quarta-feira, 17 de agosto de 2016

O Catador de Histórias - Parte 6

Continua...
             Tião leu a carta e lembrou-se da sua Maria Aparecida. O coração disparou e os olhos ficaram úmidos. Maria Aparecida... e desapareceu. – Como será que ficou esse amor do alemão com a brasileira? Será que ele conseguiu ler a carta? – ficou ruminando essas interrogações. Resolveu lançar o pedaço do caderno para o alto do monte de lixo. Mas a carta dobrou-a e colocou-a no bolso. Iria lê-la novamente a qualquer hora. Tinha ficado emocionado e isso era bom. Entretanto, como um raio, um pensamento intrusão quebrou aquele momento de pura emoção: - Você pode botar o seu nome nessa carta. Rasga esse pedaço da folha, que está com o nome dela, e larga o seu. – Tião coçou a cabeça e pensou na possibilidade, mas depois se lembrou de uma parte, em que ela fala no nome do alemão. Deu um suspiro e falou baixinho: - Puxa! Se ela tivesse colocado meu amor, aí ia ser mole! Podia fazer uma onda com os meus amigos. Já pensou: eu com um amor de uma alemã? – Tião mostrou uma cara de total frustração. Pegou a carta e percebeu a inutilidade de guardá-la, pois não poderia tirar proveito algum. De repente brotou um sentimento misto de decepção e ódio. Começou a rasgando a carta em pedaços bem miúdos. Depois deu um chute numa vasilha de plástico que estava próxima do seu banco improvisado. Após o acesso de raiva, Tião colocou a mão na cabeça e balançou-a seguidas vezes, querendo tirar o som que ecoava lá dentro: - Ladrão! Ladrão!  - saiu dali o mais rápido possível. Foi arrastando o seu burrinho sem rabo, sem perceber que estava passando por cima de tudo. Não conseguia enxergar o que estava à sua frente. Passou pelos amigos como se fosse um foguete. Saiu do lixão e quase foi atropelado por um caminhão que estava entrando. Só conseguiu parar, quando chegou ao barraco. Estava ofegante. Quase não conseguia respirar. Meteu a mão no bolso e tirou uma chave. Tentou abrir o cadeado, mas a mão teimava em continuar tremendo. Espalmou as mãos na porta e encostou, também, a testa. Dentro da sua cabeça era uma confusão só. Ser chamado de ladrão era a última coisa que poderia acontecer na sua vida. Ser pobre não era sinônimo de ser desonesto. Continuou ali, na mesma posição, pensativo. Parecia que estava petrificado, colado na porta. Respirou fundo e falou baixinho: - Isso que estou vivendo nesses dias, é apenas um pequeno deslize. Isso não é motivo para me desesperar. Mas os meus amigos não podem saber que eu não sou poeta e nem pintor. Meu Deus! E esse dinheiro que achei? Agora a minha vida se complicou ainda mais. Mas acho que tenho uma solução: dividir a grana com eles. Isso mesmo. Pensando melhor, dividir... dividir não! Eu posso dar uma merreca para cada um e, - pronto! - fica tudo bem! Pelo menos tiro um peso nos meus ombros. Pensando melhor ainda: dinheiro achado, não é dinheiro roubado. Então, dividir pra quê?
          Tião conseguiu abrir a porta e entrar no barraco. Estava se sentindo mais tranquilo. A sua consciência pesava menos. Mas foi só olhar a fotografia da mãe na cabeceira da sua cama e o sentimento de culpa se instalou novamente. Chorou abraçado à fotografia. Sabia que os valores ensinados pela sua mãe, jamais se desgrudaria dele. O seu passado no sertão, com a mãe e os irmãos, desfilaram na sua cabeça. Sentiu o cheiro da fome que passou durante tantos anos com eles. Mesmo com tantas privações, a mãe jamais permitiu que subtraíssem qualquer coisa de alguém. Roubar, jamais. A honestidade sempre em primeiro lugar. E que Deus se encarregaria de suprir as suas necessidades. Assim sempre foi a sua vida naquele pedaço de terra esquecida pelos homens e Deus. Parecia que alguém tinha implantado um chip dentro da sua cabeça, com esse mandamento: não roubarás.  Enxugou as lágrimas que desciam pelo rosto, olhou para o quadro pendurado na parede, para as poesias, que estavam em cima do caixote, que servia de mesinha de cabeceira, e abriu a mochila. Pegou o embrulho que tinha o dinheiro e a arma e sentou-se na cama tosca. Ficou na dúvida se deveria abri-lo ou não. Mas uma vontade incontrolável fez com que abrisse o pacote. A arma brilhou a frente dos seus olhos. O brilho parecia um convite para pegá-la. Acabou não resistindo e colocou-a na palma da mão. Mais uma vez àquela voz ecoou dentro da sua cachola: - Aperta o gatilho! Vamos! Aponte para o coração e atire! – Tião sentiu o seu corpo todo tremer. Ele não soube se começou nos pés ou no último fio de cabelo. Mas parecia que não ia parar nunca. Mesmo com a mão querendo sair do braço, apontou a arma na direção do coração e colocou o dedo no gatilho. Ficou tentado a apertá-lo, mas resistiu e colocou de volta o revolver no embrulho. Estava com uma cara fechada. O suor pingava do seu rosto. Olhou para a foto da mãe e o seu rosto começou a se descontrair. Rapidamente um sorriso brotou. E um pensamento fluiu levemente: - Vou contar a verdade aos meus amigos! Puxa! Posso dividir esse dinheiro com eles! São meus únicos amigos! Únicas pessoas que confio! Honestas até debaixo d’água! Vou procurar os três, logo que lá chegar!
          Tião entrou no banheiro, mas não demorou muito. Foi um banho rápido, o bastante para tirar o mau cheiro que, a cada dia, ficava mais difícil de sair. Tinha a sensação que o fedor já estava impregnando a alma. Pegou um perfume que tinha achado no lixão, com o tempo de validade já estourado, e espalhou pelo corpo todo. Puxou fundo o ar e achou que tinha ficado um pouquinho perfumado. Foi até a cozinha, que, na realidade, ficava dentro do quarto, (eram apenas dois cômodos: quarto, sala e cozinha, num cômodo só, e um minúsculo banheiro), e pegou uma lata de sardinha, abriu-a e comeu com um pedaço de pão dormido. Mas antes tomou uma golada de pinga, para abrir o apetite. Aquela sardinha e o pão seria o seu jantar. Não tinha vontade nenhuma de cozinhar alguma coisa. Quando a mulher estava com ele, era diferente: já sentia o cheirinho da comida do lado de fora do barraco. Era só chegar e jantar. Mas isso já estava morando no passado. Já beirava um ano que a mulher tinha ido embora. Pensou: - Está na hora de me acertar com alguma cabrocha. Mas – que raios! – não consigo me esquecer dela! – Tomou outra dose de cana e terminou de comer a sua sardinha. Barriga abastecida foi para fora do barraco e ficou apreciando o céu. Não entendia nada, nada daqueles pontos luminosos. Não sabia se aquilo servia de alguma coisa, mas achava bonito. Pelo menos alguma coisa era bonita por ali. Olhou para a lua e pensou: - A pobreza deve ser bonita para muita gente, que não seja pobre. Se isso realmente incomodasse muito mesmo, já tinham acabado com ela. – viu quando uma estrela cadente cortou o horizonte. Não sabia também o que era, mas mesmo assim fez um pedido. Pelo menos isso ele sabia. Na sua terra, no sertão nordestino, ouvia as pessoas falarem sobre isso. A mãe, o pai, ele e os irmãos, faziam o seu pedido. No tempo que ficou lá, nunca soube de alguém que tenha tido os seus pedidos atendidos. Mas mesmo assim, pedia alguma coisa. Vai que consegue! Como todo sertanejo, não podia ser diferente, tinha esperança. Às vezes demorava a ver outras estrelas cadentes, mas quando via, automaticamente, já fazia mais um pedido. Um dia podia ser atendido.
          - Quem sabe Deus, vendo a sua fé, não escutasse ele dessa vez? – falou baixinho, pensando que alguém pudesse escutá-lo. 
          Tião nem se lembrava mais do último pedido que tinha feito, depois que veio para o Rio. Lá no sertão ele se lembrava de todos. Era sempre o mesmo. Achava que todo mundo pedia a mesma coisa: chuva, muita chuva.
          - Chuva nunca mais eu peço. Aqui, sem pedir, dá enchente! – disse, coçando a orelha. Depois ficou mais algum tempo perdido em outros pensamentos e no céu estrelado.
          Aquela noite até que foi boa. Conseguiu dormir um sono dos justos. Os pesadelos que sempre tinha, devem ter dormido também. Acordou junto com um galo do vizinho, que dessa vez não o deixou aborrecido. Estava se sentindo muito bem e acabou até imitando o canto do bicho. Riu sozinho, como há muito tempo não fazia. Lembrou-se do que tinha pensado no dia anterior e a decisão estava tomada: ia contar tudo para os amigos. Ia distribuir o dinheiro com eles, contar a verdade sobre os poemas e o quadro e jogar a arma fora. Foi até o fogão para tomar um café requentado, mas resolveu fazer um fresquinho. Esquentou o pão dormido e saboreou o seu café da manhã tranquilamente. Abriu a porta do barraco, deu uma espreguiçada e pegou o seu burrinho sem rabo. Foi o primeiro a chegar ao lixão. Encaminhou-se para o lugar de sempre. Ali se sentia o dono de alguma coisa. E todos respeitavam esse seu pedaço. Mas em contra partida, ele também não invadia o espaço dos outros. Era uma política de boa vizinhança. Isso já vinha sendo respeitado há muito tempo. Envolvido em pensamentos, não percebeu a chegada dos seus amigos. Assustou-se quando Moreno, sem fazer barulho, falou quase na sua orelha: - Oi brodi! O qui tá havendu com tu? Tá chegandu e, já chegadu, nem fala cum teus brodis! Tô ti discunhecendo! – Tião gagueja um pouco, mas fala com o amigo: - Oi Moreno! Levei o maior susto! Mas tá tudo bem. Tá tudo bem aí? Tô pensando aqui em algumas coisas. Depois eu vou lá, pra gente conversar. Tenho uns negócio pra tratar com vocês.
          -Qui negóciu, brodi?
          - Depois eu vou lá. Vou conversar com vocês três. Me esperem lá. Tenho que pensar uns troços aqui sozinho, mas não vou demorar.

          - Tudo bem. Meu brodi, ti esperu lá. Tô ti achandu cheiu dus mistérius! Vamo Ximbica. Vamo Tiziu.
                              Continua semana que vem...

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