Essa trama é de quem já brigou contra a ditadura. Não acredita? Iam
tomar o poder, para fazer dessa republiqueta um país justo. Justinho nos
moldes deles, isso sim. Omar. Meu amigo Omar. Estou com medo de enfartar
também. Vou trabalhar até os cem anos. Mas já estou pensando aqui com os meus
botões: trabalhar até os cem anos? Como? Até aos setenta já vai ser uma missão
quase que impossível! O que fazer com a saúde no Brasil? Ela está doente,
cara. Não adianta nem plano de saúde. Está tudo nivelado por baixo. O
cara está mal. Tem que fazer uns exames com urgência. Aí o bicho pega. Você só
consegue marcar de um mês para fora. Às vezes alguém te liga e diz que houve
uma desistência. Numa certeza quase certa, o cara que te deu a vaga
morreu antes de fazer os exames. Empacotou na fila de espera. Ninguém vai
desistir depois de esperar um, dois meses. Vai? Omar, essa eu gostaria que você
respondesse. Esse seu mutismo me impressiona. Tem certas situações, que até um
morto se sente incomodado. Ele tem que falar! Tudo bem! Tudo bem! Pelo
jeito você fez um voto de silêncio mesmo. Vou respeitar isso. Omar olha só. Que
maravilha esse céu. Olha como as gaivotas enfeitam esse pedaço de céu. Uma vez
um amigo me perguntou, se eu sabia por que o céu não é branco. Pensei, mas não
soube o que responder. Ele riu e então falou: que se assim fosse, nós não
poderíamos apreciá-las passeando lá em cima. Mas, ri também e falei que Deus
dava um jeitinho, e fazia elas azuis. Deus faz e desfaz. Você acha que perdeu
tudo que aprendeu aqui? Se a gente desperdiçar o aprendizado que tivemos
durante a nossa vida, a vida não tem sentido. É uma perda de tempo. Que Deus é
esse que criou a gente pra passar o que a gente passa e depois pega a nossa
bagagem e joga no lixo? Lá em cima deve ficar tudo contabilizado a nosso favor,
e contra. O que a gente conseguiu realizar bem, fica guardado. O que não
conseguiu, a gente tem que voltar e acertar. Assim faz sentido para mim. E pra
você? Realmente na atual conjuntura perguntar isso, não faz o menor sentido.
Nem te conheci antes de conhecer apenas os seus ossos. Daqui pra frente, pra
mim você pode ser canonizado. São Omar. Quantos santos devem ter por aí, que
fez o diabo em vida e depois foi canonizado? Engraçado. O cara mata, esfola,
rouba e de repente vira santo. Se converteu. Se arrependeu da vida de crimes.
Vira pregador. Está salvo. Vai entrar no reino dos céus. O que ele fez durante
toda a sua vida, de ruim, é esquecido. Pode isso? Aí é mole, não é? Essa deve
ser a teoria dos pilantras. No fundo têm medo do que podem encontrar do outro
lado. Por isso se “arrependem” cinco minutos antes de morrer. Botam um dinheirinho
enrolado na mão e partem para entrar no reino dos céus. Já se sentem sentados
do lado direito do Pai. Omar. Deu tempo de você se arrepender? Nem separou uns
presentinhos para o pedágio? Se não deu... Se fu... Sabe de uma coisa. Só eu
que falo. Já estou com a garganta seca. Só uma cervejinha para aliviar.
Acho que vou deixar você sozinho. Tenho que pegar estrada. Devo achar o
caminho. À tarde daqui a pouco vai embora. Ficar aqui no escuro, vai ser meio
complicado. Já deve ser quatro horas da tarde. Percebeu o tempo que estou aqui
com você? O sol nasceu e eu já estava aqui. Não me pergunte como. Acordei aqui.
E você morreu aqui. De repente fui eu que morri e acordei nesse instante? Será
que esses ossos são meus? Será? Sou apenas espírito agora? Vou embora,
senão vou acabar maluco. Vou deitar um pouco para refrescar a carcaça. Uma onda
acaba de me cobrir. Mais uma. E mais algumas. Perdi a conta. Vou falar com
Omar. Meu Deus! Omar botou a mão no meu ombro! Socorro! Socorro! Acho que me
caguei! Estou sem coragem para abrir os olhos! Respirar fundo. Tenho que
respirar fundo. Estou tremendo dos pés à cabeça. Ele agora está rindo de mim.
Estou sem coragem de olhar pra
cara dele. Apertou meu ombro de novo. E agora? Coragem cara! Coragem!
- Hei. Você está morto? Não está, porque
você está tremendo mais do que vara verde. Vamos cara, levanta!
Ele continua falando comigo. O que é
que eu faço? Vou olhar devagarzinho. Vou falar com ele.
- Omar. Por que você resolveu me
assustar agora? Cara a última coisa que eu queria na vida era ver uma caveira
falar comigo!
- Cara, meu nome não é Omar. De onde você
tirou isso?
- Não é Omar? Aí ficou pior. Meu Deus me dê
coragem! Vou olhar cara a cara com ele! Lá vou eu. Meu Deus o que é isso? Você
não é mais uma caveira?
- Que caveira? Que história é essa? Aí cara
aperta a minha mão. Sou de carne e osso. Porra cara, você pegou muito sol nessa
cachola!
- Sabe. Tinha uma caveira aqui do meu lado.
Ela estava aqui mesmo. As ondas devem ter desenterrado ela. Eu achei aqui logo
pela manhã. Na verdade eu acordei do lado dela. Eu dei o nome a ela de Omar.
Sabe de uma coisa: nos tornamos muito amigos. E agora as ondas devem tê-la
levado de volta para as profundezas.
- Xi cara! Você não está nada bem! Nessa praia
toda, só estamos nós dois. Eu pensei que fosse ficar aqui sozinho. Eu venho
sempre aqui, por que é um lugar de difícil acesso. Por acaso aquele carro ali é
seu?!
- É. Por quê?
- Como você conseguiu chegar até aqui?
- Não sei. Só me lembro que acordei aqui. Parei num
bar. Num posto de gasolina, na estrada... Mas por que a pergunta?
- Essa praia não tem acesso pra carro.
- Como é que é? Mas como cheguei aqui?
- Você é que deve saber. O seu carro deve ser
especial. Pra descer uma pedreira daquela, só mesmo um carro que voe.
- Pedreira? Deve ter algum caminho que você não conhece.
- Não tem. Frequento essa praia há muito tempo. Só vem
aqui, quem gosta de pegar onda, praticar Wind surf, tomar banho sossegado e
trazer uma namorada. Papo estranho esse seu. Uma caveira... Cara você matou
alguém?
- Claro que não! Eu não faria uma coisa dessas! Eu estava
até preocupado, sem saber como explicar essa caveira aqui. Ela pode está
enterrada novamente. A onda veio e me cobriu. Isso aconteceu algumas vezes.
Numa dessa, pode ter levado Omar. A caveira! Vamos cavar pra ver se a gente
encontra a dita cuja?
- Que dita cuja que nada! Lá eu quero saber de caveira!
Deixe-a sossegada! Se é que realmente ela existiu.
- Mas é claro que ela estava aqui! Não estou inventando
não, cara! Pode acreditar em mim!
- Deixa a caveira pra lá! Vamos falar de outra coisa. Será
que o seu carro não veio pelo mar? Isso é uma grande possibilidade. Já pensou
nisso?
- Pensar, eu penso toda hora. Não vejo sentido nenhum,
nessa coisa toda. Trouxeram meu carro até aqui, pra quê?
- Sei lá! Se você não sabe, como vou saber? Como é o seu
nome?
- Hermes.
- O meu é Ivon. Vamos. Levanta daí. Vai acabar virando
caveira. A onda hoje está muito baixa, mas mesmo assim pode te pegar de jeito.
Aí oh! – babau – você se afoga! Vamos aproveitar que o vento está bom. Tá tudo
de bom para o esporte aquático que eu mais amo: Wind surf. Está afim?
- Está maluco? Se eu subir nisso aí, não saio nem do lugar!
- Eu te explico. Te dou umas aulinhas de grátis. Você pega
mole, mole. Vamos lá! É muito legal! Você vai gostar! Coragem cara! Vou dar uma
volta pra você ver.
- Como é o seu nome mesmo?
- Ivon.
- Ivon. Antigamente tinha um cantor com esse nome.
- Cantor? Cara, eu não canto nada! Estou indo pra água.
Presta atenção nos meus movimentos. Observa como é o lance. Depois que você
experimentar, não vai querer outra coisa.
- Vamos ver. Do jeito que a minha vida anda, caminhar por
cima do mar, pode ser uma aventura sem perigo algum.
- Você está preocupado à toa. O mar vai acabar com o seu
estresse.
- Você falou o mar. Eu me lembrei de Omar. Você tem certeza
que não quer cavar, para confirmar o que eu te falei?
- Cara não tô afim mesmo! E lá eu quero saber de caveira!
Cara você está apaixonado!
- Que apaixonado o quê! Tá maluco? Uma caveira que botei o
nome de Omar, você me diz que estou apaixonado! Qual é cara! Apaixonado por uma
caveira?
- Você é bicha?
- Porra! Claro que não!
- Escuta só. Não importa o nome que você deu pra sua
caveira! Porra cara, nem caveira você quer levar a sério?
- Levar a sério? Qual é?
- Não estou querendo duvidar da sua masculinidade! A
verdade é que você botou o nome masculino numa caveira, que você não sabe se é
homem ou mulher.
- E qual é o problema disso? Cara Omar é meu amigo! É uma
caveira! Eu podia tê-la chamado de Mara! Encontrei um ombro amigo, essa é a
verdade. Você nem imagina a paciência dele ao me ouvir.
- Claro. Nunca vi caveira falante.
- Não é essa a questão. Omar não é qualquer caveira.
- E tem caveira diferente? Caveira é caveira. E ponto
final.
- Omar é diferente, porque com ele eu consegui começar a
perder o medo de defunto. E até acho que ele é psicólogo. Cara ele me deixou
falar! Eu encontrei um ombro amigo!
- Essa é demais. Caveira não fala cara. Ombro amigo? Só tem
osso. E uma caveira psicóloga. É muita maluquice junta. Agora vamos para
o que interessa: vou pra água. Presta atenção. Grava tudo que eu fizer.
Continua semana que vem...
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