quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O Catador de Histórias - Parte 5

Continuando...
          Tião parecia que estava em estado de choque. Olhava para o bilhete e não atinava no que fazer. E assim ficou por muito tempo. Quem o visse naquela posição, ia confundi-lo com uma estátua. Aos poucos a vida voltou a tomar posse do seu corpo. Coçou a cabeça, dobrou o bilhete e colocou-o juntamente com o dinheiro e refez o embrulho. Abriu a sua mochila surrada e jogou-o dentro.  Pensou no dinheiro novamente: - Tenho que pensar com clareza, friamente. Essa grana pode resolver a minha vida. Não foi roubado. Estou completamente limpo. Não tirei de ninguém, ele simplesmente caiu no meu colo. Será que alguém armou isso para me testar? Mas... Cacete! Eu sei que não suei a camisa para conseguir, que não foi trabalho, mas foi roubado por alguém! Que merda! Calma Tião. Muita calma. Essa porra foi jogada no lixo por um ladrão. Será que isso faz de você um ladrão? – Ele ficou cismando essa interrogação. A consciência oscilava entre o bem e o mal. Tentou afastar os pensamentos que o estavam torturando. De repente apareceu na sua mente a figura da sua mulher indo embora. Pensou que poderia trazê-la de volta, com o dinheiro que possuía. Podia comprar um barraco melhor, um carro, consertar os dentes, botando uma dentadura, visitar os parentes no nordeste... Um fio de lágrima desceu pelo seu rosto, quando se lembrou da mãe e dos irmãos, que não via há muitos anos. E a promessa que ficou por lá? Devem estar até hoje esperando uma vida melhor. Desde que veio para o Rio, nunca mais tinha colocado os olhos neles. E isso já fazia mais de uma década. De repente tentou parar de pensar nessas coisas, pois a tristeza já o estava jogando por terra. Parecia que estava vendo a mãe ali pertinho, com o rosto banhado de lágrimas. Acabou fazendo igualzinho ao pai, que tinha prometido voltar rico, para dar uma vida boa para ela e aos seus irmãos, mas sumiu pela vida e nunca mais voltou. Ficou completamente envergonhado, por ele e pelo pai. Depois achou que ali estava a chance de dar-lhes todo o conforto de que precisavam. Entretanto uma dor profunda atravessou-lhe o coração, ao pensar em como explicar-lhes a origem daquele dinheiro. Ele tinha certeza que a mãe ia querer saber. Colocou a mão na cabeça, parecendo que queria colocar as ideias no lugar. Olhou para o carrinho: continuava vazio. Estava igual ao seu coração. Foi crescendo uma vontade de sair dali voando. Não queria ficar por ali, nem mais um segundo. Botou a mochila nas costas, apanhou o burro sem rabo e saiu do lixão. Pegou uma reta e sumiu. Nem olhou e muito menos falou com os amigos. Os três acharam estranho aquele procedimento de Tião, saindo tão cedo, mas preferiram não fazer qualquer indagação.
               O dia e a noite, foram longos para Tião. Os fantasmas estavam de prontidão e rondavam cada pedaço do seu pensamento. Levantou algumas vezes durante a noite. A cada vez, era atraído pelo embrulho. Parecia que tinha um imã grudado. E o seu olhar se fixava na arma. O que tinha escrito no bilhete não saia da sua cabeça. Uma voz ecoava exaltando a sua honestidade. Mas outra voz, mais afiada que peixeira gritava à sua fraqueza. O bem era superado pelo mal. O bom sucumbia aos pés do mau. Vozes iradas faziam coro: - Ladrão! Ladrão!  A sua noite foi mastigada pelos dentes dos pesadelos. Mas o dia começava a dar às caras. Era finalmente manhã. Tião deu graças a Deus. Levantou-se e foi lavar o rosto. O susto foi imediato, ao aparecer de fronte ao espelho quebrado. A sua imagem era de uma pessoa com mais idade. Parecia que tinha envelhecido mais alguns anos, em apenas uma noite.  Olhos fundos e mortos dentro das covas. –Tinha que reagir. – pensou. Jogou um copo de café dormido e frio para dentro do estômago e saiu do barraco. Sentou-se na soleira da porta e ficou olhando para o céu. O dia apenas espreguiçava. O sol ainda não tinha aparecido de todo. Pensou em Deus, coisa que não se lembrava de ter acontecido antes.  Tirou os olhos do céu e torceu o corpo, sem se levantar, para olhar para dentro do barraco. Seus olhos caíram em cima da mesa tosca, onde estava o embrulho. Ainda não tinha encontrado coragem para botar algum dinheiro no seu bolso. Mas alguma coisa fez com que ele se levantasse de um salto. Entrou rápido, pegou o embrulho e colocou-o debaixo do colchão. Ficou ali andando de um lado para o outro. Estava nervoso. A tensão estava fazendo o seu coração disparar. Sentou-se na cama e enterrou a cabeça entre os joelhos. Ficou ali por algum tempo. Levantou-se e, antes de sair, pegou o embrulho de novo e abriu-o. A arma brilhou na frente dos seus olhos. Um arrepio, como nunca tinha sentindo antes, correu dos pés à cabeça. Em seguida um mal estar tomou conta dele. Parecia que a “coisa” ruim estava invadindo o seu corpo. Fechou rapidamente o pacote e arriou o colchão em cima. Em seguida fez um sinal da cruz, embaralhado, e saiu rapidamente do casebre.
                  O burro sem rabo arrastava Tião ladeira abaixo. Pela primeira vez, desde que conseguiu o seu carrinho, ele não desceu na frente do veículo travando-o. Desta vez veio segurando-o por trás, aguentando todo peso. O mal estar continuava grudado nele. Tinha a sensação, de que alguém estava do seu lado, descendo a ladeira.  Sentiu vontade de largar o carrinho e sair correndo dali, até sumir. Mas não concluiu a sua vontade, pois sabia que poderia machucar alguém pelo caminho. Aguentou firme até chegar embaixo. Parou só para respirar um pouco. E respirou, aliviado. Depois continuou o seu caminho até o lixão. Entrou, mas não falou com ninguém. Teve a sensação que não tinha sido notado. Parou no seu lugar de costume e lembrou-se da Mãe Dada. Se alguém perguntasse o que o levou a lembrar-se da Mãe de Santo da comunidade, não saberia dizer.  Mas como lembrou, aproveitou e falou baixinho: - A lembrança da Mãe veio a calhar. Tenho que dar uma chegada lá no terreiro. Tenho que pedir ajuda. A coisa não anda boa pro meu lado. Vou pedir proteção. Acho que alguém rogou alguma praga pra mim. Só foi eu começar a ficar famoso e a coisa desgringolou  a minha vida. Vou procurar a Mãe Dada, o mais rápido possível.
                  Tião passou o dia todo achando que tinha alguém do seu lado. Aquilo já estava incomodando-o bastante. Sentiu vontade de ir embora.  - Só podia ser alma do outro mundo. – pensou. Resolveu sair de onde estava e foi para outra extremidade. De onde ficou, dava para ver os amigos trabalhando. Não quis se aproximar deles, preferiu ficar sozinho, como sempre fazia. Mal começou a mexer no lixo, um caderno velho chamou a sua atenção. Estava rasgado, mas dava para ver algumas folhas escritas. Manuseou, mas não conseguiu ler o que estava escrito. Era uma língua diferente. Mas não conseguiu identificar. O que estava escrito, estava pelo meio. Mas também não fazia a menor diferença, não entendia nada mesmo. Foi folheando para ver se encontrava alguma coisa escrita em português, mas foi em vão. Ia jogar o pedaço de caderno de novo no lixo, mas resolveu continuar a folheá-lo. Já estava cansado de olhar para aquele amontoado de letras e não saber o que estava escrito. Tinha vontade de parar, entretanto alguma coisa o prendia àquelas letras. Depois de tanto folhear, encontrou um papel dobrado no meio das folhas. Abriu-o cuidadosamente. A sua curiosidade era muita. As mãos tremiam. A ansiedade estava estampada nas suas feições. De repente um sorriso brotou nos seus lábios, ao constatar que a carta estava escrita em português. E era uma carta amorosa. Começou a lê-la.
          - Para o meu amor.
            Sei que está ficando quase impossível nos vermos. Mas tenho fé em Deus que vamos conseguir superar todas as dificuldades. Nada neste mundo vai nos separar. Mesmo a dificuldade que temos em nos comunicarmos, não vai ser motivo de nos perdermos um do outro. Eu te juro que um dia vou aprender a falar a tua língua. Não só falar, como escrever. Vamos ficar juntos para sempre. Nossos filhos vão falar português, alemão e italiano, dos meus pais.
            Nós nos vimos apenas duas vezes, mas parece que nos conhecemos há uma eternidade. Sei que vai ser difícil para nos encontrarmos, mas farei o impossível para que isso aconteça. Para eu ir ao seu encontro, parece-me mais fácil. Tendo em vista que a perseguição a tua raça é implacável. 
            Mas estou preocupada. Sei que vai ser muito difícil meus pais aceitarem a nossa união. Para não dizer impossível. Eu acho que não vão aceitar nunca. Sou uma judia. Uma judia com um alemão... eles não vão permitir. Eles acham que todos os alemães são iguais a Hitler. Eu penso diferente. Eu sei que não. Eu rezo para que as coisas mudem. Que aqui as coisas fiquem diferentes. No Brasil tudo é mais brando. Desejo que tenhas paciência e espere. Acho que a guerra não deva se prolongar por muito tempo. Deve acabar em breve. Não volte para a Alemanha, por favor. Se isso acontecer, vai ser muito difícil para nos encontramos novamente.
           Estou tentando fugir da vigilância que está acirrada em cima de mim. Estou sendo vigiada às vinte e quatro horas do dia. Mas pode ficar tranquilo que vou dar um jeito de burlar esta vigilância. Custe o que custar vamos nos encontrar.

            Até agora não consigo entender o porquê de vós, ai da colônia, não falarem a nossa língua. Sei que têm algumas pessoas que falam um pouco, mas são muito poucos mesmo. Vou parar de escrever. Parece que tem alguém se aproximando da porta. Depois eu continuo. Já escondi o caderno debaixo do colchão.
             Era a minha mãe. Por sorte ela não me pegou escrevendo. Voltei a escrever só no dia seguinte. Agora estou olhando para o céu. Batizei uma estrela com o seu nome. É uma das mais brilhantes. Hans, agora eu o vejo toda a noite. Escolha uma estrela e batize-a com o meu nome. Sabe que estamos parecendo duas estrelas mesmo, nos vemos, mas não nos encontramos. Entretanto tenho fé em Deus, que um dia possamos ficar juntos. Nem Hitler, nem Mussolline, nem ninguém vai atrapalhar o nosso amor.
            Pede a alguém da colônia para ler esta missiva. Peça a algum amigo que saiba ler um pouquinho de português. Deve ter alguém.
            Vou parar por aqui. Não devo estender-me mais, tendo em vista que ficará muito difícil para Mariínha escondê-la. Desejo que Deus nos ajude e permita que chegue às vossas mãos o quanto antes.
                                                Amo-te com todo o meu coração

                                                                       Ana
                    Continua semana que vem...

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