terça-feira, 31 de outubro de 2023

A Minha Casa Não é Essa - Parte 77

 


 Continuando...

        O marido respeitou o seu pedido não a interrompendo.  Frau Eva então começou a caminhar de uma ponta a outra da sala, enquanto o marido olhava-a com um olhar angustiado, dava uma parada no meio do caminho e passava as mãos na cabeça, de frente para trás, parecendo que tentava tirar os pensamentos ruins. Quando parou em frente do marido, dos seus olhos escorreram duas grossas lágrimas. Mesmo sufocada pelo medo que invadia a sua alma, passou a mão no rosto do marido, depois colocou as mãos no seu ombro e disse:

         - Carl, eu não sei como a gente vai se sair dessa. Lá em Berlim conseguimos sair intactos, graças a sua família, principalmente ao seu tio. Mas agora, acho muito difícil sairmos dessa situação que...

         - Que situação, Eva? Já estou ficando preocupado! Assim você me deixa com os nervos em frangalhos! Conta o que está havendo, mulher!

        - Vamos sentar ali na poltrona. – pegou-o pela mão e levou-o até o canto da sala onde estava a poltrona de dois lugares. – Carl, jura que você não vai brigar com o nosso filho?

        - Mas por que jurar? Você sabe que não sou de ralhar com os nossos filhos. Anna é um doce de menina e Joseph, você sabe que eu tenho um carinho especial por ele, porque ele escritinho o meu pai. Olha só a foto dos dois. – apontando para uma moldura que tinha o pai, um pouco antes de morrer, abraçado ao neto. – Esse é um motivo a mais para adorar o meu filho. Como eu teria coragem de bater nele?

        - Então promete.

        - Deve ser alguma coisa muito grave mesmo, para você está desse jeito. Já estou preocupado e nervoso. Mas já que você pede promessa, então está prometido, não vou brigar com nosso filho, seja lá o erro que ele tenha cometido. Se fosse alguma travessura... Pelo seu jeito é mais do que uma simples peraltice.

        - Então se prepara para a bomba. Você se lembra dos amigos do nosso filho, Wagner e Wolf?

        - Claro.  Não saíam da nossa casa.

        - Você se lembra que eles eram judeus?

        - Sim me lembro. E qual é o problema? Naquela época não existia nada contra.

        - É, só que o nosso filho manteve contado, por carta, com eles.

        - Como... Ele deu a nossa localização? É isso?

        - Sim, é isso. E agora, o que é que a gente faz?

        - Eva, temos que sumir daqui o mais rápido possível! Vou falar com o meu tio, agora! Vou informa-lo da situação. Prepara a nossa mudança, com o mínimo que pudermos levar. Só roupa, não se esqueça! Estou indo para ligar para ele.

         - Está bem.

         - Eva, prepara as crianças, porque quando eu voltar, vamos sair daqui.

         - Vamos para onde?

         - Não sei, Eva. Coloca tudo dentro do carro. Nada de malas, para não chamar a atenção. Vou de bicicleta até a cidade. Se vistam com as roupas do dia a dia. Nada que possam chamar a atenção.

          - Carl, estou com medo.

           - Fica calma. Uma simples correspondência pode não dar em nada.

           - Você está falando assim para me deixar mais calma. Você acredita nisso mesmo? É claro que você não acredita.

           Carl saiu sem responder a esposa. Pegou a bicicleta e foi para o centro da cidade, que na verdade não chegava a tanto, era simplesmente um pequeno lugarejo. A distância que ele normalmente fazia, quando não tinha pressa, em vinte minutos, fez em dez. A preocupação estava na garupa. O suor que descia pela sua face não era só causado pelo esforço, vinha acoplado ao medo. Sabia que com toda a garantia que o tio vinha dando, não serviria de nada se descobrissem a ligação deles com os judeus. Nem tinha certeza agora, se o general seu tio viraria às costas para ele, nesse momento tão delicado, para não se comprometer.

          Ele chegou, quase voando, ao posto telefônico. A telefonista olhou-o admirada, pois nunca o vira tão apressado. Falou, mostrando preocupação:

         - Herr Carl, o que houve? O senhor saiu daqui não tem muito tempo!

         - Frau Hanna, – pensou rapidamente no que ia responder, para não levantar suspeitas – é o meu filho, Joseph, que está febril. Mas não deve ser nada demais. Mas a senhora sabe, se tratando de filho, ficamos sempre cheios de preocupações.

         - Comigo também é assim. Ele vai ficar bem. O número é o mesmo?

         - Sim. Pode fazer a ligação, por favor. Vou para cabine.

         - Pode ir.

         Entrou na cabine e a preocupação não desgarrava. Não sabia qual seria a reação do tio. Naquele momento a SS já devia ter interceptado as cartas do filho. No fundo queria acreditar que não, mas era muito difícil àqueles cães farejadores não terem pegado as correspondências. Mas por outro lado podia não ter nada de mais, já que eram crianças se correspondendo. Deixou até escapar um tímido sorriso.

        Olhou para a telefonista e esperou ela dar o sinal para pegar no telefone.  Enquanto isso se lembrava do código, que o próprio tio combinara, para usar em situações de perigo. E esse era o momento para ser usado. O tio além de general era também médico.

         Depois do sinal da telefonista, ele pegou no telefone, com a mão trêmula.

        - Tio. É o Joseph. Ele está com muita febre. O que é que eu faço?

        - Carl, fica calmo. Eu vou para aí.

        - Mas o senhor está distante, tio. Me diz o melhor remédio.

        - Eu preciso ver o menino primeiro. Além de pagar uma visita, já que estou há muito tempo sem vê-los. Vou aproveitar e levar Helga. Fica tranquilo que vai ficar tudo bem. Bota compressa de água fria e espera. Mas apronta o antitérmico. Vou aproveitar um avião que vai descer próximo daí.

        - Está bem tio. Com as suas bênçãos.

        Carl desligou o telefone e ficou pensando no que seria o antitérmico. Não se lembrava desse código. A compressa era para acalmar.

         Ele ficou pensativo por pouco tempo, porque de repente veio o código:

         - Puxa! – pensou – É isso! A mala!

         Mas não sabia porque o tio tinha colocado “apronta o antitérmico” para ser aprontar a mala. Não via relação nenhuma entre mala e antitérmico, mas o importante é que deu certo. Tanto que inconscientemente já tinha tomado as devidas providências.

          Ao sair dali, para não levantar suspeitas, sorriu para a telefonista e falou:

          - Meu tio, que é médico, disse que deve ser apenas um resfriado. Para não nos preocuparmos que ele, por precaução, virá ver o menino.

          - Herr Carl, parece que é sempre a primeira vez que as nossas crianças ficam com febre. Para pai e mãe é sempre assim. Estamos sempre preocupados. Veja só! Não é que já estou ficando preocupada! Mas se um na redondeza fica resfriado, com certeza isso vai passar para os outros, não é? Então, vou me prevenir!

          - É isso mesmo. A senhora está com razão, deve se prevenir. Já ia me esquecendo, está aqui o dinheiro. Está certo?

          - Não, tem troco.

          - Obrigado.

          Ele agradeceu e foi saindo sem olhar para trás. Pegou a bicicleta e zarpou para casa. Até chegar na sua residência a sua cabeça fervilhava de preocupações. Até o dia anterior tinha certeza que a sua segurança e a da família não sofria nenhum risco, pois estava assentada em bases sólidas. Mas em menos de vinte e quatro horas parecia que tudo desmoronava. Sempre acreditou na segurança que o tio dava para ele, mulher e filhos, entretanto a dúvida chegou e semeou o medo. 

.........Continua Semana que vem!

 

terça-feira, 24 de outubro de 2023

A Minha Casa Não é Essa - Parte 76

 


Continuando...

        O filho ficou pensativo, procurando uma forma de como contar a asneira que fizera. Olhava para a mãe, mas sem olhar nos seus olhos, e depois para o chão. Era visível o seu nervosismo. Estava constrangido e muito assustado também. Não sabia até onde poderia colocar em risco a segurança da família. A mãe, em silêncio, olhando-o ternamente, esperou pacientemente que o filho conseguisse desabafar. Quando finalmente ele conseguiu olhar dentro dos olhos da mãe, então resolveu botar tudo para fora, que o estava amargurando.

        - Mãe. Acho que fiz besteira. Mas eu não sabia da origem da senhora.

        - Como você descobriu? – falou, com a voz já alterada, Frau Eva. E os seus olhos perderam rapidamente a doçura de minutos antes.

        - Desculpe mãe. Eu ouvi uma conversa da senhora com o pai. Eu não entendia o porquê dessa mudança.

       - Quando foi isso?

       - Há pouco tempo.

       - Depois que viemos para o campo?

       - Não. Lá em Berlin eu soube.

       - Ficou ouvindo atrás da porta?

       - Não mãe! Eu estava sentado debaixo da sua janela e sem querer ouvi o pai falando que estava com documento novo para a senhora. E que tinha tirado o seu sobrenome judeu, pra não deixar rastro.

       - Mas isso não tem pouco tempo. E a besteira que você falou? Qual foi a besteira?

       - A senhora se lembra de Wagner e Wolf?

       - Claro. Me lembro muito bem dos dois, seus melhores amigos.

       - Então, eu me comunicava com eles.

       - Como é? Você deu a localização nossa para eles? 

       - Mas foi sem querer. Eu queria saber tudo que estava acontecendo na capital. Eu sabia que eram judeus, então queria ficar informado da situação deles.

       - Seu pai tem que saber disso. Acho que vamos ter que sair daqui.

       - Será mãe?

       - A besteira já foi feita, agora temos que dar um jeito para consertar isso.

       Herr Carl tinha ido até o centro da pequena cidade, como fazia, pelo menos, três vezes por semana. Precisava estar em contato com o tio general para ficar informado de tudo que se passava em Berlin. Queria saber como ia a guerra. Mas começou a suspeitar, devido a repetição dos fatos, que as notícias não eram tão verdadeiras assim. Com certeza o tio era obrigado a passa-las recheadas de vitórias no front. Dizia sempre que a Alemanha continuava devastadora. Já dominava quase toda Europa. Mesmo com uma pulga atrás da orelha, ele saía, depois que falava com o tio, com um sorriso de orelha a orelha. Caminhava alguns metros até uma panificadora e comprava alguns pães e doces para agradar os familiares. Quando chegava em casa, a dúvida não existia mais.

        A tarde já caía quando Carl chegou. Entrou sorridente, mas levou uma ducha de água fria quando encontrou a esposa com o semblante carregado. Era um quadro nada, nada compatível com o seu estado de espírito. Estava feliz com a sua pátria. Não que concordasse com o que os nazistas faziam com os judeus, ciganos e outras raças que não fosse ariana, segundo Hitler, a raça pura. – Sargento, qual é a raça pura? – interrompeu a história, Mohammed.

         - Mohammed para mim não existe raça pura. Isso é balela. Até hoje continuam cometendo barbaridades em nome de uma superioridade racial que não existe. É todo mundo igual. Qual raça é superior à outra? As raças vêm se misturando ao longo da existência humana. O teste do DNA está aí para provar. Quando Jesus falou que todos eram irmãos não foi à toa.

         - Ué, Jesus já conhecia o teste de DNA?

         - Sei lá, Mohammed. Como é que vou saber? Mas como ele sabia de tudo, de repente sabia disso também, mas não falou nesses termos, senão o pessoal daquela época ia pirar.

         - É. É mesmo.

         - Não vai continuar com a sua história? Para um sonho, está muito detalhada. Acho que você leu isso em algum lugar.

         - Não sargento, foi sonho mesmo!

         - Você pode ter lido e sonhado depois. Você perdeu a memória, não foi?

         - Isso é fato. Será que li essa história? Eu estava querendo contar, porque me senti na pele daquele menino. Achei que podia ter sido eu, já que o senhor falou de reencarnação, em outra época.

          - Então continua.

          - Então o senhor Carl chegou e encontrou a esposa com o semblante carregado. Isso foi como uma ducha de água fria sobre a sua cabeça. Vinha com a alma feliz, em razão da sua pátria está conseguindo vencer os inimigos. Tinha momentos em que se sentia desconfortável ao saber que outros patrícios estavam dando o seu sangue pela Alemanha, enquanto ele estava ali de braços cruzados. Depois recordava dos ferimentos que sofrera na primeira grande guerra, impossibilitando-o, naquela hora, de ir para a linha de frente. Essa lembrança dava um alento. Mas era só lembrar, que as dores voltavam com toda a força. Um dos ferimentos, bem próximo do coração e que ainda tinha a bala alojada, era para que não esquecesse nunca mais que estivera no inferno. A tristeza abatia-o todas às vezes que a lembrança chegava sem avisar. Mas naquela hora ficou triste por não poder ir à guerra. Temporariamente se esqueceu da carranca que a sua esposa carregava. Deu um sorriso meio sem graça e perguntou da razão daquela expressão tão pesada.

          - Eva, minha querida, o que foi que houve? Cheguei tão alegre pela nossa pátria estar se saindo vitoriosa a cada dia. As notícias do front são animadoras. Acho que essa guerra vai acabar bem antes do que imaginávamos. Então, conta o que está te afligindo.

          - Carl. – fez uma pequena pausa. Mas antes que o marido dissesse alguma coisa, levantou o braço num gesto para que ele esperasse, e continuou, mas antes respirou fundo para aliviar a tensão.

          - Carl, presta atenção. Por favor, não me interrompa. O que vou falar é muito sério. Acho que as coisas vão complicar para o nosso lado.

          - Complicar, como? Está tudo sobre controle, minha querida. Estamos aqui em segurança. Meu tio está garantindo nosso refúgio. Estou ficando preocupado com a sua expressão um tanto carregada. Que jeito é esse tão pessimista?

          - Carl, não é pessimismo. Senta aí na cadeira, deixa-me ficar mais um pouco em silêncio, para ver se me acalmo. A situação é terrível. Não fale nada, por enquanto, me deixa arrumar minhas ideias.

 

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Pensamento de Poeta - As Flores Murcham

 


 

AS FLORES MURCHAM

                                                 - José Timotheo -

 

Quem é que mora do outro lado?

Na ribanceira do céu

Despencam desejos e esperanças

Chuva mata e mata a sede

Afoga e empanturra a terra

Sacia a fome do outro lado?

Lá longe explode chuvas de fogo

Mesmo sem ribanceira, escorrega

Dor e desejo

O sexo não adia a luta

E nem retarda nascimento

Onde mora a dor?

Os lados perdem

Mesmo dentro da vitória

Sempre existem ribanceiras

Rolando sonhos e despencando esperanças

Pode ser um deserto

Mas flores crescem para enfeitar

Quem já foi

E vão todos, deixando só saudade

E ódio

Vê? O ódio se perpetua

Em cada curva do dia

E encontra sempre uma ribanceira

Para rolar

E enterrar o que já foi sonho

O que já foi esperança

Tudo vai para nunca mais

E as flores continuam lá

Tão murchas como

As de outros tempos

São sentinelas da insanidade

                                                      Fim

 

(guerra entre Israel e Hamas – outubro de 2023)