Tião leu a carta e lembrou-se da sua
Maria Aparecida. O coração disparou e os olhos ficaram úmidos. Maria
Aparecida... e desapareceu. – Como será que ficou esse amor do alemão com a
brasileira? Será que ele conseguiu ler a carta? – ficou ruminando essas
interrogações. Resolveu lançar o pedaço do caderno para o alto do monte de
lixo. Mas a carta dobrou-a e colocou-a no bolso. Iria lê-la novamente a
qualquer hora. Tinha ficado emocionado e isso era bom. Entretanto, como um
raio, um pensamento intrusão quebrou aquele momento de pura emoção: - Você pode
botar o seu nome nessa carta. Rasga esse pedaço da folha, que está com o nome
dela, e larga o seu. – Tião coçou a cabeça e pensou na possibilidade, mas depois
se lembrou de uma parte, em que ela fala no nome do alemão. Deu um suspiro e
falou baixinho: - Puxa! Se ela tivesse colocado meu amor, aí ia ser mole! Podia
fazer uma onda com os meus amigos. Já pensou: eu com um amor de uma alemã? –
Tião mostrou uma cara de total frustração. Pegou a carta e percebeu a
inutilidade de guardá-la, pois não poderia tirar proveito algum. De repente
brotou um sentimento misto de decepção e ódio. Começou a rasgando a carta em
pedaços bem miúdos. Depois deu um chute numa vasilha de plástico que estava
próxima do seu banco improvisado. Após o acesso de raiva, Tião colocou a mão na
cabeça e balançou-a seguidas vezes, querendo tirar o som que ecoava lá dentro:
- Ladrão! Ladrão! - saiu
dali o mais rápido possível. Foi arrastando o seu burrinho sem rabo, sem
perceber que estava passando por cima de tudo. Não conseguia enxergar o que
estava à sua frente. Passou pelos amigos como se fosse um foguete. Saiu do
lixão e quase foi atropelado por um caminhão que estava entrando. Só conseguiu
parar, quando chegou ao barraco. Estava ofegante. Quase não conseguia respirar.
Meteu a mão no bolso e tirou uma chave. Tentou abrir o cadeado, mas a mão
teimava em continuar tremendo. Espalmou as mãos na porta e encostou, também, a
testa. Dentro da sua cabeça era uma confusão só. Ser chamado de ladrão era a
última coisa que poderia acontecer na sua vida. Ser pobre não era sinônimo de
ser desonesto. Continuou ali, na mesma posição, pensativo. Parecia que estava
petrificado, colado na porta. Respirou fundo e falou baixinho: - Isso que estou
vivendo nesses dias, é apenas um pequeno deslize. Isso não é motivo para me
desesperar. Mas os meus amigos não podem saber que eu não sou poeta e nem
pintor. Meu Deus! E esse dinheiro que achei? Agora a minha vida se complicou
ainda mais. Mas acho que tenho uma solução: dividir a grana com eles. Isso
mesmo. Pensando melhor, dividir... dividir não! Eu posso dar uma merreca para
cada um e, - pronto! - fica tudo bem! Pelo menos tiro um peso nos meus ombros.
Pensando melhor ainda: dinheiro achado, não é dinheiro roubado. Então, dividir
pra quê?
Tião conseguiu abrir a porta e entrar
no barraco. Estava se sentindo mais tranquilo. A sua consciência pesava menos.
Mas foi só olhar a fotografia da mãe na cabeceira da sua cama e o sentimento de
culpa se instalou novamente. Chorou abraçado à fotografia. Sabia que os valores
ensinados pela sua mãe, jamais se desgrudaria dele. O seu passado no sertão,
com a mãe e os irmãos, desfilaram na sua cabeça. Sentiu o cheiro da fome que
passou durante tantos anos com eles. Mesmo com tantas privações, a mãe jamais
permitiu que subtraíssem qualquer coisa de alguém. Roubar, jamais. A
honestidade sempre em primeiro lugar. E que Deus se encarregaria de suprir as
suas necessidades. Assim sempre foi a sua vida naquele pedaço de terra
esquecida pelos homens e Deus. Parecia que alguém tinha implantado um chip
dentro da sua cabeça, com esse mandamento: não roubarás. Enxugou as lágrimas que desciam pelo
rosto, olhou para o quadro pendurado na parede, para as poesias, que estavam em
cima do caixote, que servia de mesinha de cabeceira, e abriu a mochila. Pegou o
embrulho que tinha o dinheiro e a arma e sentou-se na cama tosca. Ficou na
dúvida se deveria abri-lo ou não. Mas uma vontade incontrolável fez com que
abrisse o pacote. A arma brilhou a frente dos seus olhos. O brilho parecia um
convite para pegá-la. Acabou não resistindo e colocou-a na palma da mão. Mais
uma vez àquela voz ecoou dentro da sua cachola: - Aperta o gatilho! Vamos!
Aponte para o coração e atire! – Tião sentiu o seu corpo todo tremer. Ele não
soube se começou nos pés ou no último fio de cabelo. Mas parecia que não ia
parar nunca. Mesmo com a mão querendo sair do braço, apontou a arma na direção
do coração e colocou o dedo no gatilho. Ficou tentado a apertá-lo, mas resistiu
e colocou de volta o revolver no embrulho. Estava com uma cara fechada. O suor
pingava do seu rosto. Olhou para a foto da mãe e o seu rosto começou a se
descontrair. Rapidamente um sorriso brotou. E um pensamento fluiu levemente: -
Vou contar a verdade aos meus amigos! Puxa! Posso dividir esse dinheiro com
eles! São meus únicos amigos! Únicas pessoas que confio! Honestas até debaixo
d’água! Vou procurar os três, logo que lá chegar!
Tião entrou no banheiro, mas não
demorou muito. Foi um banho rápido, o bastante para tirar o mau cheiro que, a
cada dia, ficava mais difícil de sair. Tinha a sensação que o fedor já estava
impregnando a alma. Pegou um perfume que tinha achado no lixão, com o tempo de
validade já estourado, e espalhou pelo corpo todo. Puxou fundo o ar e achou que
tinha ficado um pouquinho perfumado. Foi até a cozinha, que, na realidade,
ficava dentro do quarto, (eram apenas dois cômodos: quarto, sala e cozinha, num
cômodo só, e um minúsculo banheiro), e pegou uma lata de sardinha, abriu-a e
comeu com um pedaço de pão dormido. Mas antes tomou uma golada de pinga, para
abrir o apetite. Aquela sardinha e o pão seria o seu jantar. Não tinha vontade
nenhuma de cozinhar alguma coisa. Quando a mulher estava com ele, era
diferente: já sentia o cheirinho da comida do lado de fora do barraco. Era só
chegar e jantar. Mas isso já estava morando no passado. Já beirava um ano que a
mulher tinha ido embora. Pensou: - Está na hora de me acertar com alguma
cabrocha. Mas – que raios! – não consigo me esquecer dela! – Tomou outra dose
de cana e terminou de comer a sua sardinha. Barriga abastecida foi para fora do
barraco e ficou apreciando o céu. Não entendia nada, nada daqueles pontos
luminosos. Não sabia se aquilo servia de alguma coisa, mas achava bonito. Pelo
menos alguma coisa era bonita por ali. Olhou para a lua e pensou: - A pobreza
deve ser bonita para muita gente, que não seja pobre. Se isso realmente
incomodasse muito mesmo, já tinham acabado com ela. – viu quando uma estrela
cadente cortou o horizonte. Não sabia também o que era, mas mesmo assim fez um
pedido. Pelo menos isso ele sabia. Na sua terra, no sertão nordestino, ouvia as
pessoas falarem sobre isso. A mãe, o pai, ele e os irmãos, faziam o seu pedido.
No tempo que ficou lá, nunca soube de alguém que tenha tido os seus pedidos
atendidos. Mas mesmo assim, pedia alguma coisa. Vai que consegue! Como todo
sertanejo, não podia ser diferente, tinha esperança. Às vezes demorava a ver
outras estrelas cadentes, mas quando via, automaticamente, já fazia mais um
pedido. Um dia podia ser atendido.
- Quem sabe Deus, vendo a sua fé, não
escutasse ele dessa vez? – falou baixinho, pensando que alguém pudesse
escutá-lo.
Tião nem se lembrava mais do último
pedido que tinha feito, depois que veio para o Rio. Lá no sertão ele se
lembrava de todos. Era sempre o mesmo. Achava que todo mundo pedia a mesma
coisa: chuva, muita chuva.
- Chuva nunca mais eu peço. Aqui, sem
pedir, dá enchente! – disse, coçando a orelha. Depois ficou mais algum tempo
perdido em outros pensamentos e no céu estrelado.
Aquela noite até que foi boa.
Conseguiu dormir um sono dos justos. Os pesadelos que sempre tinha, devem ter
dormido também. Acordou junto com um galo do vizinho, que dessa vez não o
deixou aborrecido. Estava se sentindo muito bem e acabou até imitando o canto
do bicho. Riu sozinho, como há muito tempo não fazia. Lembrou-se do que tinha
pensado no dia anterior e a decisão estava tomada: ia contar tudo para os
amigos. Ia distribuir o dinheiro com eles, contar a verdade sobre os poemas e o
quadro e jogar a arma fora. Foi até o fogão para tomar um café requentado, mas
resolveu fazer um fresquinho. Esquentou o pão dormido e saboreou o seu café da
manhã tranquilamente. Abriu a porta do barraco, deu uma espreguiçada e pegou o
seu burrinho sem rabo. Foi o primeiro a chegar ao lixão. Encaminhou-se para o
lugar de sempre. Ali se sentia o dono de alguma coisa. E todos respeitavam esse
seu pedaço. Mas em contra partida, ele também não invadia o espaço dos outros.
Era uma política de boa vizinhança. Isso já vinha sendo respeitado há muito
tempo. Envolvido em pensamentos, não percebeu a chegada dos seus amigos.
Assustou-se quando Moreno, sem fazer barulho, falou quase na sua orelha: - Oi
brodi! O qui tá havendu com tu? Tá chegandu e, já chegadu, nem fala cum teus
brodis! Tô ti discunhecendo! – Tião gagueja um pouco, mas fala com o amigo: -
Oi Moreno! Levei o maior susto! Mas tá tudo bem. Tá tudo bem aí? Tô pensando aqui
em algumas coisas. Depois eu vou lá, pra gente conversar. Tenho uns negócio pra
tratar com vocês.
-Qui negóciu, brodi?
- Depois eu vou lá. Vou conversar com
vocês três. Me esperem lá. Tenho que pensar uns troços aqui sozinho, mas não vou
demorar.
- Tudo bem. Meu brodi, ti esperu lá.
Tô ti achandu cheiu dus mistérius! Vamo Ximbica. Vamo Tiziu.
Continua semana que vem...
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