Continuando...
Cara, o lugar que você vai é tão feio e triste que você nem imagina. E o medo não vai te abandonar nem um segundo, ele não vai ser carregado pela correnteza desse rio, não vai desgrudar de você, de jeito nenhum. O sofrimento lá, vai ser pior do que o daqui.
O pretenso suicida olhava-me assustado. Olhos esbugalhados a mirar-me. Mas repentinamente mudou de tom, mas não de atitude.
- Você acredita que vai me fazer mudar? Quando vim para essa ponte, já vim determinado. Vou fazer o que planejei.
Ele falou e subiu novamente na mureta. De repente fez um sinal da cruz. Então aproveitei e tentei novamente argumentar.
- Escuta só, oh panaca! Estou começando a achar que a sua partida vai ser muito bom pra sua família! Você deve ser um zero à esquerda em casa. Aquela pessoa egoísta, chata, mala mesmo! De repente a sua mulher está até pensando em trocá-lo por outro. Já pensou, alguma vez, em ser traído? E se comentarem que o seu ato desesperado foi por causa disso?
O cara me olhou cheio de ódio e desceu novamente da mureta. Fuzilou-me com um olhar que quase me derrubou. Ameaçou se dirigir até a mim, mas desistiu, pareceu com medo de se aproximar de um fantasma. Coçou a cabeça raivosamente e disse, quase gritando:
- Minha mulher jamais faria isso comigo! Ela não é desonesta! É uma esposa fiel! Sempre foi! Eu...
Aproveitei a sua pausa e, abaixando o tom da voz, ponderei:
- Sem estresse. Tudo bem. A sua mulher é muito honesta, eu sei. Ela realmente jamais te trairia. Mas você morto, ela sendo uma mulher jovem e bonita, com certeza, vai arranjar outro pra colocar no seu lugar! Estou certo? Então vou fazer um trato contigo.
- Que trato?
- Escuta só. Antes que você se mate, vamos fazer uma experiência.
- Que experiência? O que é que você quer dizer?
- Você pode se matar amanhã. Ou depois de amanhã. Isso não vai fazer diferença. Você adiando por um ou dois dias. Morte, é morte. Só que essa escolha de morte é terrível!
- Diz logo o que você quer! Nada vai me fazer mudar os meus planos!
- Eu sei. Só quero que você adie. Você vai pra casa, deita e dorme. Quando você estiver ferrado no sono, eu vou te pegar e te levar para onde vão os suicidas, depois do ato tresloucado. Você vai ver e depois você volta aqui para essa ponte e se joga nessas águas. E eu juro que não vou aparecer mais. Foi muito trabalhoso me fazer visível para você.
Esperei um bom tempo. O silêncio era constrangedor. Eu não queria falar mais nada, pois tinha quase certeza que essa cartada era a última. Ele voltou a coçar a cabeça, mas dessa vez na parte de trás e suavemente. Depois, sem falar nada, pegou a calça e a camisa e vestiu. Sentou-se na calçada e colocou os sapatos. Levantou-se e disse:
- Espero você no sono. Se não acontecer nada, amanhã estarei aqui na mesma hora.
Não respondi nada. Sem ele perceber voltei para o mesmo local sem luminosidade e ele me perdeu de vista. Notei isso porque ficou olhando à minha procura.
A pandemia continuava, mas já com pessoas sendo vacinadas. Eu e minha mulher já tínhamos tomado as duas doses. A idade ajudou. Já podíamos sair, mas com cautela. Não podia esquecer da máscara, do álcool e da distância social.
..............Continua semana que vem!