O tempo foi passando, mas a
ansiedade começou a tomar vulto. Ali dentro daquele cubículo as horas se
arrastavam. Não queria ficar nervoso, mas não tinha jeito. Pensou que
poderia ficar louco.- Como não enlouquecer aqui? Se isso tivesse uma fórmula
seria de fácil resolução. Não posso ficar maluco. Não existe um só problema
nessa vida que eu não consiga resolver, droga! Tudo para mim sempre teve
solução! Mas e agora? Calma João. Como eu vou sair daqui? Todo problema tem uma
fórmula. É, mas esse problema tem alguma fórmula que desconheço. Mas... Vou
bater nessa porta pra ver se alguém me escuta. Vou gritar.
João bateu com tanta força que machucou um
dedo. Gritou até ficar rouco. Mas nada de aparecer uma viva alma. Doía dedo,
doía garganta e doía a alma. Teve vontade de chorar, mas engoliu o choro.
Virou-se para a parede e falou alguma coisa abafada. Parece que nem ele
entendeu o que resmungou. Bateu levemente a cabeça na parede. Resmungou
novamente alguma coisa, mas agora,compreensível.
- Não deram a mínima pra mim.
Que raio de lugar deve ser esse.
Depois colocou as duas mãos na cabeça e
gritou:
- Meu Deus! Meu Deus! Me
socorra!
Em seguida ficou em silêncio. Escorregou
vagarosamente pela parede e se sentou no chão frio e úmido. Ali ficou algum
tempo sem procurar pensar. Era muito difícil ficar sem pensar, mas estava
tentando. Parece que adormeceu. Mas isso acabou não durando muito tempo. Talvez
meia hora. E voltou a pensar novamente:
-Não acredito que tenha
gritado o nome de Deus. Sempre fui ateu. Acreditei sempre e unicamente na
ciência. Deve ter sido o inconsciente coletivo atuando. Eu acho que foi um
desabafo. É fruto do medo. Na hora do perigo temos que ter alguém para segurar a
mão. Me desculpe por estar pedindo socorro. Lá estou eu admitindo que existe um
Deus. Mas... Eu tenho que pegar na mão de alguém! Meu Deus, se você existe
mesmo, me tire daqui. Uma coisa écerta: se me apresentar alguma saída, pode ter
certeza que você vai ter em mim um fiel escudeiro. Pode escrever aí no céu:
estudo até teologia! Acredito até em horóscopo! Vou ser monge! Vou lá pro topo
do mundo! Fico sentado no ponto mais alto do Himalaia! Faço qualquer negócio!
Enquanto ele monologava, do lado de
fora o silêncio se abraçava com a penumbra. O corredor era tão pouco visitado
que o piso e as paredes eram moradia de uma infinidade de musgos. A umidade era
tanta, que fedia a mofo.
Antes de chegar à cela de João, que
era a última, tinha mais cinco de cada lado. Eram todas hermeticamente
fechadas. Nenhum som era ouvido, nem de fora e nem de dentro. Quem eram as
pobres almas ali confinadas? Ninguém sabia se tinha vizinho, ainda mais quem
era. Todos chegavam ali com os olhos vendados.
O lugar era uma construção bem
antiga. Uma fortaleza construída pelos portugueses no final do século XVIII. O
cubículo em que jogaram João foi construído alguns anos depois. Ele ficava
debaixo da construção original. Era uma caverna que fora descoberta ao
retirarem uma grande pedra que ficava no meio do pátio, e posteriormente
transformada em onze minúsculas celas. Era o lugar onde enterravam vivos os
indesejáveis. E com as ditaduras do século XX, continuou sendo o lugar
preferido para encarcerarem pessoas extremamente perigosas para o regime. Esse
lugar, pouquíssimas pessoas sabiam da sua existência. Os soldados que eram
designados para atender aquele buraco, tinham que manter total segredo. Quem
por ventura abrisse a boca, pagava com a própria vida. E João foi jogado logo
ali. Pobre João! Que perigo ele poderia trazer para os ditadores? De repente a
educação, a cultura... Ele era um cara bom. De repente a sua bondade também
incomodava. E era extremamente inteligente.Era cientista. Simplesmente um
gênio. Uma pessoa incomum. Parecia que não era deste planeta. Mas com toda a
sua genialidade, não estava conseguindo pensar numa forma de sair dali. O mal
estava se mostrando mais genial do que ele.
Lembrou que um amigo falava sempre da força do pensamento. Mas ele nunca
se interessou por isso. Se de repente tivesse se enveredado por esse caminho, a
história podia ser outra. Nesse momento podia ter serventia. Quem sabe abrir a
porta com essa força... – Isso é fantasia - pensou.
O estômago de João começou a
roncar. Ele nunca foi de comer muito. Às vezes até esquecia de se alimentar,
mas dessa vez o corpo estava reclamando. Tentou se lembrar da última refeição.
Não conseguiu. Só Sabia que estava com muita fome, que estava há muito tempo
sem comer.
- Será que me esqueceram
nesse buraco fedorento? Agora percebi como é bom comer. Como é bom se
alimentar. Mas eu nem sei qual é o meu prato preferido. Engraçado é que nunca
me preocupei sequer em olhar para o meu prato, lá em casa.
Se me perguntarem hoje como
ele é, com certeza vou responder que não sei. Nunca observei. Branco? Isso vou
responder com toda certeza: não. A minha
mãe não gosta de pratos, xícaras brancos. Ela gosta da cor de verde. Mas eu não
tenho certeza se os pratos eram realmente verdes. Mas... parece que o meu estômago vai dar um nó. Estou com muita
sede também. Acho que estou há séculos sem beber água. Será que vão me deixar
aqui até eu morrer de sede e fome?
Ele nem ousou responder a sua pergunta muda.
Onde estava, continuou sentado. Também não adiantava muito trocar de lugar,
isso não iria mudar em nada a sua situação. Ali, pelo menos, estava do lado da
porta. Passou a mão pela porta e sentiu que havia uma portinhola. –Quando
abrissem, pelo menos daria para visualizar o ambiente e guardá-lo na memória. A
sua mente fotográfica iria ajudá-lo naquele momento – pensou ele.
A perna começou a adormecer. Se
sentiu incomodado, se levantou e fez alguns exercícios. Depois deu alguns pulos
e correu sem sair do lugar. Percebeu que a ansiedade estava diminuindo.A fome e
a sede continuavam, mas sem causar desespero. Sentou-se novamente e esticou bem
as pernas. A friagem e a umidade subiram rapidamente pelas pernas fazendo com
que ele se arrepiasse todo. Encolheu-as e sentiu nojo daquele contato com o
chão imundo. O tempo passou e ele adormeceu. O tempo que ficou dormindo, não
deu para avaliar. Acordou sobressaltado. Tinha sonhado. Sonhado não. Tinha tido
um pesadelo. Alguém amarrava pedras nos seus pés e jogava-o no mar. Despertou
assustado, quando encostou o seu corpo na água. O coração pareciasair pela
boca.
- Porra! Que susto! Ainda bem
que continuo vivo. Foi só um pesadelo. Parecia real. Eu até xinguei. Eu que
nunca fui disso. Porra! Porra! Estou virando uma pessoa normal? Até que soou
bem. Foi bom que deu pra espantar o medo.
Depois daquela
experiência assustadora, deu um sorriso e se esticou de novo. Dessa vez não fez
cara de nojo e acomodou melhor as costas na parede. Fechou os olhos e deixou
escapar uma risada.
- Caramba! Só rindo mesmo! Ficar de olhos abertos ou fechados dá no
mesmo! Puxa vida! Será que já estou ficando maluco?
Ficou em silêncio, mas abriu os
olhos. Estava com medo de dormir e sonhar novamente. E o tempo foi rolando. Não
tinha certeza se já tinha passado de quarenta e oito horas da última vez que
tinha comido alguma coisa. E bebido também. Estava com a garganta seca e as
tripas dando um nó. Enquanto tentava se lembrar da última refeição, alguém
mexeu na fechadura da portinhola. Procurou não olhar. Preferiu esperar ser
aberta para que não perdesse um só instante de luminosidade. Quando a
claridade, mesmo sendo pouca, entrou na cela, procurou memorizar os mínimos
detalhes. Até um pequeno buraco, no lado oposto da porta, onde deduziu que
seria para fazer às suas necessidades fisiológicas, ele viu. Como já estava
habituado com a escuridão,achou que foi até fácil. Já estava tudo gravado na
memória. E deu até tempo para tentar se comunicar com o carcereiro.
- Ei! Onde estou? O que é que
vão fazer comigo? Disseram que sou comunista, mas isso não é verdade! Eu não
sei nada de política! Por favor me escute! Não fecha a portinhola não! A minha
mãe deve estar desesperada com o meu sumiço! Não fecha! Por favor, não fecha!
A pessoa que estava do lado de fora,
nada respondeu. Apenas colocou uma vasilha de água e uma outra com um caldo
ralo. Fechou a portinhola e se retirou sem responder aos apelos de João. A
escuridão voltou a reinar. João bebeu um pouco de água e depois bebeu um pouco
do caldo, que ele não conseguiu identificar do que era. Parecia mais água com
sal. Mas como a fome era muita, secou o vasilhame com três goladas. Para quem não se alimentava há muito tempo,
até que foi reconfortante. Deixou as duas vasilhas bem junto da porta. Depois
se levantou e deu uma esticada na coluna. Enquanto se alongava, lembrou do seu
gato Newton. Todas as manhãs ele observava como ele se alongava e acabava se
espreguiçando também. Em seguida deu uns pulos e começou a falar consigo mesmo.
- Olha só que coisa horrível.
Tenho que fazer daquele buraco fedorento o meu banheiro particular. O ambiente
está fétido. Não sei quanto tempo vou aguentar essa podridão. Mas... não tem
outro jeito. Tenho mesmo é que suportar. Mas eu vou sair daqui. Como? Ainda não
sei. Mas vou arranjar um jeito. Vou arranjar uma saída. Eu pensei numa saída,
mas essa eu tenho que esquecer: a morte... Deixa ela pra lá. Vai ser minha
última opção. Espero não precisar dela. Vou estar do lado de fora curtindo a
vida. Engraçado, hoje estou pensando na vida. Num jeito de viver... Um modo bem
“descolado”. Eu ouço algumas pessoas da faculdade falando assim. Eu achava
esquisito, mas agora até que soou legal. Pensamento. Eu sempre pensei muito.
Dizem que eu só vivo viajando. O meu negócio é pensar. Estou sempre tentando
encontrar respostas. Nunca pensei na força do pensamento. De repente se tivesse
me dedicado a encontrar resposta pra essa força, hoje poderia ser útil. Podia
estar me comunicando com alguém lá fora. Ainda está em tempo. Vou começar a
exercitar. Um colega me falou algumas vezes sobre isso. Di Carlo é ligado no
assunto. É isso! Vou tentar me comunicar com ele! Estranho. Eu penso 24 horas,
mas nunca me perguntei o que é o pensamento. Que força é essa? Vou me concentrar no meu amigo. Quem
sabe eu consiga alguma coisa.
Antes de tentar, foi tateando
até o banheiro. Urinou bastante. O fedor que subiu, quase o sufocou. Um cheiro
forte te amônia entrou pela sua narina, causando ânsia de vômito. Depois sentiu
vontade de defecar, mas acabou perdendo a vontade.
Tinha certeza que mais cedo ou mais tarde ia
ter que encarar aquele desafio. Ficar na posição que vem desde o início da
humanidade ia ser inevitável. Pensou numa moitinha de capim. Com certeza seria
muito mais agradável do que aquele buraco fedorento. Conviver com aquele fedor
de merda, ia ser terrível. Quantas pessoas já ficaram ali de cócoras mirando
aquele buraco? Passou pela sua cabeça até em tentar abrir mais aquele buraco,
mas desistiu.
João ficou zanzando na escuridão de um lado
para o outro. Já tinha decorado quantos passos tinha de uma parede a outra. Também
com apenas três passos... Começou a bater na parede para tentar encontrar
alguma pedra que pudesse estar oca. Enquanto batia, pensou:
- Não posso me esquecer da
telepatia. Nunca pensei nisso, mas vou tentar. Não tenho nada a perder. Tenho
que arranjar alguma ferramenta para tentar abrir um buraco em qualquer lugar e
sair daqui.
João foi até a porta e colocou
amão na portinhola. Depois bateu. Era tão firme quanto à própria porta. Parecia
de pedra. Ficou em pé, mas se sentiu meio desanimado. Coçou a cabeça e se
movimentou um pouco. Colocou as mãos nos bolsos detrás da calça e de repente,
deixando escapar um sorriso, falou satisfeito:
- Espera aí! Achei o que
precisava para sair daqui! Olha só! Eles esqueceram de tirar o cinto da minha
calça! A fivela vai ser a minha ferramenta! Pode escrever aí: qualquer
buraquinho eu fujo! Vou começar logo a procurar por essas pedras na parede!
Continua semana que vem...
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