terça-feira, 28 de setembro de 2021

Coisas da Pandemia - Parte 3

 


Continuando...

            Cara, o lugar que você vai é tão feio e triste que você nem imagina. E o medo não vai te abandonar nem um segundo, ele não vai ser carregado pela correnteza desse rio, não vai desgrudar de você, de jeito nenhum. O sofrimento lá, vai ser pior do que o daqui.

          O pretenso suicida olhava-me assustado. Olhos esbugalhados a mirar-me. Mas repentinamente mudou de tom, mas não de atitude.

            - Você acredita que vai me fazer mudar? Quando vim para essa ponte, já vim determinado. Vou fazer o que planejei.   

            Ele falou e subiu novamente na mureta. De repente fez um sinal da cruz. Então aproveitei e tentei novamente argumentar.

            - Escuta só, oh panaca! Estou começando a achar que a sua partida vai ser muito bom pra sua família! Você deve ser um zero à esquerda em casa. Aquela pessoa egoísta, chata, mala mesmo! De repente a sua mulher está até pensando em trocá-lo por outro. Já pensou, alguma vez, em ser traído? E se comentarem que o seu ato desesperado foi por causa disso?

             O cara me olhou cheio de ódio e desceu novamente da mureta. Fuzilou-me com um olhar que quase me derrubou. Ameaçou se dirigir até a mim, mas desistiu, pareceu com medo de se aproximar de um fantasma. Coçou a cabeça raivosamente e disse, quase gritando:

            - Minha mulher jamais faria isso comigo! Ela não é desonesta! É uma esposa fiel! Sempre foi! Eu...

            Aproveitei a sua pausa e, abaixando o tom da voz, ponderei:

            - Sem estresse. Tudo bem. A sua mulher é muito honesta, eu sei. Ela realmente jamais te trairia. Mas você morto, ela sendo uma mulher jovem e bonita, com certeza, vai arranjar outro pra colocar no seu lugar! Estou certo?  Então vou fazer um trato contigo.

            - Que trato?

            - Escuta só. Antes que você se mate, vamos fazer uma experiência.

            - Que experiência? O que é que você quer dizer?

            - Você pode se matar amanhã. Ou depois de amanhã. Isso não vai fazer diferença. Você adiando por um ou dois dias. Morte, é morte. Só que essa escolha de morte é terrível!

             - Diz logo o que você quer! Nada vai me fazer mudar os meus planos!

             - Eu sei. Só quero que você adie. Você vai pra casa, deita e dorme. Quando você estiver ferrado no sono, eu vou te pegar e te levar para onde vão os suicidas, depois do ato tresloucado. Você vai ver e depois você volta aqui para essa ponte e se joga nessas águas. E eu juro que não vou aparecer mais. Foi muito trabalhoso me fazer visível para você.

            Esperei um bom tempo. O silêncio era constrangedor. Eu não queria falar mais nada, pois tinha quase certeza que essa cartada era a última. Ele voltou a coçar a cabeça, mas dessa vez na parte de trás e suavemente. Depois, sem falar nada, pegou a calça e a camisa e vestiu. Sentou-se na calçada e colocou os sapatos. Levantou-se e disse:

             - Espero você no sono. Se não acontecer nada, amanhã estarei aqui na mesma hora. 

           Não respondi nada. Sem ele perceber voltei para o mesmo local sem luminosidade e ele me perdeu de vista. Notei isso porque ficou olhando à minha procura.

               A pandemia continuava, mas já com pessoas sendo vacinadas. Eu e minha mulher já tínhamos tomado as duas doses. A idade ajudou. Já podíamos sair, mas com cautela. Não podia esquecer da máscara, do álcool e da distância social. 

..............Continua semana que vem!

 

 

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Coisas da Pandemia - Parte 2

 


 Continuando...

            Imaginei que ele nem piscava ao olhar aquela torrente. E nem se importava com a lua que brilhava no meio de algumas nuvens esparsas. Nem sei se ele percebia a sua claridade, misturada com a de uma lâmpada um pouco distante, que tremeluziam na lâmina d’água, juntamente com a sua sombra. De repente ele se arriou, sentou-se na curta calçada e começou a tirar os sapatos. Colocou-os cuidadosamente encostados na mureta. Depois se despiu ficando apenas de cueca. A camisa e a calça, dobrou-as com zelo e colocou-as em cima do par de sapatos. Olhou para o céu e deu de cara, por alguns segundos, com a lua. Em seguida escalou a mureta e ficou em pé. A princípio equilibrava-se firmemente, mas depois começou a se balançar levemente. Parecia que ia cair. Nesse momento eu fiz um psiu. Depois um “ei”. Ele olhou para um lado e depois para o outro, procurando de onde tinha vindo o som. Como eu estava numa parte sem luminosidade, ele não conseguiu me ver. Então caminhei mais um pouco em sua direção e fiquei numa região um pouco mais clara. Me viu. Mas como ele apenas me encarava, sem nada falar, eu tomei a iniciativa.

          - Você está parecendo um panaca, aí em cima, quase pelado, pronto para se jogar nesse rio sujo e gelado. Está querendo morrer? Pra quê?

           Ele então respondeu-me rispidamente:

          - Problema meu! E panaca é a sua mãe! Vou me jogar aqui e resolver todos os problemas da minha vida, num mergulho só!

          - Engano seu. Você não sabe de nada! É um panaca mesmo! Não vai conseguir resolver problema algum da sua vida, assim.  Quem disse isso pra você, é outro panaca.

           Ele me olhou, a princípio em silêncio, mirou-me de cima a baixo, por alguns segundos, e depois desceu da mureta cheio de atitude.

           - Quem é você, hein cara? Não se intrometa na minha vida, não!

           - Meu nome não interessa! Eu estou morto! E estou me lixando pra sua pobre vida!

           Olhou-me com os olhos arregalados. E aproveitando o seu estado de choque, continuei a falar.

           - Cara você me deu muito trabalho para me fazer visível! Eu estava passando por aqui, porque essa região do planeta me é muito agradável, me traz muitas recordações boas, aí te vi aqui querendo manchar esse lugar tão lindo, parei. Nesse momento, você não vê, mas essa ponte está cheia de mortos que torcem pra você pular. Se você conseguisse ver a cara de alguns, era capaz de morrer de susto, aí já evitava o seu tresloucado desejo.

          - Mas você está morto mesmo? E tem essa porção de gente morta aqui perto de mim? Eu nunca acreditei nesse negócio de gente morta voltar. Pra mim morreu, acabou.

          - Tem muita coisa que você não sabe. Ou melhor: você não sabe de quase nada. Eu sei que você está querendo morrer, porque está com medo. Olha só que burrice! Quer se suicidar porque está com medo de morrer de covid, não é isso?

          - Como é que você sabe?

          - Eu sei. Mas como é que fica a sua família nessa história? Vai ficar péssima. Você vai e deixa a sua imagem de covarde. E o pior que você vai sofrer o diabo lá do outro lado. Os pensamentos de dor da sua família, vão atingi-lo aonde você estiver! 

.........Continua semana que vem!