terça-feira, 30 de agosto de 2016

O Catador de Histórias - Parte Final

continuando...
          Tião ficou acompanhando com os olhos a saída dos amigos. Esperou que eles sumissem do outro lado do lixo, para pegar o seu embrulho, dentro da mochila. Sentou-se no seu banquinho improvisado e abriu-o no chão. Mas antes olhou ao redor para ver se tinha alguém espionando. Aparentemente não tinha ninguém na espreita. Não viu nada suspeito. Nem uma viva alma zanzava por aquele pedaço. Respirou fundo e foi abrindo parte por parte do pacote. Os batimentos cardíacos iam aumentando a cada movimento que fazia ao abri-lo. A arma estava logo de cara. O brilho invadiu os seus olhos. Um arrepio estranho percorreu o seu corpo. Deixou-a de lado. Olhou para a carta, mas não quis lê-la de novo. Pegou o maço de notas de real e cheirou. Sentiu um grande prazer em fazer isso. Fez a mesma coisa com as verdinhas. As notas de 100 dólares brilharam. Os seus olhos brilharam também. Ficou com medo de ter uma recaída e colocou-as em cima da carta. Levantou-se e ficou mirando o embrulho aberto. Estava tão distraído, olhando o seu pacote, que nem percebeu quando, sorrateiramente, Biu Coveiro chegou. Ninguém gostava do cara. Diziam que não era boa gente. Já estava sumido a mais de ano. Deram graças a Deus quando desapareceu. O lixão ficou em paz. Todos sentiam medo dele. Não tinham certeza, mas falavam que o cabra, um sertanejo troncudo, já tinha mandado muita gente, lá no sertão, pra debaixo da terra. Mas isso não deveria assustar ninguém, já que ele tinha sido coveiro. Entretanto os colegas de infortúnio não entendiam por esse lado e criaram uma lenda sobre o cara. De repente o próprio Biu foi o criador. Falou para alguém que já tinha mandado muita gente pra debaixo da terra, aí... Queria que ficassem com medo da sua pessoa. Mas lenda ou não, Biu, com u mesmo, gostava de viver solitário. Ninguém sabia nada da sua vida: se tinha parente aqui ou lá no sertão nordestino, se tinha mulher e filho.  A verdade é que ninguém tinha coragem de puxar tal assunto com ele. A sua vida era uma incógnita. O seu sorriso causava arrepios: os caninos, bem grandes e pontiagudos, eram folheados de ouro. Às más línguas diziam que ele tinha tirado o ouro dos dentes de um defunto, quando era coveiro. Mas era outra história que ninguém tinha certeza. Até Ximbica dizia aos quatro ventos, que o cabra tinha parte com o demo. Era vampiro, de sugar o sangue até de velhinhas desamparadas. Eram muitas estórias envolvendo o misterioso mundo de Biu. Ele foi se aproximando até quase se encostar em Tião. Próximo da sua orelha, falou baixinho: - U cabra pode ficá calminho. Gostei du embrulho e vou levá. Vou levá numa boa.
          Tião se virou e encontrou a cara de Biu, próximo da sua, e falou assustado: - O que é isso Biu? Não somos amigos, mas somos colegas de infortúnio! O que é isso? Eu não sabia que você era ladrão!
          - E não sou. Mas a ocasião faz o ladrão. E ou não é? Mas vamos deixar de papo furado e passa logo esse embrulho pra mim! Eu sei que ele também não pertence a ti! Você achou aqui no lixo. Eu vi quando você encontrou. Só não sabia que tinha grana. Só tinha visto a arma e você lendo alguma coisa. Na hora não me interessei e fui embora. Mas agora não, cabra! Isso tudo me interessa! Isso tudo, eu quero dizer a grana! Ela agora mi pertence!
          - Não cara! Isso é meu! Mas se você quiser, eu divido com você também! Eu já ia dividir com Ximbica, Moreno e Tiziu! Pode entrar na divisão também! Cara, larga essa arma!  Ela está carregada!   Num vai fazer besteira! Para com isso! Não aponta esse troço pra mim! Tô te pedindo! Tu acha que tenho medo? Tenho não! Sou nordestino igual a você! Sou cabra macho! Larga isso aí! O dinheiro é meu! Larga tudo! Eu te falei cabra!
         Tião se abraçou com Biu, tentando pegar a arma e tirar o embrulho da sua mão. Rolaram por cima do lixo. Tião já estava segurando o cano da arma. Biu tentava de qualquer forma tomar conta da situação. Rolaram mais algum tempo. O cansaço já começava a tomar conta dos dois. Tião, mesmo deitado, conseguiu dar uma cabeçada em Biu. O sangue escorreu pelo seu rosto. Mas o cabra não demonstrou qualquer incomodo. Aí Tião se descuidou e levou também uma cabeçada, mas no nariz. Os dois já estavam lavados de sangue. Mas a luta parecia não ter fim. Eram sangue e lixo cobrindo os dois. De repente um estampido ecoou pelo lixão, seguido de um silêncio tumular. Os dois estavam com a cara enterrada no lixo. Ninguém se movia. Estavam tão sujos, que ninguém conseguiria identificar de quem era aqueles corpos, com a cara dentro do lixo.
         O estampido foi ouvido por todos os trabalhadores, catadores de lixo. Os três amigos de Tião ficaram sem ação e olhavam-se apenas. De repente Moreno disparou numa correria só, indo em direção onde ficava o amigo. Alguma coisa dizia que Tião estava em apuros. Os outros automaticamente o seguiram e mais uma dezena de colegas foi arrastado pelos três. Moreno chegou esbaforido. Ficou parado, parecendo uma estátua, olhando o amigo deitado de barrica para baixo, com a cara enterrada no lixo e envolvido por muito sangue. Observou que ele segurava uma arma pelo cano. E próximo dos seus pés, tinha um pacote aberto, onde apareciam duas notas, sendo uma de cem reais e outra nota de cem dólares, e por baixo das notas, um envelope. Moreno se abaixou e pegou o envelope e abriu-o. Não sabia ler e apenas olhou. Se abaixou novamente e desvirou o amigo, mas ele já tinha escapado da miséria. Limpou o seu rosto e viu que não era Tião. Era Biu. Tinha levado um tiro certeiro no coração. Olhou em volta e não viu ninguém, ainda não tinha chegado Ximbica, Tiziu e outros catadores de lixo. Procurou para ver se via o rastro do amigo, mas nada. Não tinha ninguém próximo. – Aqui é a área du meu brodi... Cadê ele? – falou baixinho.
           Ximbica chegou um pouco depois, acompanhado do seu amigo Tiziu e outros catadores. Olhou para o colega que estava morto e comentou: - Será qui Biu deu cabu da própria vida? - Tiziu que estava logo atrás respondeu: - Como? Ninguém atira contra o coração, segurando a arma pelo cano, Ximbica!
           Os três ficaram ali olhando para o cadáver de Biu, em silêncio. Os outros colegas foram saindo um a um. Mesmo não se dando muito com o cabra, demonstravam que estavam tristes com o acontecido. Principalmente Moreno, que deixava uma linha de lágrima descer pelo rosto. Ximbica se aproximou mais do corpo de Biu e observou que do lado tinha um embrulho. Pegou-o, abriu-o e viu que tinha algum dinheiro. Eram algumas notas azuis e verdes. Não devia ter mais de vinte notas de cada cor. Junto estavam algumas folhas de papel pautado, escritas. Desfolhou, mas como não sabia ler nada, entregou para Tiziu que pegou uma, aleatoriamente, e leu. Ficou cismado com o que leu. Coçou a sua barba rala, fechou a carta, mas abriu-a novamente, na mesma folha. Ximbica olhou para ele e perguntou baixinho: - I aí, u qui tá escritu? – Tiziu, antes de falar alguma coisa, olhou em volta para ver se ainda tinha mais alguém, além dele e seus dois amigos. Como eram somente os três, ficou na dúvida se realmente valia a pena ler para eles. Entretanto Ximbica continuou insistindo, até que ele resolveu ler um trecho da carta.
          - Ladrão não tem coração? Acertou. Acha que se ele for preso vai mudar? Errou. Ladrão é ladrão. 
          Moreno e Ximbica ficaram olhando para o amigo, esperando alguma coisa mais. Já que o amigo não falava nada, Moreno se adiantou e perguntou: - E aí? Que qui issu qué dizê?
           - Nada não. Nada não. É só mermo alguma coisa iscrita. – respondeu Tiziu. Depois pegou a carta, amassou-a e empurrou-a para dentro do bolso. Chamou os amigos e foi embora, coçando a cabeça. Mas parou a alguns metros a frente. Moreno interpelou-o: - Quê qui ouvi? – Nada não. Só uma coisinha. – Qui coisinha? – Me ispere aqui, qui eu já voltu. – Vai a donde? – Já voltu. Não saiam daqui.
          Tiziu voltou até o local onde estava o corpo de Biu. Olhou para ele, que causava medo em muita gente e que agora estava ali sem a moldura de perigoso, arriou-se ao lado, tirou a arma de fogo da sua mão, procurando não deixar que os amigos vissem, depois colocou o polegar no gatilho. Limpou o local onde tinha colocado a sua mão, isso tinha visto num filme, e procurou deixar o braço estendido na mesma posição. Fez o sinal da cruz e voltou para encontrar os amigos. Ximbica olhou para ele e falou: - Ué! Num sabia qui você era das religião! Feis até uma cruis no peitu! 
          - Ele não era meu amigo, mais rezei pra eli, Ximbica.
          - Devi sê muitu chatu morrê i não tê ninguém pra rezá pra genti, num é? – completou Ximbica.
         – Também achu! Também achu! I aí Tiziu! I o nosso brodi? Cadê eli? Pronde foi?
         - Num sei Moreno! Num sei! Vamo avisar a polícia du ocorridu?
         - Brodi! Num vai dá zebra não? Achu pirigosu botá  poliça nissu!
         - Alguém tem qui avisá. Mas não agora. Vamo deixá Biu esfriá. Pobre Biu! Pobre Biu! Parecia qui era valenti, mas achu que se matou!
         -Ué! Tiziu tu não dissi qui ninguém si mata sigurando o cano da arma?         
         - Achu que a genti si confundiu Ximbica. O cabra tava sigurando o trabuco pelo gatilho. Mais deixa pra lá, isso não tem importância, o cabra não vai viver mais mermo! Pobre Biu! Pobre Biu!
         - Tu  dissi, tá dito! Vamu nessa! Deixa Biu isfriá!


                                                                Fim                    


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