pode vir.
         Depois do pequeno susto Helô foi caminhando, mas titubeante. Não estava muito convicta de que não seria vista, tanto que mais à frente deu uma paradinha ao avistar Alécia, outra colega. A entidade então, com um gesto de mão, chamou-a. Mesmo receosa obedeceu. Foi caminhando vagarosamente até aproximar-se da menina. Bem em frente dela, parou.  Aí é que se sentiu realmente invisível, quando não foi notada por ela. Para certificar-se da sua invisibilidade deu uma volta em torno da colega. Constatando o que afirmara a entidade, sorriu e saiu pulando. A Madre Maria de Lourdes sorriu também. Sabia que, mesmo com toda a maturidade que Helô apresentava, ela era uma criança. 
...............Continua semana que vem!

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

MORATÓRIA





Acaba de ser publicado no Youtube mais uma canção do CD Refiz Estradas, que em forma de vídeo, entra na rede, levando essa parceria com Martha Taruma (que também canta na gravação), para lugares que nunca antes seria possível.  Confiram.

A História de Helô - Parte 20

Continuando...

          Antes da missa habitual, realizada sempre às dez horas, o padre e o senhor faziam uma caminhada, juntamente com a Madre, pela propriedade e aproveitavam para fazer um agrado às crianças distribuindo presentes. O tal senhor queria confirmar se o seu dinheiro era bem usado na conservação dos prédios e no conforto das crianças. Os alojamentos das meninas tinham que estar sempre um brinco e a sua preocupação ia mais além: queria que todas estivessem bem de saúde. Enquanto caminhava, dizia para a Madre:
          - Joana, eu quero as minhas meninas sempre saudáveis. O meu trabalho é injetar dinheiro aqui e o seu dever, Joana, é manter tudo em ordem. Esse meu investimento tem que me dar muito lucro e prazer, é claro! Muito prazer! E a Madre sabe o quanto sou generoso, não é Joana?
          - Claro! Claro, senhor! Pode ficar certo que os nossos negócios vão de vento em popa! Eu cuido bem das galinhas dos ovos de ouro! A nossa parceria vem dando certo há muito tempo, não vai ser agora que vai deixar de funcionar. É ou não é?
          O misterioso senhor deu um sorriso de satisfação, respirou fundo, estufou o peito e disse baixinho, quase colado ao ouvido da madre:
          - É claro, Jo... madre! E os nossos investimentos? Tudo sob controle?
          - Já estão à espera no meu quarto, digo, no meu escritório.
          - Então, logo logo vou conferir.
          O padre Arcanjo, que estava do outro lado da madre, falou rapidamente:
         - E eu também! Não se esqueça de mim!
        - Claro, meu bom amigo Arcanjo! Padre Ancanjo! Como vou esquecê-lo? Somos um trio imbatível, não é, irmã?
          A Madre Joana de Maria não respondeu com palavras, mas confirmou com um gesto afirmativo de cabeça, depois mudou o caminho da prosa, já que andava preocupada com o rumo político do país, e cutucou o senhor:
          - Sócio, ando meio preocupada. Essa onda de político envolvido  em  corrupção vai pegá-lo?
          - Não, minha querida Madre! Isso tudo é só fumaça!
          - Mas tem gente indo presa!
          - É um ou outro indo para o sacrifício! Em toda boiada tem um boi de piranha e lá em cima não é diferente. Em prol da segurança da câmara e do congresso alguém tem que se sacrificar. Logo logo o povo esquece e o boi de piranha está de volta para o seio da sua boiada! No nosso metiê, o boi volta. Tudo é feito para acalmar o povo. Depois eles se esquecem de tudo. A memória deles é curta. Assim sempre foi e assim sempre será.
          - Será mesmo?
          - Qualquer R$50,00 faz o cara mudar de opinião.
          - Mas a coisa está ficando preta!
          - É tudo fachada. A oposição que ataca hoje, amanhã será atacada. O bandido de hoje é o mocinho de amanhã, e somos todos amigos.
           - Mas o povo pode cobrar isso na próxima eleição. Não tem medo?
           - Minha cara Joana, o povo esquece tudo. A memória nacional é estrangeira.
          E continuaram caminhando pela propriedade em conversa quase muda, seguidos à distância pela criançada e por algumas irmãs.
          No dia seguinte, a manhã acordou com trovoadas mas não parecia que ia chover. No céu do convento o sol flutuava majestoso. Não se via nuvem alguma. Raios riscavam o céu num horizonte quase perdido da nossa visão. O trovão apenas mandava o seu eco, talvez avisando que o que acontece de ruim na casa do vizinho pode chegar até a nossa casa também.  Helô foi acordada pelo barulho. Chegou até a janela, abriu-a e ficou satisfeita ao ver que o sol brilhava. Olhou para o céu e deixou que os raios solares batessem no seu rosto, depois respirou fundo um ar fresco que vinha da mata. Não entendeu a trovoada com o céu limpo, mas, como já tinha acontecido isso em outras vezes, não se preocupou. Na verdade ela gostava quando chovia. E se essa chuva viesse acompanhada de trovoadas e raios cortando o céu, aí ficava melhor. Nunca soube porque  gostava tanto disso enquanto a maioria das crianças se borrava de medo e algumas até se escondiam debaixo das camas. Não se preocupava com isso, sabia que cada um tem medo de uma coisa e ela também tinha. Quase se borrava na presença da Madre Joana, mas achava que um dia ia deixar de sentir esse medo. Rezava pra Deus, com a cabeça no travesseiro, pedindo para Ele acabar com esse seu medo.   
          A menina ia fechar a janela, mas desistiu. Apoiou os cotovelos no parapeito e ficou olhando para o pomar, que não ficava distante dali. As crianças ainda dormiam, pois, especialmente naquela quinta feira, não teriam aula pela manhã. Ninguém sabia dizer o porquê, mas a madre substituiu-as por atividades recreativas e, então, as crianças poderiam ficar mais um tempinho na cama. Helô não tinha tido uma noite bem dormida. Levantou cedo e ficou ali na janela, depois foi andar pelo alojamento. Ele era bem grande, com divisórias. As crianças até 14 anos ficavam numa ala e as outras acima de 15 anos ficavam em outra ala. Esse setor era subdividido em pequenos cômodos com porta, contendo três camas. Uma das portas estava aberta e era das três meninas, as mais velhas, duas de dezesseis anos e uma de quinze, que tinham ido, no dia anterior, para o escritório da Madre, levadas pela irmã Eva. Foram num pé e voltaram num outro. Chegaram cabisbaixas. Tomaram banho, trocaram de roupa e saíram novamente. Helô não conseguiu saber o que tinha acontecido com elas e ficou olhando para as três camas vazias. Ela não entendia o porquê das meninas não terem voltado para dormir. Ela já tinha visto isso acontecer outras vezes, mas ninguém nunca falou nada a respeito. Tudo acabava no esquecimento. 
...................Continua semana que vem!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A História de Helô - Parte 19

Continuando...

Os olhos de Helô furavam cada cantinho da recepção. De repente parou o olhar num quadro que ficava acima da mesa da recepcionista. Era um quadro retangular composto por vários retratos de antigas diretoras do convento. Não contou, mas devia ter mais de vinte. Em um dos retratos ela parou. O seu coração disparou. Estava diante da foto da aparição, não teve dúvidas. Era ela mesma: Madre Maria de Lourdes.  Tinha sido a quarta diretora, comandou a instituição por mais de quarenta anos. Helô juntou emoção com medo e saiu em disparada. Na saída quase se chocou com a irmã Fátima. Ela ainda tentou pegá-la pelo braço, mas não conseguindo, gritou:
          - O que foi,  Helô?  Viu um fantasma? Volta aqui, menina!
          Com o chamamento Helô parou. Lembrou-se que não podia criar nenhuma confusão. Então freou e girou nos calcanhares. Voltou até a irmã e com um sorriso nos lábios, disse:
          - Boa tarde, irmã! Que Deus esteja com a senhora!
          - Boa tarde, Helô, minha querida. Como você está?
          - Estou bem, irmã. Estou bem.
           - Que correria foi essa?
           A menina procurou uma explicação rápida. Seria uma justificativa não de todo mentirosa, já que realmente tinha ido procurar a irmã Gertrudes. E era realmente a única. Não teria outra.
          - Eu vim procurar a irmã Gertrudes. Disseram que ela estava aqui. Então entrei, mas depois eu me lembrei que era proibido ficar aqui, aí saí correndo.
          - Não é bem assim. Ficar de bobeira, como dizem vocês, não pode mesmo. Mas se for para falar com alguma irmã, pode sim. E pode deixar, que quando a irmã Gertrudes descer eu falo com ela. Digo que você esteve aqui à sua procura. Está bem? Ah! Pode deixar que não falarei com a Madre sobre isso.  
          - Obrigada, irmã! Fique com Deus, tá?
          - Vai com Deus, minha filha.
           Quatro meses depois deste evento não aconteceu nenhum fato novo que merecesse menção, a não ser o aniversário de Helô, que tinha completado onze anos, mas também passou em branco como nos anos anteriores,  sempre embalado numa comemoração silenciosa.  Isso não era exclusividade dela, era assim para todas as internas. Somente as irmãs Amélia, que já estava liberada para voltar a se encontrar com  Helô, e a irmã Gertrudes deram os parabéns e abraçaram-na, mas faziam isso cautelosamente. Não queriam dar motivos para a Madre puní-las,  já que era uma proibição direta da megera. Ela deixou claro que, se houvesse qualquer ato contrário às suas ordens, haveria punição severa para as  infratoras. Então andavam todas na linha.
          Ninguém entendia o que levou a Madre a decretar essa proibição, pois era somente em relação a festas de aniversários. Outros tipos de festejos estavam liberados, principalmente os que eram para arrecadar fundos e, normalmente,  somente esses eram permitidos.
          Em relação ao aniversário de qualquer menina, ela sabia quase de cor. Na sua agenda constava a data de aniversário de todas as órfãs. E como ela a manuseava diariamente, já tinha gravado praticamente todas as datas na cabeça. Esse hábito diário era para controlar as meninas que iriam completar quinze anos e também as de dezoito. As de quinze começavam a frequentar o seu escritório, quando da visita do padre e do senhor misterioso e os seus convidados. E as que iam completar dezoito, ela começava a fazer a contagem regressiva até a data de desligamento delas do orfanato, mas no momento de se despedirem já tinham um documento encaminhando-as para um estabelecimento comercial na capital, onde teriam um trabalho digno. Assim ela frisava: digno. O tipo de trabalho ia codificado, assim nenhum curioso saberia dizer do que se tratava. E lá iam as meninas acompanhadas até o destino final.  - Nenhuma ovelha será perdida. – dizia a Madre Superiora Joana de Maria, ao despedir-se das meninas.
          As visitas do Padre Arcanjo e do senhor misterioso seguiam religiosamente. Podia contar que na primeira semana do mês, precisamente na primeira quarta feira, chegavam os dois sorridentes. Não se atrasavam nunca: às 9:00 horas estavam em frente ao portão de ferro que dava acesso ao interior do convento. Desciam calmamente de um carro preto com vidro fumê, que após o desembarque voltava pelo mesmo caminho que tinha vindo, só voltando no dia seguinte, precisamente às 15:00 horas. Eram sempre recepcionados pela Madre e pelas suas fiéis escudeiras.
          A criançada agitada ficava de longe esperando a chegada dos dois. Todo mês sabia que brinquedos e roupas novos eram distribuídos para todas. Para as mais novas era um momento de total felicidade, já para as que tinham mais de quinze anos começava o inferno. E algumas, acima de dezesseis anos, já conheciam bem aquele tormento.
         Logo pela manhã, antes dos visitantes chegarem, algumas meninas eram levadas para o escritório da Madre, lá ficando em companhia de alguma irmã, escudeira dela, até que voltassem acompanhadas do padre e do senhor. 
...............Continua semana que vem!