terça-feira, 20 de novembro de 2018

A História de Helô - Parte 7

Continuando...


Enquanto a madre superiora mantinha-se calada, apenas observando-a, Amélia procurava encontrar alguma coisa que tivesse feito de errado, ocasionando esse chamado. Sabia que teria um tempo suficiente para descobrir, pois a madre ficaria algum tempo bebendo aquele seu momento de sofrimento. Às vezes ela tinha impressão de ver escorrer alguma coisa viscosa do canto da sua boca e, de tempo em tempo, perceber um sorriso, típico das pessoas sádicas, aflorar levemente. Pensou, mas nada veio à mente. De antemão sabia que tinha alguma coisa e que não deveria ser boa, tendo em vista que sempre que alguém era chamado à sua presença era por algum motivo grave, mas pra ela todo e qualquer motivo era sempre grave.
          Amélia estava se sentindo desconfortável ali em frente da toda poderosa. Acabou arriando a cabeça novamente pois não conseguiu, mais uma vez, se manter firme ante aquele par de olhos azuis tenebrosos. Esfregou as mãos nervosamente. Queria falar, mas não conseguia e não  podia. Tinha que esperar. Era só esperar. Depois de algum tempo, num silêncio tumular, a voz da madre ecoou:
          - Amélia! Amélia! Olha-me nos olhos! Isso! Assim está melhor! Você está se sentindo culpada de alguma coisa?
          Amélia balançou a cabeça negando, pois a voz não ousou sair, e voltou a tremer. Sentia mais medo da madre quando ela falava suavemente. Para quem não a conhecia, poderia achar que estava na presença de um anjo de carne e osso, mas estava mais para osso. Um osso duro de roer.  Amélia tinha medo porque a conhecia profundamente e há muito tempo. Sabia muito bem que, por detrás daquela docilidade, daquela cara bonita, ali morava um coração endurecido, um ser que se alimentava do sofrimento alheio. E era nesses momentos de docilidade que a maldade se apresentava com mais evidência. Quando ela falava com rispidez, era mais dócil. Isso era um contrassenso.
          A madre, depois da pergunta, deu a entender que tinha aceitado a negação de Amélia, pois olhou nos seus olhos, balançou a cabeça e deixou à mostra os dentes brancos, num sorriso enigmático. A princípio Amélia achou que ia ser dispensada, entretanto essa falsa esperança aparecia todas as vezes que era chamada. No fundo ela sabia que não ia ser diferente tanto que, mais uma vez, “alguma coisa” soprou na sua orelha dizendo que isso não podia ser verdade. Na verdade era a sua intuição que estava de prontidão. E não deu outra: a madre, não permitindo que o seu sorriso cínico escapasse da boca e sem desviar o olhar de Amélia, esticou a mão direita, abriu a gaveta e retirou uma palmatória. Amélia quase caiu da cadeira. O seu corpo foi sacudido por um forte tremor. Sabia o que a esperava, pois essa não tinha sido a primeira vez e, pelo jeito, não ia ser a última. E com todo o medo que estava sentindo, num esforço hercúleo, conseguiu esticar o braço e colocou a palma da mão para cima. A madre se levantou, bateu levemente com a palmatória na própria mão e em seguida desferiu um golpe violento na mão da menina. O golpe foi tão forte que imprensou a mão de Amélia na mesa. Depois repetiu o gesto, sempre com muito ódio, por mais duas vezes. Amélia não chorou. Aguentou firme. Segurou a lágrima valentemente. Sabia que, se descuidasse e deixasse uma só vir à tona, o castigo seria dobrado. Não recolheu a mão, esperando a madre guardar a palmatória.  E foi ficando com o braço esticado, esperando. A madre parecia que não tinha pressa. Naquele instante o medo de olhar para a mão era proporcional ao medo de olhar para a madre. Sabia que ela estava esperando a sua reação ao olhar para a mão, que com certeza estava mutilada, e iria beber mais aquele instante da sua dor. Era o seu alimento preferido: a dor alheia. Respirou fundo e foi buscar um pouquinho de coragem em algum lugar que ela não sabia onde, porém sempre conseguia essa migalha de força que fazia com que ela olhasse para a mão, mas antes tentou fechá-la e, como das outras vezes, não conseguiu. Finalmente olhou. Olhou e engoliu o choro mais uma vez. A mão estava deformada de tanto inchaço. Não quis encarar a madre, mas sabia que ela estava transbordante de felicidade pela sua dor.
           Alguns minutos, Amélia ficou sem coragem para recolher o braço. A dor era aguda. Não só a mão doía, a alma também e parecia ser maior. Recusava-se a mirar a Madre Joana, mas de repente uma mão forte apertou o seu braço com tanta força, tanta força que a obrigou, de qualquer jeito, a olhá-la cara a cara. Quando os seus olhos se encontraram, Amélia estremeceu de pavor. A megera sorria de satisfação. Dos seus lábios escorriam um líquido viscoso que parecia fel. Amélia estava com um aperto no coração. Teve um pressentimento de que aquele dia era o último da sua vida, mas subitamente a boca que carregava o riso começou a ficar distorcida. As suas feições foram se transformando numa massa disforme. Os seus olhos já estavam injetados de sangue. Num repente ela deu um soco na mesa e destilou todo o seu ódio em cima de Amélia:
          - Sua desgraçada! Você sabe muito bem que não pode ficar falando a toda hora com a menina! E principalmente falar certas coisas! Escuta bem: se soltar essa língua, vocês duas vão dar um passeio sem volta! Estamos conversadas?
          Amélia ficou pálida. A dor na mão, naquele momento, era o que doía menos. Não podia nem imaginar se acontecesse alguma coisa com a menina. Tinha que se calar e se afastar de Helô para não prejudicá-la. Ela era a única razão da sua vida. Precisava pagar o preço do afastamento para preservá-la. Mais uma vez não conseguiu falar nada, apenas balançou a cabeça afirmativamente. Então a madre, já mais calma, continuou no seu discurso:
          - Escuta bem. Olha pra mim. Você não vai perder uma palavra que vou dizer. Grave isso aí dentro dessa cabecinha: já temos planos para Helô, para quando ela completar os dezoitos anos. Até lá ela vai ficar preservada, mas pra isso você tem que cumprir com a sua parte. E esqueça a história dela virar freira, lá fora é que está o futuro dela. E você vai continuar aqui. Pode, desde já, ir desfazendo os seus planos. Pode jogar fora a mala que já está arrumada dentro da sua cabeça. Você não vai atrás dela, de jeito nenhum. Eu sei de tudo que você planeja. Eu escuto mais do que você imagina. Agora, pode ir embora. Sem comentários. 
................Continua semana que vem!

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