terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Assombração - Parte 13

Continuando...
O Doutor Anton, que ainda continuava em pé, e a enfermeira Elga olhavam para o envelope, ansiosos. Pelo jeito dos dois, pareciam que iam avançar no envelope e tirá-lo das mãos do Dr. Justus. Mas estavam conseguindo se segurar. O Dr. Anton custou um pouquinho, mas respondeu a pergunta do amigo:
          - Claro. Claro. A resposta está aí dentro do envelope. O Dr. já sabe, não é?
            O Dr. Justus olhou-os, passou a mão nos cabelos, como era de costume, e disse:
            - Não. Ainda não sei. Mas se o resultado não for o que nós desejamos, não vamos esmorecer, vamos continuar procurando. Não abri o envelope. A vontade foi muita, mas consegui controlar o meu ímpeto e preferi abri-lo na presença do amigo. Vamos lá?  
          O Dr. Justus apontou a cadeira e esperou que o Dr. Anton se acomodasse. Em seguida puxou outra, não sentando na sua costumeira, e colocou-a ao lado da do colega. Depois pegou o envelope e colocou-o de contra a luz. Isso era um hábito que carregava consigo há muito tempo. Rodou o envelope e colocou o lado, que tinha um pequeno lacre, virado para si. Olhou para o amigo, deu um sorriso, colocou o envelope no colo, esfregou as mãos e, ai sim, foi abrindo-o cuidadosamente. Estava pra lá de habituado a fazer aquilo, mas o coração sempre disparava naquele momento. Torcia todas às vezes para que o resultado fosse positivo, mas dessa vez parecia que estava torcendo mais ainda. Realmente aquele era especial. Cuidadosamente foi tirando a folha que trazia o resultado. Antes de começar a ler, ajustou os óculos no rosto. Olhou firme para o papel e foi lendo. De repente deixou escapulir um sorriso que vinha, com certeza, de dentro da alma. Parece que nunca tinha tido um momento de tanta alegria. Olhou para o Dr. Anton e a enfermeira Elga, se levantou, abriu os braços, convidando-os para participarem daquele momento de tanta felicidade. Ficaram os três abraçados curtindo aquele instante pleno de emoção. Depois caminhou pela sala e teve vontade de gritar, mas se conteve. Tentou falar alguma coisa, mas não conseguiu. A enfermeira, que o acompanhava há bastante tempo, sabia dos seus arroubos de felicidade. E nesse momento, custava um pouco a se expressar com palavras. Existia um ritual, até conseguir emitir qualquer palavra. Primeiro tirava os óculos e esfregava os olhos. Depois, num gesto que era só seu, erguia as mãos para o alto e falava alguma coisa ininteligível, e apertava o exame de encontro ao coração. A enfermeira nunca soube se ele professava alguma religião. A verdade, é que nunca teve coragem para perguntar. Algumas vezes até ameaçou, porém nunca passou de ameaça. Dizia sempre, para ela mesma, que no próximo exame iria elucidar esse enigma. Entretanto esse dia era sempre adiado. Às suas análises sempre apontavam para algum ato religioso. Com aquele ritual todo, - pensava- tinha quase certeza que se tratava de algum ritual religioso.
         O Dr. Anton estava mudo, mas tinha um sorriso congelado nos lábios. Não sabia se voltava a se sentar ou permanecia em pé. Acabou optando pela primeira opção, já que o Dr. Justus se encaminhava novamente para a sua cadeira.
          Elga, a enfermeira, foi rapidamente pegar o jarro com café, que já tinha passado. Dessa vez, trouxe três xícaras. Encheu as três e ofereceu primeiro para o Dr. Justus, em seguida para o Dr. Anton e finalmente pegou a terceira. Colocou a bandeja em cima da mesa e solicitou um brinde, que foi interrompido pela voz da atendente Angélica, que depois de bater na porta, anunciava a chegada de Assombração.
          - Bom dia. Dr. Justus, Assombração está aqui fora, querendo falar com o senhor. Ele pode entrar?
          O silêncio de repente abraçou a pequena sala de espera. A ansiedade se apresentava como o desassossego na sala. Os olhares se chocavam. O Dr. Justus estava emocionado. Olhou para o relógio e confirmou o horário: 9:00 horas. Sorriu para o Dr. Anton e, sem falar, com a cabeça autorizou a entrada do rapaz.
           O Dr. Anton dividiu o seu olhar entre a enfermeira, o Dr. Justus, a atendente e a porta. Aquele momento parecia que não tinha fim. Era com certeza breve, mas tão moroso, que o doutor teve vontade dele mesmo escancarar porta. A enfermeira com o seu sexto sentido em alerta, num gesto automático, colocou uma das mãos no ombro direito dele, impedindo-o de se movimentar. A sua vontade foi abortada em frações de segundos. Apenas olhou para Elga e deu um sorriso morno.

          A atendente Angélica foi abrindo a porta lentamente. Saiu para o lado e chamou Assombração. Num rasgo de segundos aquela figura, já tão conhecida do Dr. Justus e da enfermeira, atravessou o vão da porta. E não podia dar outra: os olhos dos irmãos ao se cruzarem, instantaneamente se fundiram. Assombração ficou travado debaixo do portal. As suas pernas estavam paralisadas. O mesmo aconteceu com o Dr. Anton. Ninguém conseguia se mover ou falar. Parecia que a sala estava congelada no tempo. O único som que poderia ser ouvido, caso alguém tivesse uma audição tão apurada, seria dos corações daquelas cinco personagens, que batiam acelerados. Naquele momento não dava para se saber, se Assombração tinha reconhecido o irmão. Se afirmativo, a sua memória tinha voltado ao normal. Será? O passado estava a quase cinco anos adormecido. Teria despertado naquele momento?
...Continua semana que vem...

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Assombração - Parte 12

Continuando...
Dr. Anton cruzou a porta principal do hospital, às 07:45 h. Os seus passos ecoavam nervosos. Estava quase correndo, mas deu uma estancada na pressa, quando umas das recepcionistas deu um “bom dia doutor”. Parou e retribuiu o cumprimento. E indagado quanto ao consultório que ia ocupar, respondeu afirmativamente, dizendo que tinha visto a sala no dia anterior. Deu mais uma vez um bom dia e foi para a sua sala, que ficava ao lado da do Dr. Justus. Entrou e ficou satisfeito ao ver o consultório limpo e arrumado. Sentou-se na cadeira, abriu a sua pasta de couro marrom, que fora presente do pai, conferiu o seu interior, fechou-a e colocou-a na primeira gaveta. A ansiedade estava estampada na sua fisionomia. Esfregava as mãos nervosamente. Levantou-se e encaminhou-se até a sala do Dr. Justus. Bateu levemente na porta e entrou. Encontrou a enfermeira Elga, que o informou que o Dr. Justus ainda não havia chegado, mas que não demoraria. Percebendo o ar de decepção do médico, ofereceu-lhe uma xícara de café, que tinha acabado de passar, e indicou-lhe uma cadeira. Dr. Anton aceitou o café, sentou-se, e começou a sorvê-lo lentamente. O café estava forte, do jeito que gostava. O gosto – pensou – lembrava o que a sua mãe fazia. Deu um leve sorriso, ao lembrar-se da mãe, mas depois franziu o cenho e ficou com o olhar pregado na parede. A enfermeira percebeu que o médico estava ansioso. Ameaçou falar alguma coisa, mas freou o seu impulso. Ficaram em total silêncio. Aquilo estava fazendo com que ela ficasse, também, ansiosa. Abriu a gaveta pegou um biscoito salgado e foi mastigado com voracidade. O barulho fez com que o Dr. Anton despertasse do seu devaneio. Olhou para a enfermeira e deu um leve sorriso. Ela ficou meio envergonhada e ofereceu lhe um. Ele agradeceu e voltou a olhar para o nada. Elga aproveitou a quebra do gelo e informou-o que seria ela, temporariamente, a sua atendente. Atenderia simultaneamente a ele e ao Dr. Justus. Isso enquanto a direção do hospital não indicasse outro profissional. Ele agradeceu e continuou a beber o seu café lentamente. De vez em quando olhava para um relógio pendurado na parede. Tinha a sensação que os ponteiros não se moviam. Parecia que estavam colados. Lembrou-se de que quando o irmão sumiu no acidente, o minuto, parecia uma eternidade. As informações nunca chegavam. Nem para sim, nem para não. Veio arrastando essa ansiedade por muito tempo. Agora estava sentindo a mesma coisa. – E se não fosse ele? – pensava. Queria que aquilo tudo acabasse logo. Elga percebendo que a aflição no doutor estava crescendo, tentou acalmá-lo:
          - Calma Doutor. Ele vai chegar. Assombração, digo Antoane, é uma pessoa pontualíssima. Pode ficar certo, que quando o senhor menos esperar, ele vai entrar por aquela porta ali. Quer mais um pouco de café?
          Dr. Anton tomou o restante do café num gole só, esticou o braço, esperou que a enfermeira colocasse mais um pouco do precioso líquido preto, e disse:
          - A senhora falou da pontualidade dele. Meu irmão sempre foi assim: nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Chegava sempre adiantado ao compromisso assumido, mas ficava esperando até chegar a hora combinada. Aí sim, se apresentava. Dizia, que se a pessoa tinha marcado às quinze horas, é porque não poderia atendê-lo antes desse horário.
          A enfermeira deu um sorriso e falou entusiasmada:
          - Ele é assim! Ele é assim mesmo! Só pode ser o seu irmão! É Antoane, com certeza!
               Dr. Anton sorriu satisfeito com a afirmativa de Elga. Sentiu-se mais leve, menos tenso e bebeu o café mais descontraído. Isso não queria dizer que estivesse completamente relaxado. Isso não. Continuava ansioso sim, mas com mais esperança. Entretanto a dúvida de vez em quando teimava em voltar: e se esse rapaz não fosse o seu irmão? Tem pessoas parecidas, mas que, aparentemente, não são parentes.
           O Dr. Justus chegou às 8:30 h e encontrou o seu colega, dentro da sua sala, andando de um lado para o outro. Parecia indócil. Olhou-o, sorriu e deu um bom dia sonoro. Foi até a sua mesa, colocou a sua pasta na gaveta e falou calmamente:

          - Calma Doutor. Sente-se aqui, por favor. Assim o amigo vai infartar. Fica tranquilo. O seu irmão já deve estar chegando. Mas ele não vai passar por aquela porta, antes das nove horas. Pode ficar certo que vai bater na porta, alguns segundos antes das nove e vai entrar no horário combinado. Desculpe-me o atraso. Demorei mais do que devia. Fui pegar o resultado do exame, encontrei um amigo de infância, também médico, e nos perdemos em meios a saudades. Confesso que não tinha necessidade de ter ido buscar o envelope com o resultado, mas a ansiedade não me deixou ficar à espera. Com certeza trariam aqui na minha sala. Mas... aqui está o destino da menina, não é?
      ...Continua semana que vem...

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Assombração - Parte 11

Continuando...
          Assombração mesmo aparentando leveza e descontração, não conseguiu deixar para trás a ansiedade. Mesmo sendo pouca, achava que deveria ir logo para o hospital. Parou um pouco, olhou para o céu, balançou a cabeça e concluiu que era muito cedo. Mesmo o sol já se esticando pela calçada, os ponteiros do relógio ainda não tinham chegado às sete horas.   Atravessou a rua e foi em direção à cantina de Dona Verona. Lá chegando, encontrou-a de costas arrumando uma prateleira. Dessa vez não ficou parado, de cabeça baixa, esperando que ela notasse a sua presença. Deu uma leve tossida e não esperou que ela olhasse. Antes, deu um sonoro bom dia e deixou um riso solto no ar. Dona Verona virou assustada e deparou com aquela figura já tão sua conhecida, em pé, cabeça erguida, sorrindo um sorriso cheio de alegria. Acabou entrando no clima e deixou o seu sorriso se esbarrar com o do seu amigo. Naquele instante percebeu que estava em frente de uma pessoa que finalmente tinha conseguido se desvencilhar de um grande peso.  Não era outra pessoa, isso não. Era a mesma, porém agora conseguia sorrir sem baixar a cabeça. Era o mesmo sorriso lindo e limpo, mas que não carregava mais o medo. Seus olhos se encheram de lágrimas. Dona Verona pegou as mãos dele e disse emocionada:
          - Meu filho! Meu filho! Como você está lindo!  Esse bom dia, foi o melhor bom dia que já recebi em toda a minha vida! Agora sim. Você deixou o seu sorriso se libertar. Todo mundo tem que conhecer esse coração tão bonito, meu filho. Chegue mais perto e bota esse rosto bonito, para que eu possa beijá-lo.
          Assombração ficou da cor de um tomate, mas virou a bochecha encarnada para Dona Verona beijar. Foi um beijo sonoro, que quase o fez chorar de emoção. Em seguida ela se enlaçou no seu pescoço e deixou que as lágrimas descessem sem freios. Depois ficaram cara a cara se mirando, enlaçados de felicidade. Dona Verona custou a parar de chorar. Respirou fundo e alisou a cabeça e o rosto de Assombração. Pegou a sua mão direita e colocou-a em cima do seu coração. Depois falou, com a voz embargada, o que a sua alma dizia:
          - Sabe meu filho. Deus é muito bom comigo. Depois que o meu filho Nereu se foi, foi bater pernas pelo mundo, achei que ia morrer de tristeza. Aí Deus mandou outro filho pra mim, que trouxe de volta a minha alegria. Meu filho, você salvou a minha vida! Você é o filho que eu escolhi! O meu filho pra toda vida!
          Assombração olhava para Dona Verona, mas não conseguia articular palavra alguma. Estava engasgado. Só ficava olhando para ela e deixando que as lágrimas escorregassem pelo rosto. Após alguns minutos é que conseguiu dizer alguma coisa, quando viu uma menina, que vinha saindo da cozinha, parar do lado de Dona Verona. Enxugou os olhos e disse:
          - Dona Verona, essa menina é sua filha?
        Ela virou-se para a menina e respondeu:
        - Não meu filho. Ela é minha ajudante. O nome dela é Paula. Ela é filha da minha vizinha Toninha. Você nunca viu Paula? Também, como ia ver? Hoje é que você levantou a cabeça, não foi?
         Depois de alguns segundos de silêncio, os três caíram na maior gargalhada. O ambiente tomou um ar de total descontração. Assombração estava feliz. Parecia que o sorriso não ia mais abandonar os seus lábios. Aceitou o café que Dona Verona ofereceu. Só que desta vez foi toma-lo na cozinha. Conversaram bastante, como velhos amigos, e em alguns momentos, como mãe e filho. Ali estava selada, para sempre, uma amizade sólida e verdadeira.
         Os ponteiros do relógio voaram. Assombração não tirava os olhos do seu relógio de pulso, que apresentava a caixa muito manchada, mas que não era velho. Mas que parecia, parecia. Passou pela sua cabeça o dia que o encontrou. Achou-o numa das lixeiras da rua. Com o achado na mão, apertou a campainha da casa e comunicou o fato, de cabeça baixa, a dona da casa. A senhora que o atendeu sorriu e disse:
          - Pode ficar pra você, meu filho.                          
           Ele agradeceu e se lembrou que tinha sido Dona Lourdes, a segunda pessoa que o chamara de filho. Dona Verona sempre o tratou assim. Abriu um sorriso de felicidade.

          O relógio já marcava oito e quinze. O horário para chegar ao hospital, seria às nove horas. Olhou para o comprido da rua e decidiu ir. Tinha tempo de sobra, mas nunca gostou de andar atrasado. Ainda mais que tinha marcado com o Dr. Justus. O percurso seria cumprido em menos de vinte minutos. Queria chegar mais cedo. Estava feliz, mas ansioso.
      ...Continua semana que vem...

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Assombração - Parte 10

Continuando...
          A enfermeira Elga ansiosa, roendo as unhas, perguntou:
         - E o seu irmão, Doutor?
         - Não foi encontrado. As buscas foram imediatas. A região toda foi vasculhada, mas nada do corpo dele. Mas alguma coisa aqui dentro me dizia que um dia, ele ia aparecer vivinho. Foram semanas e mais semanas e nada dele ser encontrado. As buscas foram encerradas. Mas aqui dentro eu nunca desisti. Eu...
          O Dr. Anton parou de falar de repente. A sua voz sumiu. Era muita emoção. Dessa vez deixou que as lágrimas fluíssem. Cobriu o rosto com as mãos e chorou copiosamente. A enfermeira e o Dr. Justus ficaram emocionados também. Os dois estavam com os olhos banhados de lágrimas. Olhavam apenas para médico, em silêncio, sem coragem de fazer qualquer comentário, para não quebrar aquele momento, no qual ele arrancava toda dor que ficara por tanto tempo guardada. Deixaram-no extravasar toda emoção até não restar mais nenhuma lágrima de dor. Quando o Dr. Justus sentiu que o pranto estava suavizando, se aproximou do amigo e postou-se ao seu lado, colocou uma das mãos no seu ombro e falou docemente:
          - Calma. Amigo, essa dor vai acabar. Brevemente vai ter seu irmão nos braços. Se Deus quiser vai ser Assombração sim. Seu irmão é esse rapaz, com certeza. Antoane, não é?
          - Sim. Onde posse encontrá-lo?  
          - Como disse, ele vem amanhã. Não sabemos o seu paradeiro. Nunca tem um lugar certo para ficar. Anda por toda cidade. Cada dia dorme em um lugar diferente. Pode ficar tranquilo que amanhã ele estará aqui. Ele é de uma pontualidade impressionante. Amanhã teremos o resultado e o senhor terá a chance de confirmar se ele é ou não o seu irmão.  Não se esqueça que ele chega antes do sol nascer.
        Dr. Anton estava se sentindo sufocado. Levantou-se e pediu outra xícara de café. Dr. Justus percebendo o estado do colega tentou mudar de assunto, falando:
          - Doutor, vou levá-lo até o departamento de RH. Estando com a documentação toda em ordem, o senhor começa segunda feira próxima. Acredito. Tem as burocracias normais. Não é? Com isso tudo que está acontecendo, acabamos nos esquecendo de regularizar a sua situação perante a empresa. Vamos? Por favor.
          Assombração levantou-se cedo, como já era habitual, mas não antes, claro, dos pássaros. Esperava sempre as aves se dispersarem em bando, para depois espreguiçar silenciosamente, sem fazer alarde, e encontrar o sol pelas ruas da cidade. A sua convivência era pacífica com as aves. Viviam em total harmonia. Alguns já estavam acostumados com a sua presença, que até dormiam em cima dele. Assombração procurava manter-se em total rigidez, sem se mexer, para não assustá-los.

       A rua já começava a bocejar. Assombração desceu da árvore e caminhou até o ferro velho do seu Juca. Um vigia que já o conhecia, abriu o portão e deixou-o entrar. Encaminhou-se até o banheiro, escovou os dentes e em seguida foi para debaixo do chuveiro. Aquele banho não era igual ao de outras manhãs. Aquele era um dia especial e especial teria que ser também aquele banho. Tinha comprado um sabonete cheiroso e um xampu, de boa marca, para dar um trato na sua aparência. Depois do banho tomado, pegou um embrulho, abriu-o e tirou de dentro uma camisa, uma calça jeans e um par de meias, num azul já meio desbotado, tal e qual a calça. Estava tudo limpo e perfumado. De dentro de outra sacola tirou um par de tênis bem surrado, o único que tinha, mas que dava para ser usado. Assombração procurava sempre mantê-lo o mais limpo possível. Pelo menos, uma vez por semana lavava-o. Depois de tirar tudo de dentro das sacolas, começou a se vestir. Antes de sair daquele cubículo, mirou-se no espelho e deu uma ajeitada no cabelo. Olhou todo o pequeno banheiro e viu se estava tudo em ordem. Já tinha puxado a água para o ralo e passado um pano para enxuga-lo. Com tudo limpo, recolheu as roupas usadas e colocou-as dentro de uma das sacolas que tinha caído no chão. As sandálias, ele as jogou dentro da outra sacola, que estava pendurada num gancho atrás da porta. E mais uma vez olhou-se no espelho e sorriu. Nessa hora, dos seus olhos apareceu um brilho de confiança. Falou alguma coisa, mas que de tão baixo, soou incompreensível. Abriu a porta e saiu. Deu alguns passos, parou e mirou uma das poucas árvores que tinha naquela floresta de ferros velhos torcidos.  Era um ipê, com mais de 10 metros de altura e com idade desconhecida, que coberto de cachos de flores amarelas, dava a impressão que tinha ouro flutuando no espaço. Era um tremendo contraste, com aquela imensidão de ferros enferrujados e retorcidos, enfeando o local.  Assombração foi em direção ao portão de saída, mas não encontrou o Seu Juca. Pensou que fosse encontrar o amigo e com ele dividir a sua alegria. Queria falar da sua certeza de ser o salvador da menina do nº 18. Essa certeza que fazia o seu coração pular e que era a mesma certeza de estar vivo. Mas não viu o Seu Juca. Foi em frente e passou por Fidélis, o vigia, e de cabeça erguida, cumprimentou-o, dando um sonoro “bom dia”. O rapaz ficou tão surpreso com o comportamento dele, que acabou imitando o patrão, deixando no ar uma tremenda gargalhada. Assombração sorriu, bateu com uma das mãos, mas não olhou para trás, e continuou na sua caminhada leve e descontraída.  
     ...Continua na semana que vem...

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Assombração - Parte 9

Continuando...
Ele deu uma pausa para tentar equilibrar as emoções, já que os olhos começavam a se encher de lágrimas e o coração a bater desordenado, num choro mudo.  O Dr. Justus e a enfermeira, ao perceberem a sua voz embargada, não quiseram interromper o seu relato, apenas esperaram até que ele se refizesse e, talvez, continuasse com a história. O silêncio tomou conta da sala. O tempo que esse silêncio perdurou ninguém saberia dizer. Todo silêncio que é carregado de dor, parece que não tem fim. E esse, era um deles. Mas aos poucos, Dr. Anton foi se refazendo e voltou a falar:
         - É. Estou sufocado. É muita emoção. Dr. eu gostaria de vê-lo. Esses anos todos sem a sua presença, deixou-me um grande vazio. Eu e minha mãe carregamos uma tristeza, que vocês nem imaginam.  
          Dr. Justus olhava-o com grande pesar. Estava procurando às palavras certas para tentar aliviar aquele peso que o colega carregava. Mas nada vinha à mente que pudesse dar um alento aquele coração sofrido. O que falar? Não sabia, entretanto tinha que dizer alguma coisa. Passou a mão direita sobre o cabelo, num jeito que era todo seu, parecendo que segurava um pente invisível. Repetiu o gesto mais uma vez. Depois colocou o dedo polegar na boca. Parecia que tentava imaginar o que se passava no coração do colega. Em seguida respirou fundo, falou e disse:
          - Dr. pode ficar tranquilo. Nós vamos providenciar isso. Mas, Dr., o amigo tem que estar preparado... – deu uma pausa e continuou: - O amigo não deve apostar 100% no fato. Pode ser apenas uma coincidência. Tem muita gente parecida por esse mundo afora, que nem parente é. Mesmo com toda semelhança que tem com você, pode não ser seu irmão.
          - Mas essa hipótese está fora de questão! Ele é o meu irmão sim! O nome dele, acho que ainda não falei, é Antoane Sandez. Dr. o meu coração assim diz. E ele não se engana.
          - Então! Quem pode ir contra o coração?
          - Sabe de uma coisa: nunca acreditei que tivesse perdido meu irmão. Os gêmeos sentem quando um dos irmãos está com algum problema. Nós quase sabíamos o que o outro estava pensando. Engraçado isso, não é? Mas é a pura verdade. Quando ficávamos longe, sabíamos que o outro estava preocupado. Se um dos dois ficasse doente, o outro também ficava de cama. A sensação é que uma parte completa a outra. Eu me sinto pelo meio. Não sou uma pessoa completa. Mas por outro lado, tenho a sensação que essa outra parte não está perdida. Isso eu senti, quando foi encontrado somente o corpo do meu pai. E essa esperança, de encontra-lo, me acompanha até hoje. Nunca duvidei disso.
          - Isso é uma coisa incrível. A medicina não explica como isso acontece. Tenho uns primos que são gêmeos. O que você falou, bate direitinho com eles. Sempre fiquei impressionado com a convivência dos dois. Não se desgrudavam nunca. Se um tinha dor de cabeça, o outro com certeza era afetado com o mesmo problema. Se ficassem afastados, a tristeza pegava os dois. Quem explica isso? Então. Fica tranquilo que amanhã sai o resultado dos exames. Ouve um pequeno atraso. Não conseguimos fazer os exames aqui. Mas fica tranquilo que amanhã você vai conhecê-lo. Mesmo com o pouco que o conheço, tenho quase certeza que ele estará aqui antes do sol nascer.
          - Levantarei juntinho com o sol. Estarei cedinho, na sala dos médicos. Pode apostar nisso. Ah! Doutor! Acabei não comentado que Antoane cursava também medicina! Ia ser um grande médico! Era o melhor da turma!
          A enfermeira acompanhava a conversa dos dois de boca aberta. Uma vez ou outra passava a língua nos lábios, para umedecê-los. De repente lembrou-se que estava com as xícaras de café na bandeja. Sorriu, mas sem jeito, e ofereceu-as aos dois. Dr. Justus pegou primeiro e bebeu de um só gole. Depois devolveu a xícara à bandeja e, demonstrando muita ansiedade, falou:
          - E aí! Continua! Continua!
            Dr. Anton se arrumou na cadeira, pegou a outra xícara de café, bebeu um pouco, e continuou:
          - Como ia dizendo, ele cursava medicina. Estávamos na mesma faculdade, na mesma turma e, pra variar, não nos desgrudávamos nunca. Só nos separávamos aos domingos, por algumas horas, na pescaria com nosso pai. Como disse, ele era uma pessoa muito supersticiosa. Mamãe também é! Ela diz que não! Mas é! Com isso, só ia um de cada vez. Esse domingo fatídico era o meu. Como acordei febril, – e por incrível que pareça, ele acordou bem -, então foi no meu lugar. Não sei se escondeu-me que também estava com febre. Eu nem percebi. E isso me incomoda até hoje.
          - Mas você não teve culpa. Isso foi uma fatalidade. Como foi o acidente? – perguntou o Dr. Justus.
            Antes de responder, Dr. Anton levantou os óculos, colocando-o acima da testa, e em seguida passou a ponta do dedo nos olhos. Dava para notar que a emoção estava à flor da pele. Esticou os olhos pelas paredes da sala por alguns segundos e continuou:

           - Até hoje não conseguimos descobrir o que aconteceu. O barco do meu pai quando foi encontrado, apresentava muitas avarias. O estranho na história, é que o local não era fundo. Era bem próximo de uma ilha. O barco foi encontrado por uns pescadores. Ao passarem próximos da ilha, encontraram uma boia salva vidas, que estava flutuando. Ao pegá-la, viram que tinha uma corda e que essa corda estava presa em alguma coisa no fundo. Ficaram curiosos e um dos tripulantes, que conhecia bem os arredores da ilha, e sabedor que ali não era fundo, mergulhou para descobrir o que prendia a boia. Qual não foi a sua surpresa ao se deparar com uma embarcação no fundo, e bem destruída. Subiu e comunicou o achado aos amigos, que logo entraram em contato com a guarda costeira. Quando tiraram o barco, encontraram o meu pai preso dentro da cabine. Ele deve ter descido para fazer alguma coisa, deixando o meu irmão no comando, quando ouve o acidente e não conseguiu sair.
           Continua semana que vem...