terça-feira, 28 de abril de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 6

Continuando...


             João continuou com os olhos fechados, quase se borrando de medo. Ele não via, mas o ponto luminoso já estava quase da sua altura. Aos poucos, enquanto a luz diminuía de intensidade, ia aparecendo os traços de um homem. Uma barba rala e branca sobressaia num rosto magro. Em alguns pontos parecia uma sombra de sujeira. Estava vestido com roupas bem esfoladas, sem definição de cor. Se postou ereto, bem em frente dele. O seu corpo bem magro, mas apresentando altivez, sugeria que tinha ficado muito tempo sem ver a luz do sol. Olhava com um olhar vivo e penetrante para João. Já que João continuava de olhos fechados, arriscou entrar em contado com ele.
            -Hei gajo. Abra os olhos e olhe-me. Estou precisando de ti. Preciso sair deste buraco, o quanto antes. Agora tu tens um motivo a mais para sair daqui: eu. Continue trabalhando com afinco, pois vais conseguir salvar-me e a ti.
            João abriu os olhos, mas colocou as mãos na frente do rosto. Não queria acreditar no que estava acontecendo, entretanto o medo enfraquecia a sua incredulidade.
            - Diz que é mentira, que eu não vi nada e muito menos ouvi alguma coisa! Por favor, me convença disso! Fantasma não existe! Então eu não vejo nada e nada ouço!
            - Deixas de besteira!Vais acabar borrando as calças! Ô gajo! Escuta-me!
            João estava completamente assustado. Por um triz, realmente não sujou as calças. Naquele momento suspeitou que estivesse chegando às raias da loucura. Trazia tatuado na sua formação, que fantasmas não existiam. Tinha certeza que era invenção de religiosos para amedrontar seus rebanhos. Até a forma de um Deus que pune seus filhos, eles criaram. Pra ele tudo era criação dos homens para trazer seus seguidores com rédeas curtas. Mas como explicar tudo aquilo? Estava desconfortável. Mas já estava conseguindo olhar para a aparição. Respirou fundo e tentou encontrar coragem para dialogar. Depois de pensar muito chegou à conclusão que não deveria ser difícil, tendo em vista que já estava a algum tempo conversando com ele mesmo.O medo meteu o pé na dúvida novamente. Voltou a se questionar: -travar um diálogo com uma
coisa que não existia, não era diferente de conversar consigo mesmo? Será que era o
fim da sua lucidez? – Depois de pensar, voltou a falar:
           - Quem é você, cara? Ou o que é você?
           - Estás assustado, ô gajo? Calma! Olha-me bem! Sou igual a ti!
           - De jeito nenhum! Você não pode ser igual a mim!
           - Ô gajo! Só quero sair daqui! E só tenho a ti para me ajudares! Já perdi a conta dos anos que aqui estou.
           - Quem é você? Você é uma alma penada?
           - Que história é esta? Que alma penada o quê! Pedro Madeira, às suas ordens.
           - Pedro Madeira! Só por curiosidade: há quanto tempo você está aqui?
           - Antes de responder a tua pergunta, gostaria de saber qual o vosso nome.
          - João.
          - Sr. João. Falas um português muito estranho. De onde és?
          - Sou do Rio de Janeiro.
          - Então és da cidade de São Sebastião! Muito bem. Então queres saber a quanto tempo cá estou? Para falar a verdade, não sei! Mas isto não interessa muito. O que interessa realmente é contar com o amigo para sair deste buraco. Buraco este, que ajudei a construir. Olha só que ironia...
          - O senhor ajudou a construir esta cela e acabou ficando encarcerado nela?
          - É isto mesmo, meu caro jovem. Dei o meu corpo e a minha alma nesta empreitada para prender os nossos inimigos, mas acabei sendo eu e alguns amigos a inaugurar este calabouço. Meu jovem amigo, estamos debaixo da terra. Estamos debaixo, na verdade, de um monte de pedras. Esta prisão foi construída para prender e esquecer os inimigos da coroa de Portugal. É um lugar para o homem apodrecer esquecido do mundo. Sabe de uma coisa: parece que estava adivinhando o que me sucederia. Por isso eu colei esta pedra praticamente apenas com barro. Misturei apenas um pouco da massa usada para colar as outras. Observaste como é dura? Estava a observá-lo, na faina de escapar, a gastar os dedos nestas pedras. Vais com calma! Vais com calma!
             João ficou olhando àquela figura, que parecia ter saído de um conto de fadas. Bateu com as mãos na cabeça uma, duas, três vezes parecendo que queria arrumar o cérebro. Continuava sem acreditar no que estava vendo. Pensou em tocar na aparição, mas medrou. Jamais poderia admitir, em sã consciência, que estivesse tendo um diálogo com uma alma de outro mundo. Realmente era uma coisa bizarra.
          - Pedro Madeira. – balbuciou ele.  
          Ficou pensando nesse nome, tentando ver se a memória lhe segredasse alguma coisa. Fez uma varredura no cérebro, mas nada encontrou. Conhecia algumas pessoas com o nome de Pedro, porém Pedro Madeira, nenhuma. Virou-se para a parede e espalmou as duas mãos. De costas para Pedro, ficou pensativo. Não sabia há quanto tempo ali estava. Questionou se aquele cárcere não o estava levando para uma possível loucura.
               João perdeu a noção do tempo que ficou com as mãos na parede. Despertou quando Pedro chamou-o.
           - Ô gajo! Ô gajo! O que fazes com os olhos grudados nestas pedras? Vamos ao trabalho? Vou dizer-te uma coisa, antes que me perguntes, eu fui preso devido a uma rebelião. Não tivemos saída. Aonde já se viu nos alimentarem com lavagens de porcos! Vou dizer-te mais: o que eles comiam, em comparação a nossa alimentação, era um verdadeiro banquete. Eles se alimentavam com as sobras dos oficiais. Já nós - acho – éramos alimentados com as suas sobras. Éramos os verdadeiros suínos.
          Sabes de uma coisa: fui jogado aqui e só lembro-me quando daqui me tiraram. Não consigo me recordar de quando voltei. Sabes que esta pedra, que tentas tirar, eu já tentei, mas não consegui?Dei-me com os burros n’água...
             Ô gajo. Continuas calado. Sabes que estou a observar-te desde que aqui chegastes?
          João fez uma careta, passou as mãos pelos cabelos e respondeu com uma pergunta:
         - Você me viu chegar?
          - Claro! Tu que não me viste! Eu aqui defronte a ti, e tu não me vias! Parecias completamente cego!
          - Eu cego? Claro que não sou cego! Se bem que com essa escuridão toda, eu quase me sinta desprovido de visão. Mas garanto que não sou cego.
          -Tens certeza que não és cego? Duvido disso! Não vejo escuridão alguma! Eu vos vejo perfeitamente!
          - Sou cego nada! Eu enxergo perfeitamente! Estou vendo você! E isso é uma  prova, não acha?
           Pedro apenas balançou a cabeça afirmativamente. E João, depois de dar uma pausa, continuou a falar:
           - Eu não vejo nada em volta, somente você. Vi até quando você balançou a cabeça concordando comigo. Estou tentando tirar essa pedra, somente no tato.
          - Então tu me vês.
          - É isso aí. Também você parece uma luz acesa!
          - Muito estranho!
          - Muito estranho, é você. Está aqui há tanto tempo e ainda não tentou fugir. Podia ter tentado passar pela portinhola que colocam a comida. Já que disse que quer sair pelo buraco que estou fazendo na parede. Acho que pela portinhola é mais fácil.
          -Por um acaso o gajo está querendo troçar com a minha cara? És muito engraçado. Sabe amigo, do outro lado tem um carcereiro mau. Ponha a cabeça para fora e ficarás sem ela!
          -Não sou engraçado e tão pouco pretendo ser. Nunca pensei que fosse conversar com um fantasma.
           João virou o rosto e falou entre dentes, mas Pedro ouviu.
         -O que o amigo falou? Ouças bem: se existe um fantasma aqui, este fantasma és tu! Eu ouço tudo! Até o vosso pensamento, eu posso ouvir, ô gajo!
          -Se você não é um fantasma, o que é então? Não responda! Eu já sei! Você é uma invenção minha! Com o meu pensamento eu criei você! E ainda por cima, uma criatura que fala um português muito mal! Certo?
          -Errado. Errado. Errado. Não fui criado por ti. E és um gajo debochado e que fala um português péssimo! Certo?”
          -Eu não quero saber o que é certo e o que é errado. Eu só quero acreditar que você não é invenção minha. Agora,o seu português é pior do que o meu! Pode ficar certo disso! A língua que você fala, está cheia de aleijões! Eu sei que não domino bem o português, que sou muito bom em matemática, mas, falando sério, você faz uma bagunça danada com a nossa língua!
          -Continuas debochando de mim, não é gajo?
          -Não estou coisa nenhuma. Vamos parar por aqui. Já que não tem jeito, vamos conversar direito. Já que estamos no mesmo barco, vamos tentar sair daqui. Duas cabeças pensam mais do que uma. Me diz uma coisa: estamos debaixo da terra, certo?
          -Correto. Precisamente debaixo de um forte.
          -Isso aqui é um forte?
          -É claro que é! Eu não te disse que ajudei a construí-lo?
          -É! Mas você não disse que era um forte! Então estamos próximos do mar! Certo?
          -Certíssimo! Para situá-lo melhor, devo dizer que estamos numa ilha!
          -Meu Deus! Numa ilha?
          -Podes ficar calmo! Chamamos de ilha, mas ela está praticamente colada no continente. Ela está separada apenas por três passadas. Na realidade é apenas uma vala.
          -Puxa! Assim fico mais calmo! Ufa!
          -O gajo é muito medroso. O medo só atrapalha.
          -Quem tem... tem medo.
          -O que foi que o gajo disse?
          -Deixa pra lá. Você me disse que ajudou a construí-lo. Em que ano foi isso?
          -O início mesmo eu não sei. Só sei quando terminou. Dizem que demorou muitos anos. Eu sei o dia certinho: quatro de setembro do ano de 1830. Eu...
           João interrompeu o que Pedro ia falar. E demonstrando surpresa, interroga-o.
          -1830? Você disse 1830? Você tem certeza?
          -Por quem me tomas? Tu me tiras por mentiroso? Dúvidas da minha palavra? Sou um homem de moral ilibada! Eu jamais faltei com a verdade!
          -Calma! Eu não duvido de nada que você me disse! Só estou assustado pelo ano que foi inaugurado isso aqui! Você sabe em que ano nós estamos?
          -Nem desconfio! Mas posso tentar fazer uma previsão. De repente eu acerto por aproximação. Vejamos. Acho que já estou encarcerado há pelo menos cinco anos. Então deve ser 1838. Fui jogado aqui no ano de 1833.
           -Não. Não estamos em 1838. Se segure para não cair. Estamos em 1972.
           -O quê? Agora quem está assustado sou eu! Aonde já se viu estar com mais de cento e cinqüenta anos! Assim tu me fazes rir! Ô gajo! Estais a brincar comigo?
          -Claro que não estou brincando! Estamos em 1972, com certeza!
          -Ô gajo! Brincadeira tem hora! Como posso ter vivido todos esses anos? Porque morto eu não estou! Com certeza estou vivo! Tu não me vês?
         -Sim! Claro! Bagunçando tudo aquilo que sempre acreditei, estou te vendo! Mas não sei como! Não saberei responder como eu consigo vê-lo. Isso me dá uma agonia danada. Eu consigo resposta para quase tudo, mas para isso que está acontecendo comigo, não tenho! Se você diz que não morreu, eu estou de frente para um fenômeno que a física ainda não explica. Ou estou ficando maluco. Acho que a segunda hipótese é a mais certa.
          -Se o gajo está maluco, eu também estou. Quem não fica maluco num cárcere? Falas bem devagar: realmente estamos no ano de 1973? Isto é impossível!
         -Não, o ano é 1972.
         -Então tu ainda confirmas?
         -Eu só nego se você também negar que esteve preso aqui em 1835.
         -Mas como negar, se eu não minto nunca! Eu fui encarcerado aqui em 1835!
         -Então você está morto mesmo!
         -Que morto o quê! Ô gajo, tu estás a me querer confundir? É melhor tu continuares a cavar! Tenho que sair daqui o mais rápido possível, senão, aí sim, é que vou enlouquecer mesmo!
          João, mesmo sem querer achar graça da situação, foi obrigado a sorrir. Tentou falar consigo mesmo que aquilo tudo era fruto da sua imaginação.
         -Meu Deus. Eu sempre trilhei pelos bons pensamentos, mas porque agora as minhas idéias estão escorregando pela fantasia?”
           João se lamentou e esperou Pedro comentar alguma coisa, mas o português ficou calado. Ele então resmungou achando que Pedro não fosse entender.
         -É isso ai. Vou fazer de tudo para sair daqui. Vou sair de qualquer jeito, com ajuda ou não.
        -Ô gajo! Vais sair daqui sim, com a minha ajuda, é claro! Se tirares está pedra ai, verás uma paisagem que beira o paraíso! Só não é o paraíso palpável, porque estamos
ainda dentro do inferno! Mas pelos menos vais sentir menos dor... Escutastes bem! Eu disse vais! Tendo em vista que esse que vos fala, estará do lado de fora gozando de total liberdade.
         -Quero saber como você vai passar por esse buraco, depois de aberto, claro!
         -Por um acaso não observaste que estou magrinho? Não me alimento há muito tempo. Mas o mais importante é que consegui me manter vivo. Agora, não me perguntes como consegui esta proeza, pois não saberei responder-lhes. Vamos lá, continues trabalhando! Estou precisando respirar ar fresco!
            João olhou para Pedro, não respondeu nada, mas pensou:
           -Porra! Que cara espaçoso!
        Pedro sorriu, mas preferiu nada falar. João voltou a tentar tirar a pedra. Mas de vez em quando olhava para onde estava Pedro. E este, com as mãos no queixo, sorria enigmaticamente para o amigo de cela. Pela primeira vez ele se aproximou de João. Foi tocar no seu ombro e levou o maior susto.
         -Ô gajo! Tu estás morto! Não consigo tocar-te!
         -Hei! Hei! Peraí! Se tem alguém morto aqui, esse alguém é você! Eu te avisei que você já tinha morrido! Mas você não acreditou! Eu falei! Não falei? Olha só! Volta para o seu canto, que não quero ficar com medo de novo! Não vou ficar com medo não! Eu sei que você é fruto da minha imaginação!
          -Que morto o quê! Estás querendo me confundir? O único morto aqui és tu! Abre logo este buraco para que eu possa cair fora!
           Pedro desabafou e voltou para o seu canto cabisbaixo. Do outro lado João ficou olhando para o amigo de infortúnio. Olhava e continuava sem acreditar no que estava acontecendo. Como nunca acreditou nessas coisas de alma de outro mundo, agora estava passando por uma situação, se não aterradora, pelo menos bizarra. Ficou olhando um para o outro, desconfiados. Pedro não podia aceitar que estivesse morto, e, por sua vez, João apostava que a sua mente estava pregando-lhe uma peça. Depois de algum tempo em total silêncio, Pedro resolveu falar.
           -Ô... Como é mesmo o teu nome?
           -João.”
           -Muito bem, senhor João. Vou prestar-lhes uma ajuda. Como estou magrinho, passarei facilmente pelo buraco da parede. Já o senhor, terá que se arranjar com outra saída.
           -Como assim! Outra saída!Que outra saída? Vou tentar é abrir mais esse buraco! É por aqui que vou escapar!
          -Não vai adiantar! Infelizmente tenho que avisá-lo, que esta ilha é altíssima! Escuta-me: este lado que estás a abrir o buraco está na parte mais alta. Eu sempre tive facilidade de escalar montanhas altas e perigosas, logo para mim não vai ser difícil descer este paredão. A não ser que o amigo tenha esta habilidade. Tens?
          -Infelizmente não. E tenho um complicador a mais: tenho medo de altura.
          -Realmente aí a coisa se complica mesmo. Assim mesmo vou indicar-lhes uma outra rota de fuga. Até conseguires sair daqui, de repente o amigo já tenha perdido o
medo de alturas. Vou indicar-lhes uma saída!
          -Será que eu escutei bem? Vou falou uma saída?
          -Sim! Claro! Outra saída! Mas antes que me perguntes, já adiantando que não sei aonde é. Mas...
          -Espera ai! Você me diz que tem uma saída, mas não sabe aonde é!? É isso? E que mas é esse?
       -Eu não fui muito claro, ó pá. Sei e não sei. Mas posso saber. Tudo bem! Só vou revelar-te o local, quando estiver em liberdade. Prometo que antes de sair eu falo.
          -Está bem. O que é que eu tenho a perder? Você não está me enganando, não é?
          -Enganar? Nunca! Sou um homem de palavra! Podes confiar em mim! Agora me responda uma coisa: o que tu fazias antes de te enjaulares?

                                                 Continua semana que vem...


terça-feira, 14 de abril de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 5

Continuando...

Começou imediatamente a bater em pedra por pedra. O tamanho variava bastante. Tinha de 20 x 30 até 50 x 60, isso nas paredes internas. Já na parede que dava para o mar, os blocos de granito eram bem maiores. Mas tinha alguns menores misturados. João foi batendo levemente com a fivela do cinto. Batia com o ouvido quase colado no bloco de granito, para tentar captar qualquer som diferente, que pudesse sugestionar uma rota de fuga. Um som oco é sempre uma esperança para uma saída. E foi assim, pedra por pedra. A localização delas era determinada somente pelo tato. E a altura máxima era padronizada pela sua altura, que era de um metro e setenta centímetros. João perdia um tempão em cada pedra, batendo em toda volta dela. Como tinha todo o tempo do mundo, seguia aquele ritual sem pressa nenhuma. Como estava sem sono, calculou que devia ser dia. Mas estava enganado, pois do lado de fora a noite tinha escondido o sol. E era uma noite com lua cheia, não a sua noite que não tinha nem estrelas, nem lua. Ali a noite era eterna. E João começou a falar como se tivesse uma pessoa do seu lado.
- Eu acho que ainda é dia. O que é que você acha? Está em dúvida? Tudo bem. Bota o ouvido nessa pedra. O som não está diferente? Está com dúvida também? Eu acho que essa tem um som diferente. Coloca o ouvido de novo. Parece que você não está muito concentrado. Agora vou bater nessa do lado. Observa como o som é diferente. Percebeu? Não disse! Ah! Acho que a saída está aqui! Vou começar a descalçá-la. Vou raspar pelos lados bem devagar para não gastar muito a fivela. A gente dá para perceber que essa pedra tem um tamanho bem diferente das outras.  E é a única, até agora, que está úmida. Está na verdade, bem molhada. Vou raspar por baixo. Olha só! Começou a escorrer mais água! Já estou com a mão toda molhada! Acho que vou provar. Não fica preocupado não. Você acha que não devo? Morrer por morrer... é a mesma coisa. Daqui a pouco vou estar morto para todo mundo mesmo! Eu não sei há quanto tempo estamos aqui. E você, tem noção? Se a gente estiver há mais de sete dias sumido, já devem ter feito até missa de sétimo dia. Mas não podem... Eu nem quero pensar nisso. Eles não sabem se nós morremos ou botamos as pernas no mundo. Não vão nos achar nem em delegacia, nem em hospital e nem em lugar nenhum. Parece que estamos no fundo da terra. Nós somos culpados do quê? Eles me chamaram de comunista! Veja só! Logo eu que nunca me interessei por política! Que ironia do destino! Sacanagem! Nunca precisei usar livros, de repente sou preso por estar com um livro debaixo do braço! O pior disso tudo, é que nem sei o conteúdo dele! Só peguei o raio do livro para devolver ao dono, só isso! Eu não vou dizer que nunca usei livros, isso seria uma mentira. Como se tornou uma lenda eu não ter usado livro algum, preferi não desmentir. Eu fui apresentado a alguns gênios da humanidade pelos livros. Não te falei que conheci Newton, Lavoisier, Platão, Einstein e mais uma porção de benfeitores? Não te falei? Eu tinha que ler para me inteirar do conhecimento desses amigos. Depois, não precisei ler mais nada. Eu hoje tenho minhas teorias, meus estudos, minha filosofia, como eles tinham as suas fórmulas e filosofia. Tenho minhas fórmulas e teorias, mas falta ainda uma fórmula para acabar com a maldade. Você sabe o que minha mãe sempre falava pra mim: meu filho, cuidado com esses que se dizem brasileiros de corpo e alma!Os donos da revolução, não são!Eles perseguem as pessoas, só porque elas pensam diferente deles! Estamos aqui para pensar diferente, para sermos diferentes mesmo. Não querem ser contrariados. Nós temos que aceitar como eles pensam? Não. Mas temos que respeitar. Entretanto eles não respeitam como pensamos, logo alguns não aceitam o cabresto que querem impor e partem pra guerra.  Com o tempo a gente vê e analisa: eles estão agindo da mesma forma dos que estão no poder, batendo, torturando e matando. Na verdade só estão querendo tirar o rei e coroar o seu. Quem quer mudança, não mata, porque valoriza a vida. Gandhi fez uma revolução sem derramar sangue dos seus. Entretanto o seu sangue manchou o chão da Índia.  Ele não queria o poder, ele só queria poder mudar. Mas tinha gente do seu lado que só queria sentar no trono. Não interessava pra esses, o bem estar do povo da Índia. Queriam, matando-o, apagá-lo, entretanto o tiro saiu pela culatra: só conseguiram apagar o sangue do chão, mas não conseguiram apagar os seus ensinamentos, que repousam até hoje no coração da sua gente. Foi um preço alto por pensar diferente e querer o bem. Tem muita gente ruim por aí afora. Mas você não acredita, não é? Acho que Gandhi também não acreditava. Eu sempre soube que você sempre quis o melhor pra todo mundo. O seu mundo sempre foi bom, mas esse aqui de fora é duro e, às vezes, cruel. Quem sabe um dia isso mude! Espero que não seja depois de muita dor!”
            João ficou parado pensando nessas coisas que a sua mãe falava. Depois bateu com as duas mãos na cabeça e resolveu provar o líquido que molhava a pedra. Provou,sorriu e falou alto.
- É água salgada, meu Deus! É água salgada! Será que estamos do lado do mar? Mas podemos estar debaixo dele. Aí eu tenho que parar por aqui. Pois se continuar... Mas não posso recuar. Tenho que me preparar para o pior e ir em frente. Eu não posso morrer sem tentar.
  Foi raspando a fivela do cinto entre os blocos de pedra. Não demorou muito e começou a escorrer pela parede, uma água misturada com terra. E continuou a raspar em toda a volta da pedra. Depois de algum tempo, ao passar o dedo em torno dela, sentiu que o seu dedo entrava entre as pedras. Pegou a parte mais grossa da fivela e fez uma alavanca. O seu coração disparou ao sentir que a pedra tinha se mexido. Forçou mais um pouco e ela quase saiu. Hesitou por um instante em tirá-la. Nessa altura o seu coração já batia dentro da boca. Respirou fundo e puxou-a cuidadosamente. A pedra caprichosamente escorregou para as suas mãos. Nesse momento um grito escapuliu da sua garganta.
- Porra! Porra! Não acredito! Você viu só! Puta que os pariu! Porra, você tem que entender essa minha ira! Você sabe que eu nunca fui de xingar!Mas dessa vez, não deu pra controlar! Depois de depositar toda a minha esperança nisso, olha só essa casca de granito na minha mão! Puta que os pariu, de novo.
            Depois do acesso de raiva, ficou algum tempo em silêncio olhando para a pedra, que quase não dava para ver a cor. Era apenas uma mancha escura pousada na sua mão. Deu um murro na parede e em seguida sussurrou entre dentes:
- Calma João. Calma. Você sabe que não pode desistir. Vamos recomeçar.”
Se abaixou e colocou a pedra no chão. Depois se levantou calmamente e tateando colocou a mão dentro da pequena cavidade da parede. Resmungou alguma coisa e em seguida perguntou surpreso para ele mesmo:
- Cara, o quê que é isso? Parece um pedaço de papel! Vamos devagar porque ele está um pouco úmido. Cara será que tem alguma coisa escrita? Isso pode ser uma brincadeira. Só pode ser! Mas de repente, quem sabe, pode ser um mapa de algum tesouro. Eu já assisti um filme... Pé no chão, João! Isso aqui não é filme!
 Pegou o papel, dobrou e colocou no bolso. Resolveu caminhar naquele seu pequeno mundo. Sentiu vontade de urinar e foi lá para o cantinho reservado. Depois de terminar pensou alto:
- De repente eu posso alargar esse buraco e tentar sair por aqui.
Se abaixou e bateu com o cinto em volta. O mau cheiro causou-lhe náusea. Desistiu da empreitada e voltou para o lugar onde tinha começado a cavar. E pensou alto novamente:
- Nossa mãe! Senti vontade de vomitar! Que fedor horrível! Mesmo se eu quisesse por ali ia ser impossível. Eles fizeram o buraco no granito. Vou continuar por aqui mesmo. O que é que você acha? O que adianta eu te perguntar, se no final eu mesmo é que tenho que decidir! Vou continuar a cavar aqui mesmo e pronto! Está decidido!
            Lá foi ele com o seu cinto, com a fivela já bem gasta, raspar o fundo do buraco. Mas antes enfiou a mão no bolso e tirou o papel. Ficou com ele na palma da mão direita e cheirou-o. Fez uma careta ao sentir o cheiro de mofo. Pegou-o e o colocou em
cima do pedaço de pedra que estava no chão. Depois recomeçou o seu trabalho com afinco. A esperança começava a aparecer. O material entre as pedras não apresentava praticamente nenhuma resistência. Saía uma terra bem molhada. Era quase uma lama. E um fio de água escorria pela parede. Era somente naquele ponto que isso ocorria. Ele continuou eufórico. Não demorou muito e a pedra ficou solta. Começou a empurrar a pedra, mas ela não se movia. Foi ficando nervoso e com isso, o seu raciocínio encurtou. Começou a esmurrá-la. Em pouco tempo os dedos já estavam sangrando. Só parou de socar a parede quando a dor ficou insuportável. Sentou-se no chão e sentiu vontade de chorar. Estava desolado. O tempo que ficou ali sentado, até voltar ao estado normal, pareceu uma eternidade. Quando se sentiu equilibrado, é que voltou a pensar com lucidez.
- O que é que deu em mim, pensar que a pedra tinha que sair facilmente? Acho que estou perdendo a condição de pensador racional.Tenho que focar com tranquilidade o meu objetivo maior, que é sair desse pesadelo. Vamos ver... Com certeza essas pedras são encaixadas... É isso aí! Essas pedras só saem por dentro. Vou raspar as junções de outras pedras. Depois volto para retirar essa que já está quase no ponto de sair.
            Pegou uma do lado esquerdo e começou a raspar. Para sua surpresa a fivela foi gastando rapidamente e material nenhum saía. Parou desapontado e triste, e falou para si mesmo:
- Você emburreceu? Desde quando uma simples fivela ia tirar uma pedra dessas? Espera aí cara! Você não observou que a outra está sendo fácil de tirar? Vamos focar o nosso objetivo nesta. Pensa bem, você viu a burrice que eu estava cometendo? O pior é que você nem me alertou! Sorte que a pedra não caiu do lado de fora! Eles iam me pegar facilmente! Não quero nem pensar o que fariam comigo. Já pensou nisso? Vamos puxar com cuidado essa pedra. Muita calma João! Muita calma!
            Ele procurou tirar do fundo de sua alma, aquela tranqüilidade que sempre o acompanhou. Pacientemente, com a parte mais fina da fivela, foi retirando o material que estava atrapalhando a retirada da pedra. O pequeno bloco de granito teimava em não sair. A massa não era tão forte assim e ele sabia disso. Era uma questão de tempo. E tempo era o que ele tinha de sobra. E enquanto raspava, engolia a ansiedade. Estava conseguindo manter-se no prumo. Isso é que era, naquela situação, o mais importante. Ele raspava, pensava e começou a falar com o seu imaginário:
- Eu estou pensando numa coisa. Com certeza alguma pessoa que esteve aqui, conseguiu tirar esse bloco. Isso é fato. Agora, uma coisa que não entendo, é como ela conseguiu colocar essa pedra de volta. Além de escrever um bilhete. Sei lá se é bilhete, ou mapa. Como ela conseguiu papel e caneta ou lápis? E a massa para recolocar a pedra? O material é diferente. Isso dá para perceber claramente. Por que pensar nisso agora? Vou continuar meu trabalho. Ela já está praticamente solta. É só uma questão de tempo e paciência. Vou raspar mais desse lado... Está ficando bom. Não sei por que estou pensando agora nos professores. Eu nunca me dei conta que eles podiam se sentir humilhados. Parece que a minha presença já era motivo para que ficassem constrangidos. Lembra quando um professor de física ficou envergonhado, quando eu corrigi uma fórmula que estava errada? Depois desse dia ele sempre me perguntava se estava certo. Coitado. Ele entrava na sala tremendo. Se lembra disso? Lembra do Érico? Era o meu único amigo. Puxa vida, já estou falando no passado. O cara continua meu amigo. Que merda! Xinguei de novo!Vou acabar saindo daqui falando todos os palavrões do mundo. Érico me disse que eu devo ser a reencarnação de algum gênio da humanidade. Aonde já se viu! Gênio de quê? O cara é espírita... Não consigo entender esse negócio não! Só acredito na ciência. Minha mãe sempre ficou nos meus ouvidos falando na existência de Deus. Não tenho religião, mas não descarto a existência dele. Mas que tudo isso é esquisito, é! Não existe uma lógica... Sei lá! Ele me disse também, que eu tenho um anjo da guarda. Nunca vi, nem senti a presença de alguma coisa do meu lado. Entretanto... e a intuição?
           Parou de raspar e ficou pensativo. Parecia que estava ruminando alguma coisa. Colocava a mão na cabeça, coçava o coro cabeludo, depois colocava as mãos na cintura. Perdeu a conta das vezes que fez isso. Continuava pensativo. Se virou e colocou às costas na parede. Se sentiu desconfortável e colocou a sola do pé direito, também na parede. Ficou imóvel bastante tempo. Só voltou a se mexer, quando alguma coisa chamou a sua atenção. Um pequeno ponto de luz se movimentou no lado oposto. Esfregou os olhos mais de uma vez, achando que aquilo poderia ser fruto da sua imaginação. Desviou o olhar, mas a curiosidade era maior, voltou a observar a movimentação da luz. A princípio não ficou com medo, achando que aquilo tudo fosse realmente criação da sua mente. Mas quando o ponto começou a aumentar, foi ficando tenso. Resolveu falar com os seus botões:
          - Você está vendo o que eu estou vendo? Diz que é invenção minha! Será que estou vendo coisas que não existem? Olha só! Olha só! O ponto está aumentando! E agora? Vou fechar os olhos! Diz que isso é fruto da minha imaginação, diz! Pra que eu fui me lembrar de Érico? Viu só! Já apareceu uma assombração! Mas assombração não existe, droga!

                                                      Continua semana que vem...

terça-feira, 7 de abril de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 4

Continuando...

            O tempo foi passando, mas a ansiedade começou a tomar vulto. Ali dentro daquele cubículo as horas se arrastavam. Não queria ficar nervoso, mas não tinha jeito. Pensou que poderia ficar louco.- Como não enlouquecer aqui? Se isso tivesse uma fórmula seria de fácil resolução. Não posso ficar maluco. Não existe um só problema nessa vida que eu não consiga resolver, droga! Tudo para mim sempre teve solução! Mas e agora? Calma João. Como eu vou sair daqui? Todo problema tem uma fórmula. É, mas esse problema tem alguma fórmula que desconheço. Mas... Vou bater nessa porta pra ver se alguém me escuta. Vou gritar.
                  João bateu com tanta força que machucou um dedo. Gritou até ficar rouco. Mas nada de aparecer uma viva alma. Doía dedo, doía garganta e doía a alma. Teve vontade de chorar, mas engoliu o choro. Virou-se para a parede e falou alguma coisa abafada. Parece que nem ele entendeu o que resmungou. Bateu levemente a cabeça na parede. Resmungou novamente alguma coisa, mas agora,compreensível.
- Não deram a mínima pra mim. Que raio de lugar deve ser esse.
 Depois colocou as duas mãos na cabeça e gritou:
- Meu Deus! Meu Deus! Me socorra!
 Em seguida ficou em silêncio. Escorregou vagarosamente pela parede e se sentou no chão frio e úmido. Ali ficou algum tempo sem procurar pensar. Era muito difícil ficar sem pensar, mas estava tentando. Parece que adormeceu. Mas isso acabou não durando muito tempo. Talvez meia hora. E voltou a pensar novamente:
-Não acredito que tenha gritado o nome de Deus. Sempre fui ateu. Acreditei sempre e unicamente na ciência. Deve ter sido o inconsciente coletivo atuando. Eu acho que foi um desabafo. É fruto do medo. Na hora do perigo temos que ter alguém para segurar a mão. Me desculpe por estar pedindo socorro. Lá estou eu admitindo que existe um Deus. Mas... Eu tenho que pegar na mão de alguém! Meu Deus, se você existe mesmo, me tire daqui. Uma coisa écerta: se me apresentar alguma saída, pode ter certeza que você vai ter em mim um fiel escudeiro. Pode escrever aí no céu: estudo até teologia! Acredito até em horóscopo! Vou ser monge! Vou lá pro topo do mundo! Fico sentado no ponto mais alto do Himalaia! Faço qualquer negócio!
           Enquanto ele monologava, do lado de fora o silêncio se abraçava com a penumbra. O corredor era tão pouco visitado que o piso e as paredes eram moradia de uma infinidade de musgos. A umidade era tanta, que fedia a mofo.
           Antes de chegar à cela de João, que era a última, tinha mais cinco de cada lado. Eram todas hermeticamente fechadas. Nenhum som era ouvido, nem de fora e nem de dentro. Quem eram as pobres almas ali confinadas? Ninguém sabia se tinha vizinho, ainda mais quem era. Todos chegavam ali com os olhos vendados.
           O lugar era uma construção bem antiga. Uma fortaleza construída pelos portugueses no final do século XVIII. O cubículo em que jogaram João foi construído alguns anos depois. Ele ficava debaixo da construção original. Era uma caverna que fora descoberta ao retirarem uma grande pedra que ficava no meio do pátio, e posteriormente transformada em onze minúsculas celas. Era o lugar onde enterravam vivos os indesejáveis. E com as ditaduras do século XX, continuou sendo o lugar preferido para encarcerarem pessoas extremamente perigosas para o regime. Esse lugar, pouquíssimas pessoas sabiam da sua existência. Os soldados que eram designados para atender aquele buraco, tinham que manter total segredo. Quem por ventura abrisse a boca, pagava com a própria vida. E João foi jogado logo ali. Pobre João! Que perigo ele poderia trazer para os ditadores? De repente a educação, a cultura... Ele era um cara bom. De repente a sua bondade também incomodava. E era extremamente inteligente.Era cientista. Simplesmente um gênio. Uma pessoa incomum. Parecia que não era deste planeta. Mas com toda a sua genialidade, não estava conseguindo pensar numa forma de sair dali. O mal estava se mostrando mais genial do que ele.  Lembrou que um amigo falava sempre da força do pensamento. Mas ele nunca se interessou por isso. Se de repente tivesse se enveredado por esse caminho, a história podia ser outra. Nesse momento podia ter serventia. Quem sabe abrir a porta com essa força... – Isso é fantasia - pensou.
                O estômago de João começou a roncar. Ele nunca foi de comer muito. Às vezes até esquecia de se alimentar, mas dessa vez o corpo estava reclamando. Tentou se lembrar da última refeição. Não conseguiu. Só Sabia que estava com muita fome, que estava há muito tempo sem comer.
- Será que me esqueceram nesse buraco fedorento? Agora percebi como é bom comer. Como é bom se alimentar. Mas eu nem sei qual é o meu prato preferido. Engraçado é que nunca me preocupei sequer em olhar para o meu prato, lá em casa.
Se me perguntarem hoje como ele é, com certeza vou responder que não sei. Nunca observei. Branco? Isso vou responder com toda certeza: não. A  minha mãe não gosta de pratos, xícaras brancos. Ela gosta da cor de verde. Mas eu não tenho certeza se os pratos eram realmente verdes. Mas... parece que  o meu estômago vai dar um nó. Estou com muita sede também. Acho que estou há séculos sem beber água. Será que vão me deixar aqui até eu morrer de sede e fome?
 Ele nem ousou responder a sua pergunta muda. Onde estava, continuou sentado. Também não adiantava muito trocar de lugar, isso não iria mudar em nada a sua situação. Ali, pelo menos, estava do lado da porta. Passou a mão pela porta e sentiu que havia uma portinhola. –Quando abrissem, pelo menos daria para visualizar o ambiente e guardá-lo na memória. A sua mente fotográfica iria ajudá-lo naquele momento – pensou ele.
           A perna começou a adormecer. Se sentiu incomodado, se levantou e fez alguns exercícios. Depois deu alguns pulos e correu sem sair do lugar. Percebeu que a ansiedade estava diminuindo.A fome e a sede continuavam, mas sem causar desespero. Sentou-se novamente e esticou bem as pernas. A friagem e a umidade subiram rapidamente pelas pernas fazendo com que ele se arrepiasse todo. Encolheu-as e sentiu nojo daquele contato com o chão imundo. O tempo passou e ele adormeceu. O tempo que ficou dormindo, não deu para avaliar. Acordou sobressaltado. Tinha sonhado. Sonhado não. Tinha tido um pesadelo. Alguém amarrava pedras nos seus pés e jogava-o no mar. Despertou assustado, quando encostou o seu corpo na água. O coração pareciasair pela boca.
- Porra! Que susto! Ainda bem que continuo vivo. Foi só um pesadelo. Parecia real. Eu até xinguei. Eu que nunca fui disso. Porra! Porra! Estou virando uma pessoa normal? Até que soou bem. Foi bom que deu pra espantar o medo.
              Depois daquela experiência assustadora, deu um sorriso e se esticou de novo. Dessa vez não fez cara de nojo e acomodou melhor as costas na parede. Fechou os olhos e deixou escapar uma risada.
- Caramba! Só rindo mesmo! Ficar de olhos abertos ou fechados dá no mesmo! Puxa vida! Será que já estou ficando maluco?
             Ficou em silêncio, mas abriu os olhos. Estava com medo de dormir e sonhar novamente. E o tempo foi rolando. Não tinha certeza se já tinha passado de quarenta e oito horas da última vez que tinha comido alguma coisa. E bebido também. Estava com a garganta seca e as tripas dando um nó. Enquanto tentava se lembrar da última refeição, alguém mexeu na fechadura da portinhola. Procurou não olhar. Preferiu esperar ser aberta para que não perdesse um só instante de luminosidade. Quando a claridade, mesmo sendo pouca, entrou na cela, procurou memorizar os mínimos detalhes. Até um pequeno buraco, no lado oposto da porta, onde deduziu que seria para fazer às suas necessidades fisiológicas, ele viu. Como já estava habituado com a escuridão,achou que foi até fácil. Já estava tudo gravado na memória. E deu até tempo para tentar se comunicar com o carcereiro.
- Ei! Onde estou? O que é que vão fazer comigo? Disseram que sou comunista, mas isso não é verdade! Eu não sei nada de política! Por favor me escute! Não fecha a portinhola não! A minha mãe deve estar desesperada com o meu sumiço! Não fecha! Por favor, não fecha!
           A pessoa que estava do lado de fora, nada respondeu. Apenas colocou uma vasilha de água e uma outra com um caldo ralo. Fechou a portinhola e se retirou sem responder aos apelos de João. A escuridão voltou a reinar. João bebeu um pouco de água e depois bebeu um pouco do caldo, que ele não conseguiu identificar do que era. Parecia mais água com sal. Mas como a fome era muita, secou o vasilhame com três goladas.  Para quem não se alimentava há muito tempo, até que foi reconfortante. Deixou as duas vasilhas bem junto da porta. Depois se levantou e deu uma esticada na coluna. Enquanto se alongava, lembrou do seu gato Newton. Todas as manhãs ele observava como ele se alongava e acabava se espreguiçando também. Em seguida deu uns pulos e começou a falar consigo mesmo.
- Olha só que coisa horrível. Tenho que fazer daquele buraco fedorento o meu banheiro particular. O ambiente está fétido. Não sei quanto tempo vou aguentar essa podridão. Mas... não tem outro jeito. Tenho mesmo é que suportar. Mas eu vou sair daqui. Como? Ainda não sei. Mas vou arranjar um jeito. Vou arranjar uma saída. Eu pensei numa saída, mas essa eu tenho que esquecer: a morte... Deixa ela pra lá. Vai ser minha última opção. Espero não precisar dela. Vou estar do lado de fora curtindo a vida. Engraçado, hoje estou pensando na vida. Num jeito de viver... Um modo bem “descolado”. Eu ouço algumas pessoas da faculdade falando assim. Eu achava esquisito, mas agora até que soou legal. Pensamento. Eu sempre pensei muito. Dizem que eu só vivo viajando. O meu negócio é pensar. Estou sempre tentando encontrar respostas. Nunca pensei na força do pensamento. De repente se tivesse me dedicado a encontrar resposta pra essa força, hoje poderia ser útil. Podia estar me comunicando com alguém lá fora. Ainda está em tempo. Vou começar a exercitar. Um colega me falou algumas vezes sobre isso. Di Carlo é ligado no assunto. É isso! Vou tentar me comunicar com ele! Estranho. Eu penso 24 horas, mas nunca me perguntei o que é o pensamento. Que força  é essa? Vou me concentrar no meu amigo. Quem sabe eu consiga alguma coisa.
                Antes de tentar, foi tateando até o banheiro. Urinou bastante. O fedor que subiu, quase o sufocou. Um cheiro forte te amônia entrou pela sua narina, causando ânsia de vômito. Depois sentiu vontade de defecar, mas acabou perdendo a vontade.
  Tinha certeza que mais cedo ou mais tarde ia ter que encarar aquele desafio. Ficar na posição que vem desde o início da humanidade ia ser inevitável. Pensou numa moitinha de capim. Com certeza seria muito mais agradável do que aquele buraco fedorento. Conviver com aquele fedor de merda, ia ser terrível. Quantas pessoas já ficaram ali de cócoras mirando aquele buraco? Passou pela sua cabeça até em tentar abrir mais aquele buraco, mas desistiu.
    João ficou zanzando na escuridão de um lado para o outro. Já tinha decorado quantos passos tinha de uma parede a outra. Também com apenas três passos... Começou a bater na parede para tentar encontrar alguma pedra que pudesse estar oca. Enquanto batia, pensou:
- Não posso me esquecer da telepatia. Nunca pensei nisso, mas vou tentar. Não tenho nada a perder. Tenho que arranjar alguma ferramenta para tentar abrir um buraco em qualquer lugar e sair daqui.
             João foi até a porta e colocou amão na portinhola. Depois bateu. Era tão firme quanto à própria porta. Parecia de pedra. Ficou em pé, mas se sentiu meio desanimado. Coçou a cabeça e se movimentou um pouco. Colocou as mãos nos bolsos detrás da calça e de repente, deixando escapar um sorriso, falou satisfeito:
- Espera aí! Achei o que precisava para sair daqui! Olha só! Eles esqueceram de tirar o cinto da minha calça! A fivela vai ser a minha ferramenta! Pode escrever aí: qualquer buraquinho eu fujo! Vou começar logo a procurar por essas pedras na parede!


                                         Continua semana que vem...