João continuou com os olhos
fechados, quase se borrando de medo. Ele não via, mas o ponto luminoso já
estava quase da sua altura. Aos poucos, enquanto a luz diminuía de intensidade,
ia aparecendo os traços de um homem. Uma barba rala e branca sobressaia num
rosto magro. Em alguns pontos parecia uma sombra de sujeira. Estava vestido com
roupas bem esfoladas, sem definição de cor. Se postou ereto, bem em frente
dele. O seu corpo bem magro, mas apresentando altivez, sugeria que tinha ficado
muito tempo sem ver a luz do sol. Olhava com um olhar vivo e penetrante para
João. Já que João continuava de olhos fechados, arriscou entrar em contado com
ele.
-Hei gajo. Abra os olhos e olhe-me.
Estou precisando de ti. Preciso sair deste buraco, o quanto antes. Agora tu
tens um motivo a mais para sair daqui: eu. Continue trabalhando com afinco,
pois vais conseguir salvar-me e a ti.
João abriu os olhos, mas colocou as
mãos na frente do rosto. Não queria acreditar no que estava acontecendo,
entretanto o medo enfraquecia a sua incredulidade.
- Diz que é mentira, que eu não vi
nada e muito menos ouvi alguma coisa! Por favor, me convença disso! Fantasma
não existe! Então eu não vejo nada e nada ouço!
- Deixas de besteira!Vais acabar
borrando as calças! Ô gajo! Escuta-me!
João estava completamente
assustado. Por um triz, realmente não sujou as calças. Naquele momento
suspeitou que estivesse chegando às raias da loucura. Trazia tatuado na sua
formação, que fantasmas não existiam. Tinha certeza que era invenção de
religiosos para amedrontar seus rebanhos. Até a forma de um Deus que pune seus
filhos, eles criaram. Pra ele tudo era criação dos homens para trazer seus
seguidores com rédeas curtas. Mas como explicar tudo aquilo? Estava desconfortável.
Mas já estava conseguindo olhar para a aparição. Respirou fundo e tentou
encontrar coragem para dialogar. Depois de pensar muito chegou à conclusão que
não deveria ser difícil, tendo em vista que já estava a algum tempo conversando
com ele mesmo.O medo meteu o pé na dúvida novamente. Voltou a se questionar:
-travar um diálogo com uma
coisa que não existia, não
era diferente de conversar consigo mesmo? Será que era o
fim da sua lucidez? – Depois
de pensar, voltou a falar:
- Quem é você, cara? Ou o que é
você?
- Estás assustado, ô gajo? Calma!
Olha-me bem! Sou igual a ti!
- De jeito nenhum! Você não pode ser
igual a mim!
- Ô gajo! Só quero sair daqui! E só
tenho a ti para me ajudares! Já perdi a conta dos anos que aqui estou.
- Quem é você? Você é uma alma
penada?
- Que história é esta? Que alma
penada o quê! Pedro Madeira, às suas ordens.
- Pedro Madeira! Só por curiosidade:
há quanto tempo você está aqui?
- Antes de responder a tua pergunta,
gostaria de saber qual o vosso nome.
- João.
- Sr. João. Falas um português muito
estranho. De onde és?
- Sou do Rio de Janeiro.
- Então és da cidade de São
Sebastião! Muito bem. Então queres saber a quanto tempo cá estou? Para falar a
verdade, não sei! Mas isto não interessa muito. O que interessa realmente é
contar com o amigo para sair deste buraco. Buraco este, que ajudei a construir.
Olha só que ironia...
- O senhor ajudou a construir esta
cela e acabou ficando encarcerado nela?
- É isto mesmo, meu caro jovem. Dei o
meu corpo e a minha alma nesta empreitada para prender os nossos inimigos, mas
acabei sendo eu e alguns amigos a inaugurar este calabouço. Meu jovem amigo,
estamos debaixo da terra. Estamos debaixo, na verdade, de um monte de pedras.
Esta prisão foi construída para prender e esquecer os inimigos da coroa de Portugal.
É um lugar para o homem apodrecer esquecido do mundo. Sabe de uma coisa: parece
que estava adivinhando o que me sucederia. Por isso eu colei esta pedra
praticamente apenas com barro. Misturei apenas um pouco da massa usada para
colar as outras. Observaste como é dura? Estava a observá-lo, na faina de
escapar, a gastar os dedos nestas pedras. Vais com calma! Vais com calma!
João ficou olhando àquela figura,
que parecia ter saído de um conto de fadas. Bateu com as mãos na cabeça uma, duas,
três vezes parecendo que queria arrumar o cérebro. Continuava sem acreditar no
que estava vendo. Pensou em tocar na aparição, mas medrou. Jamais poderia
admitir, em sã consciência, que estivesse tendo um diálogo com uma alma de
outro mundo. Realmente era uma coisa bizarra.
- Pedro Madeira. – balbuciou
ele.
Ficou pensando nesse nome, tentando
ver se a memória lhe segredasse alguma coisa. Fez uma varredura no cérebro, mas
nada encontrou. Conhecia algumas pessoas com o nome de Pedro, porém Pedro
Madeira, nenhuma. Virou-se para a parede e espalmou as duas mãos. De costas
para Pedro, ficou pensativo. Não sabia há quanto tempo ali estava. Questionou
se aquele cárcere não o estava levando para uma possível loucura.
João perdeu a noção do tempo que
ficou com as mãos na parede. Despertou quando Pedro chamou-o.
- Ô gajo! Ô gajo! O que fazes com os
olhos grudados nestas pedras? Vamos ao trabalho? Vou dizer-te uma coisa, antes
que me perguntes, eu fui preso devido a uma rebelião. Não tivemos saída. Aonde
já se viu nos alimentarem com lavagens de porcos! Vou dizer-te mais: o que eles
comiam, em comparação a nossa alimentação, era um verdadeiro banquete. Eles se
alimentavam com as sobras dos oficiais. Já nós - acho – éramos alimentados com
as suas sobras. Éramos os verdadeiros suínos.
Sabes de uma coisa: fui jogado aqui e
só lembro-me quando daqui me tiraram. Não consigo me recordar de quando voltei.
Sabes que esta pedra, que tentas tirar, eu já tentei, mas não consegui?Dei-me
com os burros n’água...
Ô gajo. Continuas calado. Sabes
que estou a observar-te desde que aqui chegastes?
João fez uma careta, passou as mãos
pelos cabelos e respondeu com uma pergunta:
- Você me viu chegar?
- Claro! Tu que não me viste! Eu aqui
defronte a ti, e tu não me vias! Parecias completamente cego!
- Eu cego? Claro que não sou cego! Se
bem que com essa escuridão toda, eu quase me sinta desprovido de visão. Mas
garanto que não sou cego.
-Tens certeza que não és cego? Duvido
disso! Não vejo escuridão alguma! Eu vos vejo perfeitamente!
- Sou cego nada! Eu enxergo
perfeitamente! Estou vendo você! E isso é uma
prova, não acha?
Pedro apenas balançou a cabeça
afirmativamente. E João, depois de dar uma pausa, continuou a falar:
- Eu não vejo nada em volta, somente
você. Vi até quando você balançou a cabeça concordando comigo. Estou tentando
tirar essa pedra, somente no tato.
- Então tu me vês.
- É isso aí. Também você parece uma
luz acesa!
- Muito estranho!
- Muito estranho, é você. Está aqui
há tanto tempo e ainda não tentou fugir. Podia ter tentado passar pela
portinhola que colocam a comida. Já que disse que quer sair pelo buraco que
estou fazendo na parede. Acho que pela portinhola é mais fácil.
-Por um acaso o gajo está querendo
troçar com a minha cara? És muito engraçado. Sabe amigo, do outro lado tem um
carcereiro mau. Ponha a cabeça para fora e ficarás sem ela!
-Não sou engraçado e tão pouco
pretendo ser. Nunca pensei que fosse conversar com um fantasma.
João virou o rosto e falou entre
dentes, mas Pedro ouviu.
-O que o amigo falou? Ouças bem: se
existe um fantasma aqui, este fantasma és tu! Eu ouço tudo! Até o vosso
pensamento, eu posso ouvir, ô gajo!
-Se você não é um fantasma, o que é
então? Não responda! Eu já sei! Você é uma invenção minha! Com o meu pensamento
eu criei você! E ainda por cima, uma criatura que fala um português muito mal!
Certo?
-Errado. Errado. Errado. Não fui
criado por ti. E és um gajo debochado e que fala um português péssimo! Certo?”
-Eu não quero saber o que é certo e o
que é errado. Eu só quero acreditar que você não é invenção minha. Agora,o seu
português é pior do que o meu! Pode ficar certo disso! A língua que você fala,
está cheia de aleijões! Eu sei que não domino bem o português, que sou muito
bom em matemática, mas, falando sério, você faz uma bagunça danada com a nossa
língua!
-Continuas debochando de mim, não é
gajo?
-Não estou coisa nenhuma. Vamos parar
por aqui. Já que não tem jeito, vamos conversar direito. Já que estamos no
mesmo barco, vamos tentar sair daqui. Duas cabeças pensam mais do que uma. Me
diz uma coisa: estamos debaixo da terra, certo?
-Correto. Precisamente debaixo de um
forte.
-Isso aqui é um forte?
-É claro que é! Eu não te disse que
ajudei a construí-lo?
-É! Mas você não disse que era um forte! Então
estamos próximos do mar! Certo?
-Certíssimo! Para situá-lo melhor,
devo dizer que estamos numa ilha!
-Meu Deus! Numa ilha?
-Podes ficar calmo! Chamamos de ilha,
mas ela está praticamente colada no continente. Ela está separada apenas por
três passadas. Na realidade é apenas uma vala.
-Puxa! Assim fico mais calmo! Ufa!
-O gajo é muito medroso. O medo só
atrapalha.
-Quem tem... tem medo.
-O que foi que o gajo disse?
-Deixa pra lá. Você me disse que
ajudou a construí-lo. Em que ano foi isso?
-O início mesmo eu não sei. Só sei
quando terminou. Dizem que demorou muitos anos. Eu sei o dia certinho: quatro
de setembro do ano de 1830. Eu...
João interrompeu o que Pedro ia
falar. E demonstrando surpresa, interroga-o.
-1830? Você disse 1830? Você tem
certeza?
-Por quem me tomas? Tu me tiras por
mentiroso? Dúvidas da minha palavra? Sou um homem de moral ilibada! Eu jamais
faltei com a verdade!
-Calma! Eu não duvido de nada que
você me disse! Só estou assustado pelo ano que foi inaugurado isso aqui! Você
sabe em que ano nós estamos?
-Nem desconfio! Mas posso tentar
fazer uma previsão. De repente eu acerto por aproximação. Vejamos. Acho que já
estou encarcerado há pelo menos cinco anos. Então deve ser 1838. Fui jogado
aqui no ano de 1833.
-Não. Não estamos em 1838. Se segure
para não cair. Estamos em 1972.
-O quê? Agora quem está assustado
sou eu! Aonde já se viu estar com mais de cento e cinqüenta anos! Assim tu me
fazes rir! Ô gajo! Estais a brincar comigo?
-Claro que não estou brincando!
Estamos em 1972, com certeza!
-Ô gajo! Brincadeira tem hora! Como
posso ter vivido todos esses anos? Porque morto eu não estou! Com certeza estou
vivo! Tu não me vês?
-Sim! Claro! Bagunçando tudo aquilo
que sempre acreditei, estou te vendo! Mas não sei como! Não saberei responder
como eu consigo vê-lo. Isso me dá uma agonia danada. Eu consigo resposta para
quase tudo, mas para isso que está acontecendo comigo, não tenho! Se você diz
que não morreu, eu estou de frente para um fenômeno que a física ainda não
explica. Ou estou ficando maluco. Acho que a segunda hipótese é
a mais certa.
-Se o gajo está maluco, eu também
estou. Quem não fica maluco num cárcere? Falas bem devagar: realmente estamos
no ano de 1973? Isto é impossível!
-Não, o ano é 1972.
-Então tu ainda confirmas?
-Eu só nego se você também negar que
esteve preso aqui em 1835.
-Mas como negar, se eu não minto
nunca! Eu fui encarcerado aqui em 1835!
-Então você está morto mesmo!
-Que morto o quê! Ô gajo, tu estás a
me querer confundir? É melhor tu continuares a cavar! Tenho que sair daqui o
mais rápido possível, senão, aí sim, é que vou enlouquecer mesmo!
João, mesmo sem querer achar graça da
situação, foi obrigado a sorrir. Tentou falar consigo mesmo que aquilo tudo era
fruto da sua imaginação.
-Meu Deus. Eu sempre trilhei pelos
bons pensamentos, mas porque agora as minhas idéias estão escorregando pela
fantasia?”
João se lamentou e esperou Pedro
comentar alguma coisa, mas o português ficou calado. Ele então resmungou
achando que Pedro não fosse entender.
-É isso ai. Vou fazer de tudo para
sair daqui. Vou sair de qualquer jeito, com ajuda ou não.
-Ô gajo! Vais sair daqui sim, com a
minha ajuda, é claro! Se tirares está pedra ai, verás uma paisagem que beira o
paraíso! Só não é o paraíso palpável, porque estamos
ainda dentro do inferno! Mas
pelos menos vais sentir menos dor... Escutastes bem! Eu disse vais! Tendo em
vista que esse que vos fala, estará do lado de fora gozando de total liberdade.
-Quero saber como você vai passar por
esse buraco, depois de aberto, claro!
-Por um acaso não observaste que estou
magrinho? Não me alimento há muito tempo. Mas o mais importante é que consegui
me manter vivo. Agora, não me perguntes como consegui esta proeza, pois não
saberei responder-lhes. Vamos lá, continues trabalhando! Estou precisando
respirar ar fresco!
João olhou para Pedro, não
respondeu nada, mas pensou:
-Porra! Que cara espaçoso!
Pedro sorriu, mas preferiu nada falar.
João voltou a tentar tirar a pedra. Mas de vez em quando olhava para onde
estava Pedro. E este, com as mãos no queixo, sorria enigmaticamente para o
amigo de cela. Pela primeira vez ele se aproximou de João. Foi tocar no seu
ombro e levou o maior susto.
-Ô gajo! Tu estás morto! Não consigo
tocar-te!
-Hei! Hei! Peraí! Se tem alguém morto
aqui, esse alguém é você! Eu te avisei que você já tinha morrido! Mas você não
acreditou! Eu falei! Não falei? Olha só! Volta para o seu canto, que não quero
ficar com medo de novo! Não vou ficar com medo não! Eu sei que você é fruto da
minha imaginação!
-Que morto o quê! Estás querendo me
confundir? O único morto aqui és tu! Abre logo este buraco para que eu possa
cair fora!
Pedro desabafou e voltou para o seu
canto cabisbaixo. Do outro lado João ficou olhando para o amigo de infortúnio.
Olhava e continuava sem acreditar no que estava acontecendo. Como nunca
acreditou nessas coisas de alma de outro mundo, agora estava passando por uma
situação, se não aterradora, pelo menos bizarra. Ficou olhando um para o outro,
desconfiados. Pedro não podia aceitar que estivesse morto, e, por sua vez, João
apostava que a sua mente estava pregando-lhe uma peça. Depois de algum tempo em
total silêncio, Pedro resolveu falar.
-Ô... Como é mesmo o teu nome?
-João.”
-Muito bem, senhor João. Vou
prestar-lhes uma ajuda. Como estou magrinho, passarei facilmente pelo buraco da
parede. Já o senhor, terá que se arranjar com outra saída.
-Como assim! Outra saída!Que outra
saída? Vou tentar é abrir mais esse buraco! É por aqui que vou escapar!
-Não vai adiantar! Infelizmente tenho
que avisá-lo, que esta ilha é altíssima! Escuta-me: este lado que estás a abrir
o buraco está na parte mais alta. Eu sempre tive facilidade de escalar
montanhas altas e perigosas, logo para mim não vai ser difícil descer este
paredão. A não ser que o amigo tenha esta habilidade. Tens?
-Infelizmente não. E tenho um
complicador a mais: tenho medo de altura.
-Realmente aí a coisa se complica
mesmo. Assim mesmo vou indicar-lhes uma outra rota de fuga. Até conseguires
sair daqui, de repente o amigo já tenha perdido o
medo de alturas. Vou
indicar-lhes uma saída!
-Será que eu escutei bem? Vou falou
uma saída?
-Sim! Claro! Outra saída! Mas antes
que me perguntes, já adiantando que não sei aonde é. Mas...
-Espera ai! Você me diz que tem uma
saída, mas não sabe aonde é!? É isso? E que mas é esse?
-Eu não fui muito claro, ó pá. Sei e não
sei. Mas posso saber. Tudo bem! Só vou revelar-te o local, quando estiver em
liberdade. Prometo que antes de sair eu falo.
-Está bem. O que é que eu tenho a
perder? Você não está me enganando, não é?
-Enganar? Nunca! Sou um homem de
palavra! Podes confiar em mim! Agora me responda uma coisa: o que tu fazias
antes de te enjaulares?
Continua semana que vem...