Tião parecia que estava em estado de
choque. Olhava para o bilhete e não atinava no que fazer. E assim ficou por
muito tempo. Quem o visse naquela posição, ia confundi-lo com uma estátua. Aos
poucos a vida voltou a tomar posse do seu corpo. Coçou a cabeça, dobrou o
bilhete e colocou-o juntamente com o dinheiro e refez o embrulho. Abriu a sua
mochila surrada e jogou-o dentro. Pensou
no dinheiro novamente: - Tenho que pensar com clareza, friamente. Essa grana
pode resolver a minha vida. Não foi roubado. Estou completamente limpo. Não
tirei de ninguém, ele simplesmente caiu no meu colo. Será que alguém armou isso
para me testar? Mas... Cacete! Eu sei que não suei a camisa para conseguir, que
não foi trabalho, mas foi roubado por alguém! Que merda! Calma Tião. Muita
calma. Essa porra foi jogada no lixo por um ladrão. Será que isso faz de você
um ladrão? – Ele ficou cismando essa interrogação. A consciência oscilava entre
o bem e o mal. Tentou afastar os pensamentos que o estavam torturando. De
repente apareceu na sua mente a figura da sua mulher indo embora. Pensou que
poderia trazê-la de volta, com o dinheiro que possuía. Podia comprar um barraco
melhor, um carro, consertar os dentes, botando uma dentadura, visitar os
parentes no nordeste... Um fio de lágrima desceu pelo seu rosto, quando se
lembrou da mãe e dos irmãos, que não via há muitos anos. E a promessa que ficou
por lá? Devem estar até hoje esperando uma vida melhor. Desde que veio para o
Rio, nunca mais tinha colocado os olhos neles. E isso já fazia mais de uma
década. De repente tentou parar de pensar nessas coisas, pois a tristeza já o
estava jogando por terra. Parecia que estava vendo a mãe ali pertinho, com o
rosto banhado de lágrimas. Acabou fazendo igualzinho ao pai, que tinha
prometido voltar rico, para dar uma vida boa para ela e aos seus irmãos, mas
sumiu pela vida e nunca mais voltou. Ficou completamente envergonhado, por ele
e pelo pai. Depois achou que ali estava a chance de dar-lhes todo o conforto de
que precisavam. Entretanto uma dor profunda atravessou-lhe o coração, ao pensar
em como explicar-lhes a origem daquele dinheiro. Ele tinha certeza que a mãe ia
querer saber. Colocou a mão na cabeça, parecendo que queria colocar as ideias
no lugar. Olhou para o carrinho: continuava vazio. Estava igual ao seu coração.
Foi crescendo uma vontade de sair dali voando. Não queria ficar por ali, nem
mais um segundo. Botou a mochila nas costas, apanhou o burro sem rabo e saiu do
lixão. Pegou uma reta e sumiu. Nem olhou e muito menos falou com os amigos. Os
três acharam estranho aquele procedimento de Tião, saindo tão cedo, mas
preferiram não fazer qualquer indagação.
O dia e a noite, foram longos para
Tião. Os fantasmas estavam de prontidão e rondavam cada pedaço do seu
pensamento. Levantou algumas vezes durante a noite. A cada vez, era atraído
pelo embrulho. Parecia que tinha um imã grudado. E o seu olhar se fixava na
arma. O que tinha escrito no bilhete não saia da sua cabeça. Uma voz ecoava
exaltando a sua honestidade. Mas outra voz, mais afiada que peixeira gritava à
sua fraqueza. O bem era superado pelo mal. O bom sucumbia aos pés do mau. Vozes
iradas faziam coro: - Ladrão! Ladrão! A
sua noite foi mastigada pelos dentes dos pesadelos. Mas o dia começava a dar às
caras. Era finalmente manhã. Tião deu graças a Deus. Levantou-se e foi lavar o
rosto. O susto foi imediato, ao aparecer de fronte ao espelho quebrado. A sua
imagem era de uma pessoa com mais idade. Parecia que tinha envelhecido mais
alguns anos, em apenas uma noite. Olhos
fundos e mortos dentro das covas. –Tinha que reagir. – pensou. Jogou um copo de
café dormido e frio para dentro do estômago e saiu do barraco. Sentou-se na
soleira da porta e ficou olhando para o céu. O dia apenas espreguiçava. O sol
ainda não tinha aparecido de todo. Pensou em Deus, coisa que não se lembrava de
ter acontecido antes. Tirou
os olhos do céu e torceu o corpo, sem se levantar, para olhar para dentro do
barraco. Seus olhos caíram em cima da mesa tosca, onde estava o embrulho. Ainda
não tinha encontrado coragem para botar algum dinheiro no seu bolso. Mas alguma
coisa fez com que ele se levantasse de um salto. Entrou rápido, pegou o
embrulho e colocou-o debaixo do colchão. Ficou ali andando de um lado para o
outro. Estava nervoso. A tensão estava fazendo o seu coração disparar.
Sentou-se na cama e enterrou a cabeça entre os joelhos. Ficou ali por algum
tempo. Levantou-se e, antes de sair, pegou o embrulho de novo e abriu-o. A arma
brilhou na frente dos seus olhos. Um arrepio, como nunca tinha sentindo antes,
correu dos pés à cabeça. Em seguida um mal estar tomou conta dele. Parecia que
a “coisa” ruim estava invadindo o seu corpo. Fechou rapidamente o pacote e
arriou o colchão em cima. Em
seguida fez um sinal da cruz, embaralhado, e saiu rapidamente do casebre.
O burro sem rabo arrastava Tião
ladeira abaixo. Pela primeira vez, desde que conseguiu o seu carrinho, ele não
desceu na frente do veículo travando-o. Desta vez veio segurando-o por trás,
aguentando todo peso. O mal estar continuava grudado nele. Tinha a sensação, de
que alguém estava do seu lado, descendo a ladeira. Sentiu vontade de largar o carrinho e
sair correndo dali, até sumir. Mas não concluiu a sua vontade, pois sabia que
poderia machucar alguém pelo caminho. Aguentou firme até chegar embaixo. Parou
só para respirar um pouco. E respirou, aliviado. Depois continuou o seu caminho
até o lixão. Entrou, mas não falou com ninguém. Teve a sensação que não tinha
sido notado. Parou no seu lugar de costume e lembrou-se da Mãe Dada. Se alguém
perguntasse o que o levou a lembrar-se da Mãe de Santo da comunidade, não
saberia dizer. Mas como
lembrou, aproveitou e falou baixinho: - A lembrança da Mãe veio a calhar. Tenho
que dar uma chegada lá no terreiro. Tenho que pedir ajuda. A coisa não anda boa
pro meu lado. Vou pedir proteção. Acho que alguém rogou alguma praga pra mim.
Só foi eu começar a ficar famoso e a coisa desgringolou a minha vida. Vou procurar a Mãe Dada,
o mais rápido possível.
Tião passou o dia todo achando que
tinha alguém do seu lado. Aquilo já estava incomodando-o bastante. Sentiu
vontade de ir embora. - Só
podia ser alma do outro mundo. – pensou. Resolveu sair de onde estava e foi
para outra extremidade. De onde ficou, dava para ver os amigos trabalhando. Não
quis se aproximar deles, preferiu ficar sozinho, como sempre fazia. Mal começou
a mexer no lixo, um caderno velho chamou a sua atenção. Estava rasgado, mas
dava para ver algumas folhas escritas. Manuseou, mas não conseguiu ler o que
estava escrito. Era uma língua diferente. Mas não conseguiu identificar. O que
estava escrito, estava pelo meio. Mas também não fazia a menor diferença, não
entendia nada mesmo. Foi folheando para ver se encontrava alguma coisa escrita
em português, mas foi em vão.
Ia jogar o pedaço de caderno de novo no lixo, mas resolveu
continuar a folheá-lo. Já estava cansado de olhar para aquele amontoado de
letras e não saber o que estava escrito. Tinha vontade de parar, entretanto
alguma coisa o prendia àquelas letras. Depois de tanto folhear, encontrou um
papel dobrado no meio das folhas. Abriu-o cuidadosamente. A sua curiosidade era
muita. As mãos tremiam. A ansiedade estava estampada nas suas feições. De
repente um sorriso brotou nos seus lábios, ao constatar que a carta estava
escrita em português. E
era uma carta amorosa. Começou a lê-la.
- Para o meu amor.
Sei que está ficando quase impossível
nos vermos. Mas tenho fé em Deus que vamos conseguir superar todas as
dificuldades. Nada neste mundo vai nos separar. Mesmo a dificuldade que temos
em nos comunicarmos, não vai ser motivo de nos perdermos um do outro. Eu te
juro que um dia vou aprender a falar a tua língua. Não só falar, como escrever.
Vamos ficar juntos para sempre. Nossos filhos vão falar português, alemão e
italiano, dos meus pais.
Nós nos vimos apenas duas vezes, mas
parece que nos conhecemos há uma eternidade. Sei que vai ser difícil para nos
encontrarmos, mas farei o impossível para que isso aconteça. Para eu ir ao seu
encontro, parece-me mais fácil. Tendo em vista que a perseguição a tua raça é
implacável.
Mas estou preocupada. Sei que vai ser
muito difícil meus pais aceitarem a nossa união. Para não dizer impossível. Eu
acho que não vão aceitar nunca. Sou uma judia. Uma judia com um alemão... eles
não vão permitir. Eles acham que todos os alemães são iguais a Hitler. Eu penso
diferente. Eu sei que não. Eu rezo para que as coisas mudem. Que aqui as coisas
fiquem diferentes. No Brasil tudo é mais brando. Desejo que tenhas paciência e
espere. Acho que a guerra não deva se prolongar por muito tempo. Deve acabar em breve. Não volte para a
Alemanha, por favor. Se isso acontecer, vai ser muito difícil para nos
encontramos novamente.
Estou tentando fugir da vigilância que
está acirrada em cima de mim. Estou sendo vigiada às vinte e quatro horas do
dia. Mas pode ficar tranquilo que vou dar um jeito de burlar esta
vigilância. Custe o que custar vamos nos encontrar.
Até agora não consigo entender o
porquê de vós, ai da colônia, não falarem a nossa língua. Sei que têm algumas
pessoas que falam um pouco, mas são muito poucos mesmo. Vou parar de escrever.
Parece que tem alguém se aproximando da porta. Depois eu continuo. Já escondi o
caderno debaixo do colchão.
Era a minha mãe. Por sorte ela não me
pegou escrevendo. Voltei a escrever só no dia seguinte. Agora estou olhando
para o céu. Batizei uma estrela com o seu nome. É uma das mais brilhantes.
Hans, agora eu o vejo toda a noite. Escolha uma estrela e batize-a com o meu
nome. Sabe que estamos parecendo duas estrelas mesmo, nos vemos, mas não nos
encontramos. Entretanto tenho fé em Deus, que um dia possamos ficar juntos. Nem
Hitler, nem Mussolline, nem ninguém vai atrapalhar o nosso amor.
Pede a alguém da colônia para ler esta
missiva. Peça a algum amigo que saiba ler um pouquinho de português. Deve ter
alguém.
Vou parar por aqui. Não devo
estender-me mais, tendo em vista que ficará muito difícil para Mariínha
escondê-la. Desejo que Deus nos ajude e permita que chegue às vossas mãos o
quanto antes.
Amo-te com todo o meu coração
Ana
Continua semana que vem...
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