terça-feira, 30 de agosto de 2016

O Catador de Histórias - Parte Final

continuando...
          Tião ficou acompanhando com os olhos a saída dos amigos. Esperou que eles sumissem do outro lado do lixo, para pegar o seu embrulho, dentro da mochila. Sentou-se no seu banquinho improvisado e abriu-o no chão. Mas antes olhou ao redor para ver se tinha alguém espionando. Aparentemente não tinha ninguém na espreita. Não viu nada suspeito. Nem uma viva alma zanzava por aquele pedaço. Respirou fundo e foi abrindo parte por parte do pacote. Os batimentos cardíacos iam aumentando a cada movimento que fazia ao abri-lo. A arma estava logo de cara. O brilho invadiu os seus olhos. Um arrepio estranho percorreu o seu corpo. Deixou-a de lado. Olhou para a carta, mas não quis lê-la de novo. Pegou o maço de notas de real e cheirou. Sentiu um grande prazer em fazer isso. Fez a mesma coisa com as verdinhas. As notas de 100 dólares brilharam. Os seus olhos brilharam também. Ficou com medo de ter uma recaída e colocou-as em cima da carta. Levantou-se e ficou mirando o embrulho aberto. Estava tão distraído, olhando o seu pacote, que nem percebeu quando, sorrateiramente, Biu Coveiro chegou. Ninguém gostava do cara. Diziam que não era boa gente. Já estava sumido a mais de ano. Deram graças a Deus quando desapareceu. O lixão ficou em paz. Todos sentiam medo dele. Não tinham certeza, mas falavam que o cabra, um sertanejo troncudo, já tinha mandado muita gente, lá no sertão, pra debaixo da terra. Mas isso não deveria assustar ninguém, já que ele tinha sido coveiro. Entretanto os colegas de infortúnio não entendiam por esse lado e criaram uma lenda sobre o cara. De repente o próprio Biu foi o criador. Falou para alguém que já tinha mandado muita gente pra debaixo da terra, aí... Queria que ficassem com medo da sua pessoa. Mas lenda ou não, Biu, com u mesmo, gostava de viver solitário. Ninguém sabia nada da sua vida: se tinha parente aqui ou lá no sertão nordestino, se tinha mulher e filho.  A verdade é que ninguém tinha coragem de puxar tal assunto com ele. A sua vida era uma incógnita. O seu sorriso causava arrepios: os caninos, bem grandes e pontiagudos, eram folheados de ouro. Às más línguas diziam que ele tinha tirado o ouro dos dentes de um defunto, quando era coveiro. Mas era outra história que ninguém tinha certeza. Até Ximbica dizia aos quatro ventos, que o cabra tinha parte com o demo. Era vampiro, de sugar o sangue até de velhinhas desamparadas. Eram muitas estórias envolvendo o misterioso mundo de Biu. Ele foi se aproximando até quase se encostar em Tião. Próximo da sua orelha, falou baixinho: - U cabra pode ficá calminho. Gostei du embrulho e vou levá. Vou levá numa boa.
          Tião se virou e encontrou a cara de Biu, próximo da sua, e falou assustado: - O que é isso Biu? Não somos amigos, mas somos colegas de infortúnio! O que é isso? Eu não sabia que você era ladrão!
          - E não sou. Mas a ocasião faz o ladrão. E ou não é? Mas vamos deixar de papo furado e passa logo esse embrulho pra mim! Eu sei que ele também não pertence a ti! Você achou aqui no lixo. Eu vi quando você encontrou. Só não sabia que tinha grana. Só tinha visto a arma e você lendo alguma coisa. Na hora não me interessei e fui embora. Mas agora não, cabra! Isso tudo me interessa! Isso tudo, eu quero dizer a grana! Ela agora mi pertence!
          - Não cara! Isso é meu! Mas se você quiser, eu divido com você também! Eu já ia dividir com Ximbica, Moreno e Tiziu! Pode entrar na divisão também! Cara, larga essa arma!  Ela está carregada!   Num vai fazer besteira! Para com isso! Não aponta esse troço pra mim! Tô te pedindo! Tu acha que tenho medo? Tenho não! Sou nordestino igual a você! Sou cabra macho! Larga isso aí! O dinheiro é meu! Larga tudo! Eu te falei cabra!
         Tião se abraçou com Biu, tentando pegar a arma e tirar o embrulho da sua mão. Rolaram por cima do lixo. Tião já estava segurando o cano da arma. Biu tentava de qualquer forma tomar conta da situação. Rolaram mais algum tempo. O cansaço já começava a tomar conta dos dois. Tião, mesmo deitado, conseguiu dar uma cabeçada em Biu. O sangue escorreu pelo seu rosto. Mas o cabra não demonstrou qualquer incomodo. Aí Tião se descuidou e levou também uma cabeçada, mas no nariz. Os dois já estavam lavados de sangue. Mas a luta parecia não ter fim. Eram sangue e lixo cobrindo os dois. De repente um estampido ecoou pelo lixão, seguido de um silêncio tumular. Os dois estavam com a cara enterrada no lixo. Ninguém se movia. Estavam tão sujos, que ninguém conseguiria identificar de quem era aqueles corpos, com a cara dentro do lixo.
         O estampido foi ouvido por todos os trabalhadores, catadores de lixo. Os três amigos de Tião ficaram sem ação e olhavam-se apenas. De repente Moreno disparou numa correria só, indo em direção onde ficava o amigo. Alguma coisa dizia que Tião estava em apuros. Os outros automaticamente o seguiram e mais uma dezena de colegas foi arrastado pelos três. Moreno chegou esbaforido. Ficou parado, parecendo uma estátua, olhando o amigo deitado de barrica para baixo, com a cara enterrada no lixo e envolvido por muito sangue. Observou que ele segurava uma arma pelo cano. E próximo dos seus pés, tinha um pacote aberto, onde apareciam duas notas, sendo uma de cem reais e outra nota de cem dólares, e por baixo das notas, um envelope. Moreno se abaixou e pegou o envelope e abriu-o. Não sabia ler e apenas olhou. Se abaixou novamente e desvirou o amigo, mas ele já tinha escapado da miséria. Limpou o seu rosto e viu que não era Tião. Era Biu. Tinha levado um tiro certeiro no coração. Olhou em volta e não viu ninguém, ainda não tinha chegado Ximbica, Tiziu e outros catadores de lixo. Procurou para ver se via o rastro do amigo, mas nada. Não tinha ninguém próximo. – Aqui é a área du meu brodi... Cadê ele? – falou baixinho.
           Ximbica chegou um pouco depois, acompanhado do seu amigo Tiziu e outros catadores. Olhou para o colega que estava morto e comentou: - Será qui Biu deu cabu da própria vida? - Tiziu que estava logo atrás respondeu: - Como? Ninguém atira contra o coração, segurando a arma pelo cano, Ximbica!
           Os três ficaram ali olhando para o cadáver de Biu, em silêncio. Os outros colegas foram saindo um a um. Mesmo não se dando muito com o cabra, demonstravam que estavam tristes com o acontecido. Principalmente Moreno, que deixava uma linha de lágrima descer pelo rosto. Ximbica se aproximou mais do corpo de Biu e observou que do lado tinha um embrulho. Pegou-o, abriu-o e viu que tinha algum dinheiro. Eram algumas notas azuis e verdes. Não devia ter mais de vinte notas de cada cor. Junto estavam algumas folhas de papel pautado, escritas. Desfolhou, mas como não sabia ler nada, entregou para Tiziu que pegou uma, aleatoriamente, e leu. Ficou cismado com o que leu. Coçou a sua barba rala, fechou a carta, mas abriu-a novamente, na mesma folha. Ximbica olhou para ele e perguntou baixinho: - I aí, u qui tá escritu? – Tiziu, antes de falar alguma coisa, olhou em volta para ver se ainda tinha mais alguém, além dele e seus dois amigos. Como eram somente os três, ficou na dúvida se realmente valia a pena ler para eles. Entretanto Ximbica continuou insistindo, até que ele resolveu ler um trecho da carta.
          - Ladrão não tem coração? Acertou. Acha que se ele for preso vai mudar? Errou. Ladrão é ladrão. 
          Moreno e Ximbica ficaram olhando para o amigo, esperando alguma coisa mais. Já que o amigo não falava nada, Moreno se adiantou e perguntou: - E aí? Que qui issu qué dizê?
           - Nada não. Nada não. É só mermo alguma coisa iscrita. – respondeu Tiziu. Depois pegou a carta, amassou-a e empurrou-a para dentro do bolso. Chamou os amigos e foi embora, coçando a cabeça. Mas parou a alguns metros a frente. Moreno interpelou-o: - Quê qui ouvi? – Nada não. Só uma coisinha. – Qui coisinha? – Me ispere aqui, qui eu já voltu. – Vai a donde? – Já voltu. Não saiam daqui.
          Tiziu voltou até o local onde estava o corpo de Biu. Olhou para ele, que causava medo em muita gente e que agora estava ali sem a moldura de perigoso, arriou-se ao lado, tirou a arma de fogo da sua mão, procurando não deixar que os amigos vissem, depois colocou o polegar no gatilho. Limpou o local onde tinha colocado a sua mão, isso tinha visto num filme, e procurou deixar o braço estendido na mesma posição. Fez o sinal da cruz e voltou para encontrar os amigos. Ximbica olhou para ele e falou: - Ué! Num sabia qui você era das religião! Feis até uma cruis no peitu! 
          - Ele não era meu amigo, mais rezei pra eli, Ximbica.
          - Devi sê muitu chatu morrê i não tê ninguém pra rezá pra genti, num é? – completou Ximbica.
         – Também achu! Também achu! I aí Tiziu! I o nosso brodi? Cadê eli? Pronde foi?
         - Num sei Moreno! Num sei! Vamo avisar a polícia du ocorridu?
         - Brodi! Num vai dá zebra não? Achu pirigosu botá  poliça nissu!
         - Alguém tem qui avisá. Mas não agora. Vamo deixá Biu esfriá. Pobre Biu! Pobre Biu! Parecia qui era valenti, mas achu que se matou!
         -Ué! Tiziu tu não dissi qui ninguém si mata sigurando o cano da arma?         
         - Achu que a genti si confundiu Ximbica. O cabra tava sigurando o trabuco pelo gatilho. Mais deixa pra lá, isso não tem importância, o cabra não vai viver mais mermo! Pobre Biu! Pobre Biu!
         - Tu  dissi, tá dito! Vamu nessa! Deixa Biu isfriá!


                                                                Fim                    


quarta-feira, 17 de agosto de 2016

O Catador de Histórias - Parte 6

Continua...
             Tião leu a carta e lembrou-se da sua Maria Aparecida. O coração disparou e os olhos ficaram úmidos. Maria Aparecida... e desapareceu. – Como será que ficou esse amor do alemão com a brasileira? Será que ele conseguiu ler a carta? – ficou ruminando essas interrogações. Resolveu lançar o pedaço do caderno para o alto do monte de lixo. Mas a carta dobrou-a e colocou-a no bolso. Iria lê-la novamente a qualquer hora. Tinha ficado emocionado e isso era bom. Entretanto, como um raio, um pensamento intrusão quebrou aquele momento de pura emoção: - Você pode botar o seu nome nessa carta. Rasga esse pedaço da folha, que está com o nome dela, e larga o seu. – Tião coçou a cabeça e pensou na possibilidade, mas depois se lembrou de uma parte, em que ela fala no nome do alemão. Deu um suspiro e falou baixinho: - Puxa! Se ela tivesse colocado meu amor, aí ia ser mole! Podia fazer uma onda com os meus amigos. Já pensou: eu com um amor de uma alemã? – Tião mostrou uma cara de total frustração. Pegou a carta e percebeu a inutilidade de guardá-la, pois não poderia tirar proveito algum. De repente brotou um sentimento misto de decepção e ódio. Começou a rasgando a carta em pedaços bem miúdos. Depois deu um chute numa vasilha de plástico que estava próxima do seu banco improvisado. Após o acesso de raiva, Tião colocou a mão na cabeça e balançou-a seguidas vezes, querendo tirar o som que ecoava lá dentro: - Ladrão! Ladrão!  - saiu dali o mais rápido possível. Foi arrastando o seu burrinho sem rabo, sem perceber que estava passando por cima de tudo. Não conseguia enxergar o que estava à sua frente. Passou pelos amigos como se fosse um foguete. Saiu do lixão e quase foi atropelado por um caminhão que estava entrando. Só conseguiu parar, quando chegou ao barraco. Estava ofegante. Quase não conseguia respirar. Meteu a mão no bolso e tirou uma chave. Tentou abrir o cadeado, mas a mão teimava em continuar tremendo. Espalmou as mãos na porta e encostou, também, a testa. Dentro da sua cabeça era uma confusão só. Ser chamado de ladrão era a última coisa que poderia acontecer na sua vida. Ser pobre não era sinônimo de ser desonesto. Continuou ali, na mesma posição, pensativo. Parecia que estava petrificado, colado na porta. Respirou fundo e falou baixinho: - Isso que estou vivendo nesses dias, é apenas um pequeno deslize. Isso não é motivo para me desesperar. Mas os meus amigos não podem saber que eu não sou poeta e nem pintor. Meu Deus! E esse dinheiro que achei? Agora a minha vida se complicou ainda mais. Mas acho que tenho uma solução: dividir a grana com eles. Isso mesmo. Pensando melhor, dividir... dividir não! Eu posso dar uma merreca para cada um e, - pronto! - fica tudo bem! Pelo menos tiro um peso nos meus ombros. Pensando melhor ainda: dinheiro achado, não é dinheiro roubado. Então, dividir pra quê?
          Tião conseguiu abrir a porta e entrar no barraco. Estava se sentindo mais tranquilo. A sua consciência pesava menos. Mas foi só olhar a fotografia da mãe na cabeceira da sua cama e o sentimento de culpa se instalou novamente. Chorou abraçado à fotografia. Sabia que os valores ensinados pela sua mãe, jamais se desgrudaria dele. O seu passado no sertão, com a mãe e os irmãos, desfilaram na sua cabeça. Sentiu o cheiro da fome que passou durante tantos anos com eles. Mesmo com tantas privações, a mãe jamais permitiu que subtraíssem qualquer coisa de alguém. Roubar, jamais. A honestidade sempre em primeiro lugar. E que Deus se encarregaria de suprir as suas necessidades. Assim sempre foi a sua vida naquele pedaço de terra esquecida pelos homens e Deus. Parecia que alguém tinha implantado um chip dentro da sua cabeça, com esse mandamento: não roubarás.  Enxugou as lágrimas que desciam pelo rosto, olhou para o quadro pendurado na parede, para as poesias, que estavam em cima do caixote, que servia de mesinha de cabeceira, e abriu a mochila. Pegou o embrulho que tinha o dinheiro e a arma e sentou-se na cama tosca. Ficou na dúvida se deveria abri-lo ou não. Mas uma vontade incontrolável fez com que abrisse o pacote. A arma brilhou a frente dos seus olhos. O brilho parecia um convite para pegá-la. Acabou não resistindo e colocou-a na palma da mão. Mais uma vez àquela voz ecoou dentro da sua cachola: - Aperta o gatilho! Vamos! Aponte para o coração e atire! – Tião sentiu o seu corpo todo tremer. Ele não soube se começou nos pés ou no último fio de cabelo. Mas parecia que não ia parar nunca. Mesmo com a mão querendo sair do braço, apontou a arma na direção do coração e colocou o dedo no gatilho. Ficou tentado a apertá-lo, mas resistiu e colocou de volta o revolver no embrulho. Estava com uma cara fechada. O suor pingava do seu rosto. Olhou para a foto da mãe e o seu rosto começou a se descontrair. Rapidamente um sorriso brotou. E um pensamento fluiu levemente: - Vou contar a verdade aos meus amigos! Puxa! Posso dividir esse dinheiro com eles! São meus únicos amigos! Únicas pessoas que confio! Honestas até debaixo d’água! Vou procurar os três, logo que lá chegar!
          Tião entrou no banheiro, mas não demorou muito. Foi um banho rápido, o bastante para tirar o mau cheiro que, a cada dia, ficava mais difícil de sair. Tinha a sensação que o fedor já estava impregnando a alma. Pegou um perfume que tinha achado no lixão, com o tempo de validade já estourado, e espalhou pelo corpo todo. Puxou fundo o ar e achou que tinha ficado um pouquinho perfumado. Foi até a cozinha, que, na realidade, ficava dentro do quarto, (eram apenas dois cômodos: quarto, sala e cozinha, num cômodo só, e um minúsculo banheiro), e pegou uma lata de sardinha, abriu-a e comeu com um pedaço de pão dormido. Mas antes tomou uma golada de pinga, para abrir o apetite. Aquela sardinha e o pão seria o seu jantar. Não tinha vontade nenhuma de cozinhar alguma coisa. Quando a mulher estava com ele, era diferente: já sentia o cheirinho da comida do lado de fora do barraco. Era só chegar e jantar. Mas isso já estava morando no passado. Já beirava um ano que a mulher tinha ido embora. Pensou: - Está na hora de me acertar com alguma cabrocha. Mas – que raios! – não consigo me esquecer dela! – Tomou outra dose de cana e terminou de comer a sua sardinha. Barriga abastecida foi para fora do barraco e ficou apreciando o céu. Não entendia nada, nada daqueles pontos luminosos. Não sabia se aquilo servia de alguma coisa, mas achava bonito. Pelo menos alguma coisa era bonita por ali. Olhou para a lua e pensou: - A pobreza deve ser bonita para muita gente, que não seja pobre. Se isso realmente incomodasse muito mesmo, já tinham acabado com ela. – viu quando uma estrela cadente cortou o horizonte. Não sabia também o que era, mas mesmo assim fez um pedido. Pelo menos isso ele sabia. Na sua terra, no sertão nordestino, ouvia as pessoas falarem sobre isso. A mãe, o pai, ele e os irmãos, faziam o seu pedido. No tempo que ficou lá, nunca soube de alguém que tenha tido os seus pedidos atendidos. Mas mesmo assim, pedia alguma coisa. Vai que consegue! Como todo sertanejo, não podia ser diferente, tinha esperança. Às vezes demorava a ver outras estrelas cadentes, mas quando via, automaticamente, já fazia mais um pedido. Um dia podia ser atendido.
          - Quem sabe Deus, vendo a sua fé, não escutasse ele dessa vez? – falou baixinho, pensando que alguém pudesse escutá-lo. 
          Tião nem se lembrava mais do último pedido que tinha feito, depois que veio para o Rio. Lá no sertão ele se lembrava de todos. Era sempre o mesmo. Achava que todo mundo pedia a mesma coisa: chuva, muita chuva.
          - Chuva nunca mais eu peço. Aqui, sem pedir, dá enchente! – disse, coçando a orelha. Depois ficou mais algum tempo perdido em outros pensamentos e no céu estrelado.
          Aquela noite até que foi boa. Conseguiu dormir um sono dos justos. Os pesadelos que sempre tinha, devem ter dormido também. Acordou junto com um galo do vizinho, que dessa vez não o deixou aborrecido. Estava se sentindo muito bem e acabou até imitando o canto do bicho. Riu sozinho, como há muito tempo não fazia. Lembrou-se do que tinha pensado no dia anterior e a decisão estava tomada: ia contar tudo para os amigos. Ia distribuir o dinheiro com eles, contar a verdade sobre os poemas e o quadro e jogar a arma fora. Foi até o fogão para tomar um café requentado, mas resolveu fazer um fresquinho. Esquentou o pão dormido e saboreou o seu café da manhã tranquilamente. Abriu a porta do barraco, deu uma espreguiçada e pegou o seu burrinho sem rabo. Foi o primeiro a chegar ao lixão. Encaminhou-se para o lugar de sempre. Ali se sentia o dono de alguma coisa. E todos respeitavam esse seu pedaço. Mas em contra partida, ele também não invadia o espaço dos outros. Era uma política de boa vizinhança. Isso já vinha sendo respeitado há muito tempo. Envolvido em pensamentos, não percebeu a chegada dos seus amigos. Assustou-se quando Moreno, sem fazer barulho, falou quase na sua orelha: - Oi brodi! O qui tá havendu com tu? Tá chegandu e, já chegadu, nem fala cum teus brodis! Tô ti discunhecendo! – Tião gagueja um pouco, mas fala com o amigo: - Oi Moreno! Levei o maior susto! Mas tá tudo bem. Tá tudo bem aí? Tô pensando aqui em algumas coisas. Depois eu vou lá, pra gente conversar. Tenho uns negócio pra tratar com vocês.
          -Qui negóciu, brodi?
          - Depois eu vou lá. Vou conversar com vocês três. Me esperem lá. Tenho que pensar uns troços aqui sozinho, mas não vou demorar.

          - Tudo bem. Meu brodi, ti esperu lá. Tô ti achandu cheiu dus mistérius! Vamo Ximbica. Vamo Tiziu.
                              Continua semana que vem...

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O Catador de Histórias - Parte 5

Continuando...
          Tião parecia que estava em estado de choque. Olhava para o bilhete e não atinava no que fazer. E assim ficou por muito tempo. Quem o visse naquela posição, ia confundi-lo com uma estátua. Aos poucos a vida voltou a tomar posse do seu corpo. Coçou a cabeça, dobrou o bilhete e colocou-o juntamente com o dinheiro e refez o embrulho. Abriu a sua mochila surrada e jogou-o dentro.  Pensou no dinheiro novamente: - Tenho que pensar com clareza, friamente. Essa grana pode resolver a minha vida. Não foi roubado. Estou completamente limpo. Não tirei de ninguém, ele simplesmente caiu no meu colo. Será que alguém armou isso para me testar? Mas... Cacete! Eu sei que não suei a camisa para conseguir, que não foi trabalho, mas foi roubado por alguém! Que merda! Calma Tião. Muita calma. Essa porra foi jogada no lixo por um ladrão. Será que isso faz de você um ladrão? – Ele ficou cismando essa interrogação. A consciência oscilava entre o bem e o mal. Tentou afastar os pensamentos que o estavam torturando. De repente apareceu na sua mente a figura da sua mulher indo embora. Pensou que poderia trazê-la de volta, com o dinheiro que possuía. Podia comprar um barraco melhor, um carro, consertar os dentes, botando uma dentadura, visitar os parentes no nordeste... Um fio de lágrima desceu pelo seu rosto, quando se lembrou da mãe e dos irmãos, que não via há muitos anos. E a promessa que ficou por lá? Devem estar até hoje esperando uma vida melhor. Desde que veio para o Rio, nunca mais tinha colocado os olhos neles. E isso já fazia mais de uma década. De repente tentou parar de pensar nessas coisas, pois a tristeza já o estava jogando por terra. Parecia que estava vendo a mãe ali pertinho, com o rosto banhado de lágrimas. Acabou fazendo igualzinho ao pai, que tinha prometido voltar rico, para dar uma vida boa para ela e aos seus irmãos, mas sumiu pela vida e nunca mais voltou. Ficou completamente envergonhado, por ele e pelo pai. Depois achou que ali estava a chance de dar-lhes todo o conforto de que precisavam. Entretanto uma dor profunda atravessou-lhe o coração, ao pensar em como explicar-lhes a origem daquele dinheiro. Ele tinha certeza que a mãe ia querer saber. Colocou a mão na cabeça, parecendo que queria colocar as ideias no lugar. Olhou para o carrinho: continuava vazio. Estava igual ao seu coração. Foi crescendo uma vontade de sair dali voando. Não queria ficar por ali, nem mais um segundo. Botou a mochila nas costas, apanhou o burro sem rabo e saiu do lixão. Pegou uma reta e sumiu. Nem olhou e muito menos falou com os amigos. Os três acharam estranho aquele procedimento de Tião, saindo tão cedo, mas preferiram não fazer qualquer indagação.
               O dia e a noite, foram longos para Tião. Os fantasmas estavam de prontidão e rondavam cada pedaço do seu pensamento. Levantou algumas vezes durante a noite. A cada vez, era atraído pelo embrulho. Parecia que tinha um imã grudado. E o seu olhar se fixava na arma. O que tinha escrito no bilhete não saia da sua cabeça. Uma voz ecoava exaltando a sua honestidade. Mas outra voz, mais afiada que peixeira gritava à sua fraqueza. O bem era superado pelo mal. O bom sucumbia aos pés do mau. Vozes iradas faziam coro: - Ladrão! Ladrão!  A sua noite foi mastigada pelos dentes dos pesadelos. Mas o dia começava a dar às caras. Era finalmente manhã. Tião deu graças a Deus. Levantou-se e foi lavar o rosto. O susto foi imediato, ao aparecer de fronte ao espelho quebrado. A sua imagem era de uma pessoa com mais idade. Parecia que tinha envelhecido mais alguns anos, em apenas uma noite.  Olhos fundos e mortos dentro das covas. –Tinha que reagir. – pensou. Jogou um copo de café dormido e frio para dentro do estômago e saiu do barraco. Sentou-se na soleira da porta e ficou olhando para o céu. O dia apenas espreguiçava. O sol ainda não tinha aparecido de todo. Pensou em Deus, coisa que não se lembrava de ter acontecido antes.  Tirou os olhos do céu e torceu o corpo, sem se levantar, para olhar para dentro do barraco. Seus olhos caíram em cima da mesa tosca, onde estava o embrulho. Ainda não tinha encontrado coragem para botar algum dinheiro no seu bolso. Mas alguma coisa fez com que ele se levantasse de um salto. Entrou rápido, pegou o embrulho e colocou-o debaixo do colchão. Ficou ali andando de um lado para o outro. Estava nervoso. A tensão estava fazendo o seu coração disparar. Sentou-se na cama e enterrou a cabeça entre os joelhos. Ficou ali por algum tempo. Levantou-se e, antes de sair, pegou o embrulho de novo e abriu-o. A arma brilhou na frente dos seus olhos. Um arrepio, como nunca tinha sentindo antes, correu dos pés à cabeça. Em seguida um mal estar tomou conta dele. Parecia que a “coisa” ruim estava invadindo o seu corpo. Fechou rapidamente o pacote e arriou o colchão em cima. Em seguida fez um sinal da cruz, embaralhado, e saiu rapidamente do casebre.
                  O burro sem rabo arrastava Tião ladeira abaixo. Pela primeira vez, desde que conseguiu o seu carrinho, ele não desceu na frente do veículo travando-o. Desta vez veio segurando-o por trás, aguentando todo peso. O mal estar continuava grudado nele. Tinha a sensação, de que alguém estava do seu lado, descendo a ladeira.  Sentiu vontade de largar o carrinho e sair correndo dali, até sumir. Mas não concluiu a sua vontade, pois sabia que poderia machucar alguém pelo caminho. Aguentou firme até chegar embaixo. Parou só para respirar um pouco. E respirou, aliviado. Depois continuou o seu caminho até o lixão. Entrou, mas não falou com ninguém. Teve a sensação que não tinha sido notado. Parou no seu lugar de costume e lembrou-se da Mãe Dada. Se alguém perguntasse o que o levou a lembrar-se da Mãe de Santo da comunidade, não saberia dizer.  Mas como lembrou, aproveitou e falou baixinho: - A lembrança da Mãe veio a calhar. Tenho que dar uma chegada lá no terreiro. Tenho que pedir ajuda. A coisa não anda boa pro meu lado. Vou pedir proteção. Acho que alguém rogou alguma praga pra mim. Só foi eu começar a ficar famoso e a coisa desgringolou  a minha vida. Vou procurar a Mãe Dada, o mais rápido possível.
                  Tião passou o dia todo achando que tinha alguém do seu lado. Aquilo já estava incomodando-o bastante. Sentiu vontade de ir embora.  - Só podia ser alma do outro mundo. – pensou. Resolveu sair de onde estava e foi para outra extremidade. De onde ficou, dava para ver os amigos trabalhando. Não quis se aproximar deles, preferiu ficar sozinho, como sempre fazia. Mal começou a mexer no lixo, um caderno velho chamou a sua atenção. Estava rasgado, mas dava para ver algumas folhas escritas. Manuseou, mas não conseguiu ler o que estava escrito. Era uma língua diferente. Mas não conseguiu identificar. O que estava escrito, estava pelo meio. Mas também não fazia a menor diferença, não entendia nada mesmo. Foi folheando para ver se encontrava alguma coisa escrita em português, mas foi em vão. Ia jogar o pedaço de caderno de novo no lixo, mas resolveu continuar a folheá-lo. Já estava cansado de olhar para aquele amontoado de letras e não saber o que estava escrito. Tinha vontade de parar, entretanto alguma coisa o prendia àquelas letras. Depois de tanto folhear, encontrou um papel dobrado no meio das folhas. Abriu-o cuidadosamente. A sua curiosidade era muita. As mãos tremiam. A ansiedade estava estampada nas suas feições. De repente um sorriso brotou nos seus lábios, ao constatar que a carta estava escrita em português. E era uma carta amorosa. Começou a lê-la.
          - Para o meu amor.
            Sei que está ficando quase impossível nos vermos. Mas tenho fé em Deus que vamos conseguir superar todas as dificuldades. Nada neste mundo vai nos separar. Mesmo a dificuldade que temos em nos comunicarmos, não vai ser motivo de nos perdermos um do outro. Eu te juro que um dia vou aprender a falar a tua língua. Não só falar, como escrever. Vamos ficar juntos para sempre. Nossos filhos vão falar português, alemão e italiano, dos meus pais.
            Nós nos vimos apenas duas vezes, mas parece que nos conhecemos há uma eternidade. Sei que vai ser difícil para nos encontrarmos, mas farei o impossível para que isso aconteça. Para eu ir ao seu encontro, parece-me mais fácil. Tendo em vista que a perseguição a tua raça é implacável. 
            Mas estou preocupada. Sei que vai ser muito difícil meus pais aceitarem a nossa união. Para não dizer impossível. Eu acho que não vão aceitar nunca. Sou uma judia. Uma judia com um alemão... eles não vão permitir. Eles acham que todos os alemães são iguais a Hitler. Eu penso diferente. Eu sei que não. Eu rezo para que as coisas mudem. Que aqui as coisas fiquem diferentes. No Brasil tudo é mais brando. Desejo que tenhas paciência e espere. Acho que a guerra não deva se prolongar por muito tempo. Deve acabar em breve. Não volte para a Alemanha, por favor. Se isso acontecer, vai ser muito difícil para nos encontramos novamente.
           Estou tentando fugir da vigilância que está acirrada em cima de mim. Estou sendo vigiada às vinte e quatro horas do dia. Mas pode ficar tranquilo que vou dar um jeito de burlar esta vigilância. Custe o que custar vamos nos encontrar.

            Até agora não consigo entender o porquê de vós, ai da colônia, não falarem a nossa língua. Sei que têm algumas pessoas que falam um pouco, mas são muito poucos mesmo. Vou parar de escrever. Parece que tem alguém se aproximando da porta. Depois eu continuo. Já escondi o caderno debaixo do colchão.
             Era a minha mãe. Por sorte ela não me pegou escrevendo. Voltei a escrever só no dia seguinte. Agora estou olhando para o céu. Batizei uma estrela com o seu nome. É uma das mais brilhantes. Hans, agora eu o vejo toda a noite. Escolha uma estrela e batize-a com o meu nome. Sabe que estamos parecendo duas estrelas mesmo, nos vemos, mas não nos encontramos. Entretanto tenho fé em Deus, que um dia possamos ficar juntos. Nem Hitler, nem Mussolline, nem ninguém vai atrapalhar o nosso amor.
            Pede a alguém da colônia para ler esta missiva. Peça a algum amigo que saiba ler um pouquinho de português. Deve ter alguém.
            Vou parar por aqui. Não devo estender-me mais, tendo em vista que ficará muito difícil para Mariínha escondê-la. Desejo que Deus nos ajude e permita que chegue às vossas mãos o quanto antes.
                                                Amo-te com todo o meu coração

                                                                       Ana
                    Continua semana que vem...

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O Catador de Histórias - Parte 4

Continuando...
Fiquei rico com muita corrupção. Muita gente pensa que o corrupto não se envergonha do que faz. E está certo. Mas eu senti um pouquinho de vergonha no início. Acho que ainda não era profissional. O peso na consciência deve ter sido por causa dos meus filhos: o que eles iriam pensar de mim? Não tenho certeza, mas acho que fui o único que teve esse sentimento. O corrupto profissional prepara bem os seus filhos, para, se um dia for pego, não sentirem vergonha dele. Ladrão! Ladrão que se preza, não tem vergonha da sua “profissão!” Ladrão não tem coração? Acertou. Você acha se ele for preso vai mudar? Errou. Ladrão é ladrão para sempre. Ele muda no período que está preso. Fica compenetrado, estudioso... Se prepara para quando sair. Com certeza, já terá em mente um novo grupo para se aliar e dilapidar o país. Nós somos piratas. Os piratas saqueavam e guardavam o fruto do roubo dentro de cavernas, assim relataram alguns escritores, e saiam para roubar mais. Hoje roubamos e guardamos em bancos Suíços e... continuamos roubando. O corrupto de hoje é o pirata de ontem.
           Apontei a arma várias vezes para a minha cabeça, mas não tive coragem na hora h. Então resolvi tirar a minha vida de outra forma. Esse tirar me deu um ânimo maior. Como todo ladrão que se presa, tira alguma coisa de alguém, eu ia roubar a mim mesmo. Preparei um coquetel de substâncias corrosivas, para não deixar dúvida na hora de partir para o outro lado. Quando a palavra partir apareceu, lembrei que ladrão parte, mas não gosta de repartir nada. Desisti também. Resolvi não me matar. E saí para jogar a arma fora.
          Você que achou o revolver, se for ladrão, use-o. Tenha a coragem que eu não tive. Mas não atire na cabeça, encoste a arma no coração e faça um disparo certeiro. Faça um bom proveito. Coragem! Coragem!
          Não vou assinar essa carta. Sabe por quê? Até agora ainda não fui acusado de nada. De repente nem vou ser. Mas vou esperar a poeira baixar um pouco. Quem sabe depois que acabar em pizza essas investigações que estão acontecendo no Brasil, eu pratique mais alguns atos Ilícitos? Eu vejo todo mundo vê, que mesmo depois de presos, corruptos continuam “trabalhando” em prol dos seus bolsos, atrás das grades, que na realidade não os prendem...
          Amigo ou amiga, para nós, os ladrões oficiais, o crime compensa. A prisão é só um resort. É um hotel de cinco estrelas ou mais. Cuidado, isso é só para quem roubou muito. Tem que ser tanto dinheiro, que nem caiba numa conta só! Então fique atento: nunca roube na casa de mil, tem que ser na casa de bi. Se roubar uma galinha na casa do vizinho, a cana pode ser pesada. Não pense em pena, só se for depenar...  os cofres da nação.                  
          Já escrevi muito. Agora tenho que pensar aonde agir. O galinheiro tem que ter ovos de ouro. Tenho que mudar de área. Tenho que descobrir um lugar que seja pouco visado. Sei que é difícil. Todo lado que a gente olha, tem ladrão. Corrupto é que não falta. Tem que chamá-lo de corrupto, porque ele não se sente um ladrão. Corrupto dá status, ladrão é do nível mais baixo de quem vive da arte de surrupiar.
         Tião parou de ler, dobrou a carta e ficou com o olhar perdido no nada. Estava se sentindo estranho. Depois olhou ao seu redor para ver se via algum amigo. Franziu a testa e passou uma ideia pela sua cabeça confusa: - Será que foi algum amigo que colocou aquela arma ali? Podia ser inveja de algum deles. De repente estava querendo tirá-lo do caminho e pegar o seu quadro e as suas poesias e virar poeta e pintor. Não! Isso não pode ser! – resolveu continuar a sua leitura. Abriu a carta, colocou-a na coxa e tentou desamassar um pouco a folha. Recomeçou a ler.
          -Tenha coragem. Acho que estou me dirigindo a um ladrão de quinta categoria. Você sendo um simples ladrão, é fácil dar cabo da sua vida. Não pode deixar chegar ao status de corrupto, pois vai faltar coragem suficiente para apertar o gatilho ou ingerir qualquer substância letal. Vai por mim, não pense duas vezes, atire logo. Ah! Antes que me esqueça, tem mais um envelope no meio dessa quantidade toda de jornal. Esse envelope é interessante. Não quero ser ladrão sozinho... No meu caso, corrupto. Já você, um mero ladrão. Isso caso você não resista, fique com o conteúdo do envelope e queira continuar roubando. Aí a decisão é sua. Por favor, não erre o tiro.   
           Tião não sabia o que pensar daquilo tudo: uma arma e uma carta. Se lembrou de novo que nunca tinha recebido correspondência de ninguém. Estava achando que o destino queria pregar uma peça nele. Como vinha dizendo há alguns dias e fez questão de repetir de novo:- Eu não sou ladrão! Eu não sou ladrão! – mas a dúvida começou a bater fundo. - Ladrão! Ladrão! - Parecia que essa acusação ecoava dentro da sua cabeça.  Era muita coincidência isso tudo cair no seu colo. - O que fazer? – se perguntava. Olhou para o embrulho e começou a remexê-lo. Foi tirando outras folhas de jornal. Parecia que o pacote estava enrolado com mais de dez jornais. Finalmente encontrou outro pacote, bem gordinho. E como era gordinho: devia ter mais de um palmo de altura. Estava mais para outro embrulho do que envelope. A princípio teve vontade de ir rasgando logo, mas depois achou que seria mais prazeroso ir abrindo vagarosamente, domando a curiosidade. Ir até o final, deviria ser como ter um orgasmo. No final não teve o tal orgasmo, mas se urinou todo de emoção. Seus olhos quase saltaram das órbitas. Fechou o envelope rapidamente. Em seguida olhou ao redor, para ver se tinha alguém nas proximidades. Constatou que daquele lado, só tinha ele, o lixo fedorento e aquele misterioso pacote em suas mãos.   Engoliu um pedaço de riso. Na hora não identificou se era de alegria ou ansiedade, ou ainda nervosismo. Sabia que tinha se urinado todo. Nunca tinha sabido de alguém que tenha se urinado de alegria. De medo, sabia de muitos. Mas o que ele tinha visto, só deveria dar alegria. Não sabia ao certo se estava alegre ou com medo. Tentou se controlar. Estava meio confuso. Respirou várias vezes com bastante intensidade. Se tinha ficado calmo, ainda não tinha certeza, entretanto tinha ficado tonto. Esfregou as mãos e foi abrindo novamente o envelope. Dessa vez procurou ir bem devagar. Depois de aberto, ficou admirando o seu conteúdo. Aos poucos um leve sorriso voltou aos seus lábios. Tentou frear a sua emoção, pois tinha medo de encher a sua boca de riso em vão, achando que aquilo podia ser pura ilusão. Olhou bem para se certificar que não era miragem. Alisou o bolo de notas azuis e ficou emocionado. Trocou o sorriso que estava querendo dar às caras, por uma gota de lágrima. As mãos foram ficando cada vez mais trêmulas, enquanto desfolhava o bolo de dinheiro. Parecia que as notas azuis não iam acabar nunca. Depois da última azulzinha, começaram notas verdes. Tinha mais que a azul. Era um dinheiro que ele nunca tinha visto. Pegou uma e ficou tentando ler. Não sabia que dinheiro era. Só foi se ligar, quando encontrou a palavra chave: dólar. Aí pensou cheio de emoção: - Caramba! Acho que tem muita grana aqui! Só tem nota de 100, azul e verde! Acho que tou rico!  Caramba!  Tou rico! – Ele conseguiu se controlar e segurar a euforia na garganta. Ficou algum tempo ainda se abanando com a bolada de dinheiro. Depois, com um olhar de quem está apaixonado, ficou namorando as azuis e verdes. O coração estava disparado. Finalmente a riqueza batia à sua porta. Pegou o bolo de dinheiro e colocou-o no braço, como se estivesse ninando uma criança. Tinha que guardá-lo, mas antes de escondê-lo dentro do embrulho, arrumou o local. Ao passar a mão, apareceu outro papel dobrado: era mais um bilhete. Pegou-o e colocou-o num dos bolsos. Antes de lê-lo, procurou enrolar bem nos jornais, os reais e os dólares. A ansiedade invadiu-o violentamente. Esfregou as mãos e sacou o bilhete do bolso. Abriu-o com as mãos tremendo. Respirou fundo e começou a lê-lo.

          -Bem vindo ao mundo dos ladrões! Ao clube seleto dos corruptos! Viu como estou entusiasmado? E aí, olhou bem para essa pequena fortuna? Essa grana é só para encaminhá-lo ao nosso mundo. Se bem que esse valor é só para servir de estímulo. Não chega nem aos pés de uma propina oficial. Posso até dizer que não passa de uma merreca. Mas para você é um valor considerável, eu sei. Para nós, do clube, só dá para o café da manhã.  Só quero iniciá-lo. Entretanto você tem uma chance de não se sujar: é só ignorar o presente. Mas se aceitar e depois ficar envergonhado, dê um tiro no coração. Eu sei que já está morrendo de amores pelo pacote. Você está com a chance na mão de ser o único corrupto a se arrepender, antes mesmo de entrar de corpo e alma nas grandes propinas. Aproveita o lugar que você está e não deixa que esse vírus contamine você. Acaba logo com ele. É um tiro só e pronto. Se não conseguir, com certeza, vai achar normal subtrair. Esse pouquinho aí pode virar um rombo do tamanho da Petrobras. Então cuidado. Vai por mim e dê um tiro no coração. Isso tem que ser interrompido agora, senão poderá passar para os seus filhos, seus netos e... Não pára nunca. Coragem homem!  
        Continua semana que vem...