terça-feira, 28 de abril de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 6

Continuando...


             João continuou com os olhos fechados, quase se borrando de medo. Ele não via, mas o ponto luminoso já estava quase da sua altura. Aos poucos, enquanto a luz diminuía de intensidade, ia aparecendo os traços de um homem. Uma barba rala e branca sobressaia num rosto magro. Em alguns pontos parecia uma sombra de sujeira. Estava vestido com roupas bem esfoladas, sem definição de cor. Se postou ereto, bem em frente dele. O seu corpo bem magro, mas apresentando altivez, sugeria que tinha ficado muito tempo sem ver a luz do sol. Olhava com um olhar vivo e penetrante para João. Já que João continuava de olhos fechados, arriscou entrar em contado com ele.
            -Hei gajo. Abra os olhos e olhe-me. Estou precisando de ti. Preciso sair deste buraco, o quanto antes. Agora tu tens um motivo a mais para sair daqui: eu. Continue trabalhando com afinco, pois vais conseguir salvar-me e a ti.
            João abriu os olhos, mas colocou as mãos na frente do rosto. Não queria acreditar no que estava acontecendo, entretanto o medo enfraquecia a sua incredulidade.
            - Diz que é mentira, que eu não vi nada e muito menos ouvi alguma coisa! Por favor, me convença disso! Fantasma não existe! Então eu não vejo nada e nada ouço!
            - Deixas de besteira!Vais acabar borrando as calças! Ô gajo! Escuta-me!
            João estava completamente assustado. Por um triz, realmente não sujou as calças. Naquele momento suspeitou que estivesse chegando às raias da loucura. Trazia tatuado na sua formação, que fantasmas não existiam. Tinha certeza que era invenção de religiosos para amedrontar seus rebanhos. Até a forma de um Deus que pune seus filhos, eles criaram. Pra ele tudo era criação dos homens para trazer seus seguidores com rédeas curtas. Mas como explicar tudo aquilo? Estava desconfortável. Mas já estava conseguindo olhar para a aparição. Respirou fundo e tentou encontrar coragem para dialogar. Depois de pensar muito chegou à conclusão que não deveria ser difícil, tendo em vista que já estava a algum tempo conversando com ele mesmo.O medo meteu o pé na dúvida novamente. Voltou a se questionar: -travar um diálogo com uma
coisa que não existia, não era diferente de conversar consigo mesmo? Será que era o
fim da sua lucidez? – Depois de pensar, voltou a falar:
           - Quem é você, cara? Ou o que é você?
           - Estás assustado, ô gajo? Calma! Olha-me bem! Sou igual a ti!
           - De jeito nenhum! Você não pode ser igual a mim!
           - Ô gajo! Só quero sair daqui! E só tenho a ti para me ajudares! Já perdi a conta dos anos que aqui estou.
           - Quem é você? Você é uma alma penada?
           - Que história é esta? Que alma penada o quê! Pedro Madeira, às suas ordens.
           - Pedro Madeira! Só por curiosidade: há quanto tempo você está aqui?
           - Antes de responder a tua pergunta, gostaria de saber qual o vosso nome.
          - João.
          - Sr. João. Falas um português muito estranho. De onde és?
          - Sou do Rio de Janeiro.
          - Então és da cidade de São Sebastião! Muito bem. Então queres saber a quanto tempo cá estou? Para falar a verdade, não sei! Mas isto não interessa muito. O que interessa realmente é contar com o amigo para sair deste buraco. Buraco este, que ajudei a construir. Olha só que ironia...
          - O senhor ajudou a construir esta cela e acabou ficando encarcerado nela?
          - É isto mesmo, meu caro jovem. Dei o meu corpo e a minha alma nesta empreitada para prender os nossos inimigos, mas acabei sendo eu e alguns amigos a inaugurar este calabouço. Meu jovem amigo, estamos debaixo da terra. Estamos debaixo, na verdade, de um monte de pedras. Esta prisão foi construída para prender e esquecer os inimigos da coroa de Portugal. É um lugar para o homem apodrecer esquecido do mundo. Sabe de uma coisa: parece que estava adivinhando o que me sucederia. Por isso eu colei esta pedra praticamente apenas com barro. Misturei apenas um pouco da massa usada para colar as outras. Observaste como é dura? Estava a observá-lo, na faina de escapar, a gastar os dedos nestas pedras. Vais com calma! Vais com calma!
             João ficou olhando àquela figura, que parecia ter saído de um conto de fadas. Bateu com as mãos na cabeça uma, duas, três vezes parecendo que queria arrumar o cérebro. Continuava sem acreditar no que estava vendo. Pensou em tocar na aparição, mas medrou. Jamais poderia admitir, em sã consciência, que estivesse tendo um diálogo com uma alma de outro mundo. Realmente era uma coisa bizarra.
          - Pedro Madeira. – balbuciou ele.  
          Ficou pensando nesse nome, tentando ver se a memória lhe segredasse alguma coisa. Fez uma varredura no cérebro, mas nada encontrou. Conhecia algumas pessoas com o nome de Pedro, porém Pedro Madeira, nenhuma. Virou-se para a parede e espalmou as duas mãos. De costas para Pedro, ficou pensativo. Não sabia há quanto tempo ali estava. Questionou se aquele cárcere não o estava levando para uma possível loucura.
               João perdeu a noção do tempo que ficou com as mãos na parede. Despertou quando Pedro chamou-o.
           - Ô gajo! Ô gajo! O que fazes com os olhos grudados nestas pedras? Vamos ao trabalho? Vou dizer-te uma coisa, antes que me perguntes, eu fui preso devido a uma rebelião. Não tivemos saída. Aonde já se viu nos alimentarem com lavagens de porcos! Vou dizer-te mais: o que eles comiam, em comparação a nossa alimentação, era um verdadeiro banquete. Eles se alimentavam com as sobras dos oficiais. Já nós - acho – éramos alimentados com as suas sobras. Éramos os verdadeiros suínos.
          Sabes de uma coisa: fui jogado aqui e só lembro-me quando daqui me tiraram. Não consigo me recordar de quando voltei. Sabes que esta pedra, que tentas tirar, eu já tentei, mas não consegui?Dei-me com os burros n’água...
             Ô gajo. Continuas calado. Sabes que estou a observar-te desde que aqui chegastes?
          João fez uma careta, passou as mãos pelos cabelos e respondeu com uma pergunta:
         - Você me viu chegar?
          - Claro! Tu que não me viste! Eu aqui defronte a ti, e tu não me vias! Parecias completamente cego!
          - Eu cego? Claro que não sou cego! Se bem que com essa escuridão toda, eu quase me sinta desprovido de visão. Mas garanto que não sou cego.
          -Tens certeza que não és cego? Duvido disso! Não vejo escuridão alguma! Eu vos vejo perfeitamente!
          - Sou cego nada! Eu enxergo perfeitamente! Estou vendo você! E isso é uma  prova, não acha?
           Pedro apenas balançou a cabeça afirmativamente. E João, depois de dar uma pausa, continuou a falar:
           - Eu não vejo nada em volta, somente você. Vi até quando você balançou a cabeça concordando comigo. Estou tentando tirar essa pedra, somente no tato.
          - Então tu me vês.
          - É isso aí. Também você parece uma luz acesa!
          - Muito estranho!
          - Muito estranho, é você. Está aqui há tanto tempo e ainda não tentou fugir. Podia ter tentado passar pela portinhola que colocam a comida. Já que disse que quer sair pelo buraco que estou fazendo na parede. Acho que pela portinhola é mais fácil.
          -Por um acaso o gajo está querendo troçar com a minha cara? És muito engraçado. Sabe amigo, do outro lado tem um carcereiro mau. Ponha a cabeça para fora e ficarás sem ela!
          -Não sou engraçado e tão pouco pretendo ser. Nunca pensei que fosse conversar com um fantasma.
           João virou o rosto e falou entre dentes, mas Pedro ouviu.
         -O que o amigo falou? Ouças bem: se existe um fantasma aqui, este fantasma és tu! Eu ouço tudo! Até o vosso pensamento, eu posso ouvir, ô gajo!
          -Se você não é um fantasma, o que é então? Não responda! Eu já sei! Você é uma invenção minha! Com o meu pensamento eu criei você! E ainda por cima, uma criatura que fala um português muito mal! Certo?
          -Errado. Errado. Errado. Não fui criado por ti. E és um gajo debochado e que fala um português péssimo! Certo?”
          -Eu não quero saber o que é certo e o que é errado. Eu só quero acreditar que você não é invenção minha. Agora,o seu português é pior do que o meu! Pode ficar certo disso! A língua que você fala, está cheia de aleijões! Eu sei que não domino bem o português, que sou muito bom em matemática, mas, falando sério, você faz uma bagunça danada com a nossa língua!
          -Continuas debochando de mim, não é gajo?
          -Não estou coisa nenhuma. Vamos parar por aqui. Já que não tem jeito, vamos conversar direito. Já que estamos no mesmo barco, vamos tentar sair daqui. Duas cabeças pensam mais do que uma. Me diz uma coisa: estamos debaixo da terra, certo?
          -Correto. Precisamente debaixo de um forte.
          -Isso aqui é um forte?
          -É claro que é! Eu não te disse que ajudei a construí-lo?
          -É! Mas você não disse que era um forte! Então estamos próximos do mar! Certo?
          -Certíssimo! Para situá-lo melhor, devo dizer que estamos numa ilha!
          -Meu Deus! Numa ilha?
          -Podes ficar calmo! Chamamos de ilha, mas ela está praticamente colada no continente. Ela está separada apenas por três passadas. Na realidade é apenas uma vala.
          -Puxa! Assim fico mais calmo! Ufa!
          -O gajo é muito medroso. O medo só atrapalha.
          -Quem tem... tem medo.
          -O que foi que o gajo disse?
          -Deixa pra lá. Você me disse que ajudou a construí-lo. Em que ano foi isso?
          -O início mesmo eu não sei. Só sei quando terminou. Dizem que demorou muitos anos. Eu sei o dia certinho: quatro de setembro do ano de 1830. Eu...
           João interrompeu o que Pedro ia falar. E demonstrando surpresa, interroga-o.
          -1830? Você disse 1830? Você tem certeza?
          -Por quem me tomas? Tu me tiras por mentiroso? Dúvidas da minha palavra? Sou um homem de moral ilibada! Eu jamais faltei com a verdade!
          -Calma! Eu não duvido de nada que você me disse! Só estou assustado pelo ano que foi inaugurado isso aqui! Você sabe em que ano nós estamos?
          -Nem desconfio! Mas posso tentar fazer uma previsão. De repente eu acerto por aproximação. Vejamos. Acho que já estou encarcerado há pelo menos cinco anos. Então deve ser 1838. Fui jogado aqui no ano de 1833.
           -Não. Não estamos em 1838. Se segure para não cair. Estamos em 1972.
           -O quê? Agora quem está assustado sou eu! Aonde já se viu estar com mais de cento e cinqüenta anos! Assim tu me fazes rir! Ô gajo! Estais a brincar comigo?
          -Claro que não estou brincando! Estamos em 1972, com certeza!
          -Ô gajo! Brincadeira tem hora! Como posso ter vivido todos esses anos? Porque morto eu não estou! Com certeza estou vivo! Tu não me vês?
         -Sim! Claro! Bagunçando tudo aquilo que sempre acreditei, estou te vendo! Mas não sei como! Não saberei responder como eu consigo vê-lo. Isso me dá uma agonia danada. Eu consigo resposta para quase tudo, mas para isso que está acontecendo comigo, não tenho! Se você diz que não morreu, eu estou de frente para um fenômeno que a física ainda não explica. Ou estou ficando maluco. Acho que a segunda hipótese é a mais certa.
          -Se o gajo está maluco, eu também estou. Quem não fica maluco num cárcere? Falas bem devagar: realmente estamos no ano de 1973? Isto é impossível!
         -Não, o ano é 1972.
         -Então tu ainda confirmas?
         -Eu só nego se você também negar que esteve preso aqui em 1835.
         -Mas como negar, se eu não minto nunca! Eu fui encarcerado aqui em 1835!
         -Então você está morto mesmo!
         -Que morto o quê! Ô gajo, tu estás a me querer confundir? É melhor tu continuares a cavar! Tenho que sair daqui o mais rápido possível, senão, aí sim, é que vou enlouquecer mesmo!
          João, mesmo sem querer achar graça da situação, foi obrigado a sorrir. Tentou falar consigo mesmo que aquilo tudo era fruto da sua imaginação.
         -Meu Deus. Eu sempre trilhei pelos bons pensamentos, mas porque agora as minhas idéias estão escorregando pela fantasia?”
           João se lamentou e esperou Pedro comentar alguma coisa, mas o português ficou calado. Ele então resmungou achando que Pedro não fosse entender.
         -É isso ai. Vou fazer de tudo para sair daqui. Vou sair de qualquer jeito, com ajuda ou não.
        -Ô gajo! Vais sair daqui sim, com a minha ajuda, é claro! Se tirares está pedra ai, verás uma paisagem que beira o paraíso! Só não é o paraíso palpável, porque estamos
ainda dentro do inferno! Mas pelos menos vais sentir menos dor... Escutastes bem! Eu disse vais! Tendo em vista que esse que vos fala, estará do lado de fora gozando de total liberdade.
         -Quero saber como você vai passar por esse buraco, depois de aberto, claro!
         -Por um acaso não observaste que estou magrinho? Não me alimento há muito tempo. Mas o mais importante é que consegui me manter vivo. Agora, não me perguntes como consegui esta proeza, pois não saberei responder-lhes. Vamos lá, continues trabalhando! Estou precisando respirar ar fresco!
            João olhou para Pedro, não respondeu nada, mas pensou:
           -Porra! Que cara espaçoso!
        Pedro sorriu, mas preferiu nada falar. João voltou a tentar tirar a pedra. Mas de vez em quando olhava para onde estava Pedro. E este, com as mãos no queixo, sorria enigmaticamente para o amigo de cela. Pela primeira vez ele se aproximou de João. Foi tocar no seu ombro e levou o maior susto.
         -Ô gajo! Tu estás morto! Não consigo tocar-te!
         -Hei! Hei! Peraí! Se tem alguém morto aqui, esse alguém é você! Eu te avisei que você já tinha morrido! Mas você não acreditou! Eu falei! Não falei? Olha só! Volta para o seu canto, que não quero ficar com medo de novo! Não vou ficar com medo não! Eu sei que você é fruto da minha imaginação!
          -Que morto o quê! Estás querendo me confundir? O único morto aqui és tu! Abre logo este buraco para que eu possa cair fora!
           Pedro desabafou e voltou para o seu canto cabisbaixo. Do outro lado João ficou olhando para o amigo de infortúnio. Olhava e continuava sem acreditar no que estava acontecendo. Como nunca acreditou nessas coisas de alma de outro mundo, agora estava passando por uma situação, se não aterradora, pelo menos bizarra. Ficou olhando um para o outro, desconfiados. Pedro não podia aceitar que estivesse morto, e, por sua vez, João apostava que a sua mente estava pregando-lhe uma peça. Depois de algum tempo em total silêncio, Pedro resolveu falar.
           -Ô... Como é mesmo o teu nome?
           -João.”
           -Muito bem, senhor João. Vou prestar-lhes uma ajuda. Como estou magrinho, passarei facilmente pelo buraco da parede. Já o senhor, terá que se arranjar com outra saída.
           -Como assim! Outra saída!Que outra saída? Vou tentar é abrir mais esse buraco! É por aqui que vou escapar!
          -Não vai adiantar! Infelizmente tenho que avisá-lo, que esta ilha é altíssima! Escuta-me: este lado que estás a abrir o buraco está na parte mais alta. Eu sempre tive facilidade de escalar montanhas altas e perigosas, logo para mim não vai ser difícil descer este paredão. A não ser que o amigo tenha esta habilidade. Tens?
          -Infelizmente não. E tenho um complicador a mais: tenho medo de altura.
          -Realmente aí a coisa se complica mesmo. Assim mesmo vou indicar-lhes uma outra rota de fuga. Até conseguires sair daqui, de repente o amigo já tenha perdido o
medo de alturas. Vou indicar-lhes uma saída!
          -Será que eu escutei bem? Vou falou uma saída?
          -Sim! Claro! Outra saída! Mas antes que me perguntes, já adiantando que não sei aonde é. Mas...
          -Espera ai! Você me diz que tem uma saída, mas não sabe aonde é!? É isso? E que mas é esse?
       -Eu não fui muito claro, ó pá. Sei e não sei. Mas posso saber. Tudo bem! Só vou revelar-te o local, quando estiver em liberdade. Prometo que antes de sair eu falo.
          -Está bem. O que é que eu tenho a perder? Você não está me enganando, não é?
          -Enganar? Nunca! Sou um homem de palavra! Podes confiar em mim! Agora me responda uma coisa: o que tu fazias antes de te enjaulares?

                                                 Continua semana que vem...


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