terça-feira, 31 de maio de 2022

A Minha Casa Não é Essa - Parte 03

 


Continuando...

              De repente, percebeu uma terceira pessoa caminhando pela calçada oposta. Não parecia ter pressa. Aparentemente carregava a despreocupação a tira colo. Em uma das mãos brilhava uma maleta prateada. Caminhou alguns metros e parou. Apoiou-se numa árvore, um pouco distante daquela que estava o menino e o outro homem, abriu a maleta, virou um pouco o seu corpo, encobrindo a visão de Téo, e tirou alguma coisa de dentro. Enquanto Téo não conseguia ver o que o estranho tinha pego, voltou a sua atenção para os dois que continuavam a conversar encostado na velha amendoeira.

               O homem de barba comprida, meteu a mão no bolso, puxou um papel amassado, colocou-o na coxa, esticou-o e apontou o dedo para ele, mostrando alguma coisa ao menino.  Depois falou alguma coisa próximo a sua orelha, passou a mão nos dois lados do papel de novo, parecia que queria desamassar mais um pouco, e finalmente entregou-o. O menino olhou-o rapidamente o que estava escrito, dobrou-o e prendeu-o no cós da calça. Em seguida se afastou da árvore e apontou na direção da casa de Téo. O homem fez um sinal com a mão, mandando-o ir até lá. Mal o menino pois se em movimento, escutou um tiro, virou-se e viu o seu amigo tombado ao lado da árvore. Tentou correr, mas também foi alvejado. Caiu ferido, ainda com vida. Com um pouco de dificuldade arrastou-se até um pequeno jardim e se misturou com a vegetação. Novo tiro foi disparado, no entanto cravou-se na velha amendoeira. O atirador então não obtendo êxito, foi em sua direção, com o propósito de terminar o serviço.  Téo que tinha presenciado toda a trama, não sabendo de onde tirara força, botou a cabeça para fora e gritou para o assassino:

          - Ei! O que é isso? O que é isso?

          Se isso tivesse acontecido em outra época, com certeza ele teria pulado a janela e, talvez, evitado o crime, mas agora aquela coragem de antes, já não existia mais. Para onde teria ido à condecoração por bravura? Não sabia responder, porém se cobrava a todo momento sobre esse medo fora de controle que invadira sua alma. Não conseguia uma arma eficaz para combater esse monstro invisível que o arrastava dia após dia para um buraco sem fundo.  Tudo era motivo para se assustar. Até um simples espocar de um estalinho de festa junina, levava-o ao desespero. Esse monstro era a depressão.

          O atirador ouviu o grito e apontou a arma na direção da janela onde estava Téo. Mas a sorte conspirou a favor de Téo, quando um carro surgiu, fazendo com que o atirador abortasse o seu plano, saindo ligeiro da cena do crime. Téo vendo que o homem tinha desistido de atirar e ido embora, tomou coragem, e com todo o cuidado, mesmo assim sentindo um calafrio, pulou a janela. Com lentidão chegou à rua. Ameaçou correr, entretanto sentiu os pés presos ao chão. Na verdade, não era só os pés, era todo o corpo. Nada se movimentava livremente. Até a cabeça estava travada. Com muito esforço, conseguiu chegar até onde estava o menino. Examinou-o rapidamente e verificou que ele respirava regularmente. Em seguida se dirigiu ao homem de barba, que fora baleado. Mas infelizmente constatou que não tinha nada que pudesse fazer por ele. De repente sentiu um mal-estar horrível. Até vontade de vomitar teve. Realmente não estava confortável com aquela situação. A sua cabeça virou uma confusão só, onde os pensamentos não faziam qualquer sentido. Parecia que ia entrar em parafuso, então colocou as duas mãos na cabeça, socando-a levemente, para tentar organizar os seus pensamentos. Até ali, não sabia o que fazer. Num tempo não muito distante, com certeza, teria resolvido àquela questão, mas agora tinha a sensação que suas ideias abandonaram a sua cabeça. Nada se conectava dentro do seu cérebro. De repente pensou na polícia. Chamar a polícia, então? Essa seria a coisa mais sensata a fazer. Nisso o menino gemeu. E isso, como num passe de mágica, fez com que se livrasse da teia de pensamentos que o prendia.  Rapidamente ajoelhou-se ao seu lado e virou-o de barriga para cima. Ele estava de olhos abertos, e sorriu quando viu o rosto do filho de dona Nádia.

          – Mohamed! – falou Téo surpreso, ao acabar de reconhecer o amigo. 

 

........Continua semana que vem!

 

terça-feira, 24 de maio de 2022

A Minha Casa Não é Essa - Parte 02

 


Continuando...

            Após a alta, foi para os Estados Unidos da América e por lá continuou, por alguns meses, tratando do ferimento na perna. Depois que o ferimento cicatrizou completamente, mesmo assim ficou impossibilitado de voltar para a guerra, devido a problemas psíquicos. Então como os seus pais tinham vindo morar no Brasil, resolveu também vir para o Rio de Janeiro, onde nasceu. Mas a sua tristeza aumentou logo ao chegar. Com poucos dias de regresso, o seu pai caiu doente. Foram apenas dois meses que ficou ao seu lado. O óbito foi rápido. Ele se achou responsável pela morte do seu John. Desde que fora para a guerra, o pai entristecera profundamente. Mesmo com o seu regresso, o seu John não foi o mesmo homem. Téo vivia martirizado por isso, sem conseguir se perdoar. A mãe tentava demovê-lo dessa culpa, mas ele não conseguia tira-la de cima dos ombros.

             - Coisas da vida! Alá quis assim! Você tem que viver Teozinho! – dizia ela quase que diariamente, mas os seus argumentos não surtiam nenhum efeito.

            Uma montoeira de pensamentos invadia a sua cabeça ao mesmo tempo. A maioria não fazia o menor sentido. Parecia que chegava só para deixa-lo fora de controle. Quando isso acontecia, a sua mãe sugeria que fosse dar uma volta pela redondeza para se distrair. Mas, mais uma vez, o ânimo não o ajudou naquele momento. Não conseguia abrir a porta e pisar na calçada. Então voltou para a janela, único local que conseguia chegar, mas com algumas restrições – às vezes ficava por trás da cortina -, e ficou olhando para ver o vai e vem dos moradores. Mas como era domingo, o movimento era quase nenhum. Ele sabia, porque todo domingo era a mesma coisa: ficar ali debruçado na janela esperando alguém passar. Ia para ali constantemente querendo encher a cabeça com imagens vivas, porém os seus pensamentos era um vai e vem ininterrupto de gente não tão viva assim.

            Seus olhos se perdiam pela rua, enquanto a sua cabeça se encontrava nos pesadelos. E esse era um quadro constante. Parecia que viver deprimido era uma normalidade. Mas não era sua escolha. Lutava, com a ajuda da mãe, para sair daquele quadro depressivo. Diariamente usava alguns medicamentos, mas que apenas minimizava o seu quadro, funcionando apenas como um paliativo, onde alternavam momentos tristes com menos tristes. Alegria, agora era uma mera desconhecida. Contudo, mesmo nos momentos de crise aguda, jamais passou pela sua cabeça a hipótese de dar cabo da própria vida. Ele respeitava a sua vida acima de tudo. Sabia que existia um inimigo a ser eliminado, para viver em paz, só que não sabia que inimigo era esse.

            Enquanto pensava mais do que olhava, conseguiu perceber um movimento na rua que chamou a sua atenção. Naquele instante o soldado despertou dentro de si. Notara duas pessoas atravessando a rua. Analisando rapidamente, viu que não eram do lugar. Achou muito suspeito aquelas duas pessoas caminhando por ali, num domingo, como todos os outros, invariavelmente deserto. Seguiu-as com o olhar de lince, até que, ao terminar de atravessar a rua, se encostaram numa velha amendoeira, encravada numa minúscula praça, que fora feita para preservá-la. 

            Téo não deixava escapar nenhum movimento da dupla. Percebeu nitidamente que os dois estranhos não estavam tranquilos, pois olhavam insistentemente para os lados. Pareciam preocupados com alguma coisa. Conversavam quase ao pé do ouvido. Um parecia um garoto, que não conseguiu ver direito o seu rosto, e que não devia passar dos quinze anos, e um homem de barba comprida, deixando a amostra apenas parte do rosto, sendo que os olhos estavam cobertos por um chapéu de abas largas, estilo cowboy. Aquilo tudo pareceu muito suspeito. Se bem que para ele todo e qualquer movimento que fugisse a normalidade era sempre motivo de suspeição. Para sobreviver numa guerra tem que estar sempre atento e desconfiando de tudo. E assim foi o tempo que levou em combate em terras Afegãs.

................... Continua semana que vem!

terça-feira, 17 de maio de 2022

A Minha Casa Não é Essa - Parte 01

 


A Minha Casa Não é Essa

- José Timotheo -

 

          Era início de verão no hemisfério sul. O Rio de Janeiro já estava de porta escancarada para mais um dia de um sol abrasador. Mal começava a estação e já dava para ver o que ia ser dali para diante. O serviço de meteorologia não vislumbrava para tão cedo uma chuvinha salvadora.

           - Esse ano está estranho. No outono e no inverno tivemos chuva em abundância. A primavera passou numa secura só. E agora o verão também promete ficar seco. Isso é o fim dos tempos. –  Téo pensava, olhando pela janela, mirando o céu à procura de alguma nuvem que pudesse mudar o curso das previsões meteorológicas. Da cozinha veio um chamamento. Era dona Nádia.

            - O almoço está pronto, Teozinho! A mesa está posta! Vem! Mais uma vez vamos almoçar só nós dois! Aquela ingrata da sua irmã, já ligou dizendo que está impossibilitada de vir! Mais uma vez! Mais uma vez! Ela está afastando meus netos de mim! Mora aqui do lado e fica, a toda hora, arranjando desculpa esfarrapada para não vir aqui! Ingrata, Teozinho! O que fazer? Vem logo! A comida vai esfriar!

           Téo saiu do seu ponto de observação e caminhou até a cozinha em silêncio. Sentou-se ao lado da mãe e almoçou como sempre: mudo. Depois foi para o seu quarto e ficou olhando para o nada. Mas a cabeça não parava de pensar. Isso era o que ele mais fazia. Raramente saía de casa. Os amigos já tinham saído quase todos da sua vida. Colocou a mão direita na coxa e esfregou-a levemente. De vez em quando sentia ainda a perna direita doer. Quando doía, lembrava-se de como tinha acordado no hospital, depois de alguns dias em coma, com ela doendo muito. Logo um mal-estar, acompanhado de uma transpiração intensa, brotou rapidamente. Nesses momentos sentava-se na cama, com medo de desmaiar. Não conseguia entender porque sentia medo. Já tinha ficado várias vezes sob fogo cruzado, sem entrar em pânico, e agora, sem tiro por perto, sentia-se tão mal. Não conseguia entender como a perna esquerda, que fora ferida no primeiro ano que esteve no Afeganistão, nunca o incomodou. Em poucos meses já estava lutando novamente. Essa, com um ferimento menos grave, nunca parou de doer um só dia. 

           Ele pegou um livro que estava debaixo do travesseiro e desfolhou. Já tinha perdido a conta de quantas vezes tinha olhado para aquele livro, sem conseguir ler uma linha sequer. Mirou um quadro que estava na parede: era uma foto de uma região deserta. Toda vez que olhava, a perna doía no ponto em que a bala tinha penetrado. Evitava o máximo que podia encará-lo, mas era uma missão quase impossível, pois parecia que existia um imã que puxava os seus olhos para aquela direção. Tentou algumas vezes arrancá-lo da parede, porém uma mão invisível puxava a sua para baixo. Acabou desistindo, pois percebeu que existia uma força misteriosa mais forte do que a sua vontade.  E essa força também o levava a virar o quadro quase que diariamente fazendo-o ler uma inscrição, na parte superior da moldura. Desconhecia o autor e o seu significado. Aquilo era mais um dos mistérios que carregava no seu dia a dia.

        -“Em novembro...” - Era só isso escrito. Mas o que mais o deixava encucado, era um pequeno desenho, logo após o mês. Parecia uma adaga cortando uma garganta. Não consegui encontrar o significado de mais esse enigma, também.  Algumas vezes pensou em perguntar à mãe de onde tinha vindo aquele quadro, mas desistia no meio do caminho. Outra coisa que fugira da sua lembrança, era a sua vinda para o Rio. A sua memória vivia constantemente em desalinho. Tentou falar várias vezes com dona Nádia sobre isso, mas acabava desistindo com medo que ela o achasse desequilibrado.

         Téo lutou no Afeganistão. Como tinha cidadania americana, se alistou como voluntário. O pai, americano, e a mãe, brasileira, não o demoveu da decisão.  Foi e ficou por lá três anos, comendo o pão que o diabo amassou. O que ele imaginava que seria apenas uma aventura, na realidade acabou conhecendo o inferno de perto. Esteve de corpo e alma dentro do caldeirão de Lúcifer. Foi a pior experiência da sua vida, que ainda parecia viva dentro de si. Desde que voltou para o Brasil, não teve um dia sequer de paz. Se achava constantemente dentro de um campo de batalhas. Só parava de guerrear quando conseguia dormir, assim mesmo depois de alguns soníferos. Mas não era um sono tranquilo, pois se via dormindo dentro de uma trincheira. Quando voltou da guerra? Não se lembrava. Estava combatendo? Também não tinha a mínima ideia. Mas de repente acordou no leito de um hospital.

................Continua semana que vem!!