Começou imediatamente a bater
em pedra por pedra. O tamanho variava bastante. Tinha de 20 x 30 até 50 x 60, isso
nas paredes internas. Já na parede que dava para o mar, os blocos de granito
eram bem maiores. Mas tinha alguns menores misturados. João foi batendo
levemente com a fivela do cinto. Batia com o ouvido quase colado no bloco de
granito, para tentar captar qualquer som diferente, que pudesse sugestionar uma
rota de fuga. Um som oco é sempre uma esperança para uma saída. E foi assim,
pedra por pedra. A localização delas era determinada somente pelo tato. E a
altura máxima era padronizada pela sua altura, que era de um metro e setenta
centímetros. João perdia um tempão em cada pedra, batendo em toda volta dela.
Como tinha todo o tempo do mundo, seguia aquele ritual sem pressa nenhuma. Como
estava sem sono, calculou que devia ser dia. Mas estava enganado, pois do lado
de fora a noite tinha escondido o sol. E era uma noite com lua cheia, não a sua
noite que não tinha nem estrelas, nem lua. Ali a noite era eterna. E João
começou a falar como se tivesse uma pessoa do seu lado.
- Eu acho que ainda é dia. O
que é que você acha? Está em dúvida? Tudo bem. Bota o ouvido nessa pedra. O som
não está diferente? Está com dúvida também? Eu acho que essa tem um som
diferente. Coloca o ouvido de novo. Parece que você não está muito concentrado.
Agora vou bater nessa do lado. Observa como o som é diferente. Percebeu? Não
disse! Ah! Acho que a saída está aqui! Vou começar a descalçá-la. Vou raspar
pelos lados bem devagar para não gastar muito a fivela. A gente dá para
perceber que essa pedra tem um tamanho bem diferente das outras. E é a única, até agora, que está úmida. Está
na verdade, bem molhada. Vou raspar por baixo. Olha só! Começou a escorrer mais
água! Já estou com a mão toda molhada! Acho que vou provar. Não fica preocupado
não. Você acha que não devo? Morrer por morrer... é a mesma coisa. Daqui a
pouco vou estar morto para todo mundo mesmo! Eu não sei há quanto tempo estamos
aqui. E você, tem noção? Se a gente estiver há mais de sete dias sumido, já
devem ter feito até missa de sétimo dia. Mas não podem... Eu nem quero pensar
nisso. Eles não sabem se nós morremos ou botamos as pernas no mundo. Não vão
nos achar nem em delegacia, nem em hospital e nem em lugar nenhum. Parece que
estamos no fundo da terra. Nós somos culpados do quê? Eles me chamaram de
comunista! Veja só! Logo eu que nunca me interessei por política! Que ironia do
destino! Sacanagem! Nunca precisei usar livros, de repente sou preso por estar
com um livro debaixo do braço! O pior disso tudo, é que nem sei o conteúdo
dele! Só peguei o raio do livro para devolver ao dono, só isso! Eu não vou
dizer que nunca usei livros, isso seria uma mentira. Como se tornou uma lenda
eu não ter usado livro algum, preferi não desmentir. Eu fui apresentado a
alguns gênios da humanidade pelos livros. Não te falei que conheci Newton,
Lavoisier, Platão, Einstein e mais uma porção de benfeitores? Não te falei? Eu
tinha que ler para me inteirar do conhecimento desses amigos. Depois, não
precisei ler mais nada. Eu hoje tenho minhas teorias, meus estudos, minha
filosofia, como eles tinham as suas fórmulas e filosofia. Tenho minhas fórmulas
e teorias, mas falta ainda uma fórmula para acabar com a maldade. Você sabe o
que minha mãe sempre falava pra mim: meu filho, cuidado com esses que se dizem
brasileiros de corpo e alma!Os donos da revolução, não são!Eles perseguem as
pessoas, só porque elas pensam diferente deles! Estamos aqui para pensar
diferente, para sermos diferentes mesmo. Não querem ser contrariados. Nós temos
que aceitar como eles pensam? Não. Mas temos que respeitar. Entretanto eles não
respeitam como pensamos, logo alguns não aceitam o cabresto que querem impor e
partem pra guerra. Com o tempo a gente
vê e analisa: eles estão agindo da mesma forma dos que estão no poder, batendo,
torturando e matando. Na verdade só estão querendo tirar o rei e coroar o seu.
Quem quer mudança, não mata, porque valoriza a vida. Gandhi fez uma revolução
sem derramar sangue dos seus. Entretanto o seu sangue manchou o chão da
Índia. Ele não queria o poder, ele só
queria poder mudar. Mas tinha gente do seu lado que só queria sentar no trono.
Não interessava pra esses, o bem estar do povo da Índia. Queriam, matando-o,
apagá-lo, entretanto o tiro saiu pela culatra: só conseguiram apagar o sangue
do chão, mas não conseguiram apagar os seus ensinamentos, que repousam até hoje
no coração da sua gente. Foi um preço alto por pensar diferente e querer o bem.
Tem muita gente ruim por aí afora. Mas você não acredita, não é? Acho que
Gandhi também não acreditava. Eu sempre soube que você sempre quis o melhor pra
todo mundo. O seu mundo sempre foi bom, mas esse aqui de fora é duro e, às
vezes, cruel. Quem sabe um dia isso mude! Espero que não seja depois de muita
dor!”
João ficou parado
pensando nessas coisas que a sua mãe falava. Depois bateu com as duas mãos na
cabeça e resolveu provar o líquido que molhava a pedra. Provou,sorriu e falou
alto.
- É água salgada, meu Deus! É água salgada! Será que estamos do lado do
mar? Mas podemos estar debaixo dele. Aí eu tenho que parar por aqui. Pois se
continuar... Mas não posso recuar. Tenho que me preparar para o pior e ir em
frente. Eu não posso morrer sem tentar.
Foi raspando a fivela do cinto
entre os blocos de pedra. Não demorou muito e começou a escorrer pela parede,
uma água misturada com terra. E continuou a raspar em toda a volta da pedra.
Depois de algum tempo, ao passar o dedo em torno dela, sentiu que o seu dedo
entrava entre as pedras. Pegou a parte mais grossa da fivela e fez uma
alavanca. O seu coração disparou ao sentir que a pedra tinha se mexido. Forçou
mais um pouco e ela quase saiu. Hesitou por um instante em tirá-la. Nessa
altura o seu coração já batia dentro da boca. Respirou fundo e puxou-a
cuidadosamente. A pedra caprichosamente escorregou para as suas mãos. Nesse
momento um grito escapuliu da sua garganta.
- Porra! Porra! Não acredito! Você viu só! Puta que os pariu! Porra,
você tem que entender essa minha ira! Você sabe que eu nunca fui de
xingar!Mas dessa vez, não deu pra controlar! Depois de depositar toda a minha
esperança nisso, olha só essa casca de granito na minha mão! Puta que os pariu,
de novo.
Depois do acesso de raiva, ficou
algum tempo em silêncio olhando para a pedra, que quase não dava para ver a
cor. Era apenas uma mancha escura pousada na sua mão. Deu um murro na parede e
em seguida sussurrou entre dentes:
- Calma João. Calma. Você
sabe que não pode desistir. Vamos recomeçar.”
Se abaixou e colocou a pedra
no chão. Depois se levantou calmamente e tateando colocou a mão dentro da
pequena cavidade da parede. Resmungou alguma coisa e em seguida perguntou
surpreso para ele mesmo:
- Cara, o quê que é isso?
Parece um pedaço de papel! Vamos devagar porque ele está um pouco úmido. Cara
será que tem alguma coisa escrita? Isso pode ser uma brincadeira. Só pode ser!
Mas de repente, quem sabe, pode ser um mapa de algum tesouro. Eu já assisti um
filme... Pé no chão, João! Isso aqui não é filme!
Pegou o papel, dobrou e colocou no bolso.
Resolveu caminhar naquele seu pequeno mundo. Sentiu vontade de urinar e foi lá
para o cantinho reservado. Depois de terminar pensou alto:
- De repente eu posso alargar
esse buraco e tentar sair por aqui.
Se abaixou e bateu com o
cinto em volta. O mau cheiro causou-lhe náusea. Desistiu da empreitada e voltou
para o lugar onde tinha começado a cavar. E pensou alto novamente:
- Nossa mãe! Senti vontade de
vomitar! Que fedor horrível! Mesmo se eu quisesse por ali ia ser impossível.
Eles fizeram o buraco no granito. Vou continuar por aqui mesmo. O que é que
você acha? O que adianta eu te perguntar, se no final eu mesmo é que tenho que
decidir! Vou continuar a cavar aqui mesmo e pronto! Está decidido!
Lá foi ele com o seu cinto, com a
fivela já bem gasta, raspar o fundo do buraco. Mas antes enfiou a mão no bolso
e tirou o papel. Ficou com ele na palma da mão direita e cheirou-o. Fez uma
careta ao sentir o cheiro de mofo. Pegou-o e o colocou em
cima do pedaço de pedra que
estava no chão. Depois recomeçou o seu trabalho com afinco. A esperança
começava a aparecer. O material entre as pedras não apresentava praticamente
nenhuma resistência. Saía uma terra bem molhada. Era quase uma lama. E um fio
de água escorria pela parede. Era somente naquele ponto que isso ocorria. Ele
continuou eufórico. Não demorou muito e a pedra ficou solta. Começou a empurrar
a pedra, mas ela não se movia. Foi ficando nervoso e com isso, o seu raciocínio
encurtou. Começou a esmurrá-la. Em pouco tempo os dedos já estavam sangrando.
Só parou de socar a parede quando a dor ficou insuportável. Sentou-se no chão e
sentiu vontade de chorar. Estava desolado. O tempo que ficou ali sentado, até
voltar ao estado normal, pareceu uma eternidade. Quando se sentiu equilibrado,
é que voltou a pensar com lucidez.
- O que é que deu em mim,
pensar que a pedra tinha que sair facilmente? Acho que estou perdendo a
condição de pensador racional.Tenho que focar com tranquilidade o meu objetivo
maior, que é sair desse pesadelo. Vamos ver... Com certeza essas pedras são
encaixadas... É isso aí! Essas pedras só saem por dentro. Vou raspar as junções
de outras pedras. Depois volto para retirar essa que já está quase no ponto de
sair.
Pegou uma do lado esquerdo e
começou a raspar. Para sua surpresa a fivela foi gastando rapidamente e
material nenhum saía. Parou desapontado e triste, e falou para si mesmo:
- Você emburreceu? Desde
quando uma simples fivela ia tirar uma pedra dessas? Espera aí cara! Você não
observou que a outra está sendo fácil de tirar? Vamos focar o nosso objetivo
nesta. Pensa bem, você viu a burrice que eu estava cometendo? O pior é que você
nem me alertou! Sorte que a pedra não caiu do lado de fora! Eles iam me pegar
facilmente! Não quero nem pensar o que fariam comigo. Já pensou nisso? Vamos
puxar com cuidado essa pedra. Muita calma João! Muita calma!
Ele procurou tirar do fundo de sua
alma, aquela tranqüilidade que sempre o acompanhou. Pacientemente, com a parte
mais fina da fivela, foi retirando o material que estava atrapalhando a
retirada da pedra. O pequeno bloco de granito teimava em não sair. A massa não
era tão forte assim e ele sabia disso. Era uma questão de tempo. E tempo era o
que ele tinha de sobra. E enquanto raspava, engolia a ansiedade. Estava
conseguindo manter-se no prumo. Isso é que era, naquela situação, o mais
importante. Ele raspava, pensava e começou a falar com o seu imaginário:
- Eu estou pensando numa
coisa. Com certeza alguma pessoa que esteve aqui, conseguiu tirar esse bloco.
Isso é fato. Agora, uma coisa que não entendo, é como ela conseguiu colocar
essa pedra de volta. Além de escrever um bilhete. Sei lá se é bilhete, ou mapa.
Como ela conseguiu papel e caneta ou lápis? E a massa para recolocar a pedra? O
material é diferente. Isso dá para perceber claramente. Por que pensar nisso
agora? Vou continuar meu trabalho. Ela já está praticamente solta. É só uma
questão de tempo e paciência. Vou raspar mais desse lado... Está ficando bom.
Não sei por que estou pensando agora nos professores. Eu nunca me dei conta que
eles podiam se sentir humilhados. Parece que a minha presença já era motivo
para que ficassem constrangidos. Lembra quando um professor de física ficou
envergonhado, quando eu corrigi uma fórmula que estava errada? Depois desse dia
ele sempre me perguntava se estava certo. Coitado. Ele entrava na sala
tremendo. Se lembra disso? Lembra do Érico? Era o meu único amigo. Puxa vida,
já estou falando no passado. O cara continua meu amigo. Que merda! Xinguei de
novo!Vou acabar saindo daqui falando todos os palavrões do mundo. Érico me
disse que eu devo ser a reencarnação de algum gênio da humanidade. Aonde já se
viu! Gênio de quê? O cara é espírita... Não consigo entender esse negócio não!
Só acredito na ciência. Minha mãe sempre ficou nos meus ouvidos falando na
existência de Deus. Não tenho religião, mas não descarto a existência dele. Mas
que tudo isso é esquisito, é! Não existe uma lógica... Sei lá! Ele me disse
também, que eu tenho um anjo da guarda. Nunca vi, nem senti a presença de
alguma coisa do meu lado. Entretanto... e a intuição?
Parou de raspar e ficou pensativo.
Parecia que estava ruminando alguma coisa. Colocava a mão na cabeça, coçava o
coro cabeludo, depois colocava as mãos na cintura. Perdeu a conta das vezes que
fez isso. Continuava pensativo. Se virou e colocou às costas na parede. Se
sentiu desconfortável e colocou a sola do pé direito, também na parede. Ficou
imóvel bastante tempo. Só voltou a se mexer, quando alguma coisa chamou a sua
atenção. Um pequeno ponto de luz se movimentou no lado oposto. Esfregou os
olhos mais de uma vez, achando que aquilo poderia ser fruto da sua imaginação.
Desviou o olhar, mas a curiosidade era maior, voltou a observar a movimentação
da luz. A princípio não ficou com medo, achando que aquilo tudo fosse realmente
criação da sua mente. Mas quando o ponto começou a aumentar, foi ficando tenso.
Resolveu falar com os seus botões:
- Você está vendo o que eu estou
vendo? Diz que é invenção minha! Será que estou vendo coisas que não existem?
Olha só! Olha só! O ponto está aumentando! E agora? Vou fechar os olhos! Diz
que isso é fruto da minha imaginação, diz! Pra que eu fui me lembrar de Érico?
Viu só! Já apareceu uma assombração! Mas assombração não existe, droga!
Continua semana que vem...
Nenhum comentário:
Postar um comentário