E lá foi Tião para a labuta. A sua atenção agora estava mais
apurada. Os seus olhos pareciam que enxergavam mais. O olfato distinguia
qualquer cheiro. Ficou até enjoado, coisa que só aconteceu no início da sua
profissão. Parecia que o estômago tinha dado um nó. Estava se achando
diferente. E pensou alto: - Realmente agora sou outra pessoa. Estou mi sintindo
diferente. Que droga! Me sentindo! Sou poeta e também sou pintor. Tenho
sensibilidade. Acho que falei direito: sensibilidade. Os artista são assim
mermo. Tenho que ver se é mermo, que se fala. Moreno só fala assim. A
convivência com eles é que me faz falar errado. Tenho que me ligar: pensar
antes de falar. – Tirou do bolso um lenço velho e cobriu o nariz. Com o seu
ancinho improvisado, foi espalhando o lixo. Vasculhou aquele pedacinho de
imundície e não encontrou nada do que ele queria. O que não queria, era o que
ia dar para comprar o seu pão de cada dia. Ia alimentar o seu corpo, não o seu
ego. Pensou duas vezes e começou a catar o lixo que dava para gerar dinheiro.
Antes de jogar dentro de um saco um pedaço de alumínio, pensou: - Ouvi dizer
que poeta morre de fome. E pintor também. Tenho que organizar a minha catação.
Agora que posso ficar famoso, não posso bater as bota. - O estômago
roncou. Era mais uma manhã
que Tião gastava da sua vida. Ele se sentia um gastador de manhãs. Se bem que
desde a sua descoberta para as letras e artes plásticas, suas manhãs passaram a
feder menos. O seu objetivo de vida era outro. Na realidade, nunca tinha tido
um objetivo. Agora se sentia melhor, mas tinha uma coisa que o incomodava:
alguém dentro da sua cabeça o acusava de ladrão. Nesse momento sentia um
desespero danado, mas aos poucos conseguia se equilibrar novamente. Lutava
diariamente contra esse dedo inquisidor. Às vezes gritava para o acusador, que
o seu achado não tinha dono e que ele era o seu autor. Ou pelo menos coautor.
Comeu alguma coisa e pegou novamente o
seu ancinho improvisado e voltou a revirar o lixo. Mas a sua cabeça também
estava sendo revirada. Interrompeu o que estava fazendo e ficou olhando os
amigos de infortúnio. Observou-os durante algum tempo. A sua cabeça fervilhava.
Olhava aquilo tudo a sua volta e estava começando a se sentir incomodado. Antes
se achava meio lixo, como os amigos, mas naquele momento percebia que nascia
outra pessoa dentro de si. Estava se sentindo melhor do que eles. Viu quando
Moreno tirou uma garrafa de cachaça, que estava escondida no meio do papelão,
no seu carrinho e ofereceu aos amigos. Cada um tomou a sua golada e fez cara
feia. Mesmo se achando superior a eles, ficou com água na boca. Olhou-os, mas
Moreno ignorou a sua presença. De repente o tal sentimento de superioridade deu
uma queda. Perguntou-se do porquê de Moreno não ter lhe oferecido um gole de
pinga. Aquilo fez com que se sentisse incomodado. Viu os três conversando
animados e ele continuava só. Achou que devia ser por ter se tornado artista.
Então preferiu ficar só.
Mais um dia que ia rolando pela
esteira do tempo. E aquele dia não estava sendo bom. Tião pensou, depois de ter
virado artista, que fosse ser feliz todos os dias. Mas, com as suas atuais
exigências, não estava sendo. Tinha que encontrar alguma coisa que valorizasse
mais a sua alma de artista. Olhou para um pedaço de tijolo, pegou-o e colocou
debaixo da sua bunda. Ficou sentado olhando para o nada. Estava desanimado.
Colocou o seu ancinho improvisado descansando, pegou um pedaço de cabo de
vassoura e começou a cutucar o lixo. Pelo jeito não estava procurando nada,
apenas espetava o lixo, como se estivesse duelando com um adversário. A sua
espada de cabo de vassoura, cravava no peito da raiva e do medo. No fundo
sempre se sentiu engolido por aquele mundo podre, mas agora ele podia
enfrenta-lo de frente, pois agora tinha arma. E começou a bater mais forte, com
receio de ser derrotado. Não podia perder e não ia deixar isso acontecer.
Levantou-se e partiu para dentro do seu adversário. Bateu, bateu, bateu... Já
estava cansado de tanto bater e o oponente não cair. Os seus movimentos
cresceram a ponto de chamar a atenção dos amigos. Os três foram se chegando
silenciosamente, para não interromper o que quer que fosse aquilo. Se fosse
briga com algum desconhecido, eles iriam ajudá-lo. Mas naquele tipo de luta não
sabiam o que fazer. Sentaram-se os três e ficaram apreciando o combate. Tião
espetava a sua espada na barriga do lixo e esperava para ver se ia haver alguma
reação. Foi espaçando a sua investida, tendo em vista que o seu gás já estava
se acabando. Suava em
bica. Parecia que ia desmanchar. Estava tão envolvido com o
seu duelo, que não percebeu que tinha plateia. Tentou lutar mais um pouco, mas
acabou caindo vencido pelo cansaço. Só voltou à realidade quando uma voz soou
atrás de si, próxima ao seu ouvido: -Tião, meu brodi! Você istá aprendendo a
brigá com ispada?- assustou-se, mas, mesmo cansado, se levantou rapidamente e
se deparou com os três amigos olhando para ele. De imediato não conseguiu falar
nada, pois o cansaço tinha sugado quase todo o seu ar. A luta tinha sido
terrível. E o seu inimigo mesmo atacado infinitas vezes, não morria nunca. Suas
forças se multiplicavam feito vírus, quase não dando para os amigos entenderem
o que falava. A final respondeu: - Não. Nem sei se luto. E se luto, não sei se
é em vão. Os
amigos sorriram, mas sem nada entender, e Moreno falou mais um pouco: - Aí
brodi! Tô ti achandu meiu macambuzu! Você não podi mais ficá assim não! Você
agora é poeta! Você agora é pintô! Iscreve alguma coisa pra genti! Vai que
ispanta a tristeza!
Tião não sabia direito o que
responder, mas tentou: - Qualqué hora. Qualqué hora. Vocês vão ficá? Eu tô
indo. – pegou os seus pertences, colocou-os em cima do burrinho sem rabo, e foi
saindo. Mas até sumir das vistas dos amigos, foi ouvindo um ou outro gritando:
- Até amanhã, poeta! Lá vai o nossu pintô! – continuou na sua marcha, sem muita
pressa, sem responder verbalmente. Apenas batia com a mão. Quem estivesse
próximo dele, ia ver que a sua tristeza tinha temporariamente ficado de canto.
Pois sorria e os seus olhos brilhavam, iluminando corpo e alma. Pensou em
parar, mas resolveu continuar a sua caminhada, mesmo sabendo que ao chegar em
casa, ia voltar a ficar triste. A solidão estava de tocaia no seu
barraco. O único jeito
quando chegasse, era tomar uma pinga, cozinhar um miojo e se jogar na tosca
cama.
Tião abriu a porta, acendeu a luz e se
jogou numa cadeira. Pensou em tomar banho, mas lembrou-se que não tinha caído
água na caixa. Levantou-se, pegou um balde, que tinha guardado cheio, e se
lavou como pode. Depois fez o que tinha pensado: tomou uma cana, fez o miojo e
foi para a cama. Olhou para o teto do barraco, com vários furos, e se lembrou
da mulher. Rapidamente seus olhos se encheram d’água. Não sabia ou pensava que
não sabia o porquê dela tê-lo abandonado. Na verdade ela se sentia, há muito
tempo, relegada ao abandono. E ele tinha consciência disso. Às vezes tentava
mascarar a verdade, mas não tinha como fugir dela. Sabia que tinha feito muitas
promessas e não tinha conseguido cumprir nenhuma. Ela então não aguentou, teve
coragem e foi embora, levando as crianças. Nem bilhete deixou. Lembrou-se de
tudo. Pior que a lembrança não desgrudava nunca. Era sua companheira
inseparável de todas as noites. Deitava com ela e acordava com ela. Tião
carregava essa tristeza pra cima e pra baixo. Mas nada fazia para mudar esse
quadro. De repente deixou que um sorriso aflorasse. Pensou: - Agora sou
pintor e poeta! Quem sabe ela volta pra mim! Posso ficar famoso! E famoso tem
dinheiro! Mas tenho que ter mais poemas e quadros, sem nomes, pois não quero me
sentir um ladrão. - Depois que a palavra, ladrão ecoou dentro da sua cabeça, se
lembrou de uma conversa que tinha ouvido, enquanto pegava papelão num
supermercado perto, mas não tinha entendido direito, e que era mais ou menos
assim: - Você soube da última? Roubaram petróleo! É isso mesmo! Roubaram
petróleo! Pode ser que tenham roubado uma fábrica de petróleo! Sei lá! Uma casa
de petróleo? Não sei direito. Só sei mesmo é que alguém disse que não deve ser
roubo. Falou que já que o petróleo está debaixo da terra, ele não tem
assinatura, então pertence a Deus. E com certeza Deus nunca vai reclamar. O que
o Homem lá de cima tem demais, é riqueza. É ou não é? Então, a limpeza foi
feita e está todo mundo limpo. Entendeu? – Tião ficou pensando nisso, como se
estivesse tirando um peso das costas. – Então se alguém pega alguma coisa que
não tem assinatura, é dono. Foi o que pensei. Então eu estou certo. - ficou
pensando nisso quase a noite inteira. Quando começou a pegar no sono, o sol já
estava passando pelos buracos das paredes do seu barraco. Um raio mais atrevido
se instalou no seu olho. Tião começou a se revirar na cama. Mudou-se de lugar
várias vezes, mas não adiantou nada. Eram tantos buracos, que parecia que o sol
inteiro resolveu se deitar na sua cama. Pobre Tião, não teve outra opção, senão
se levantar. Mas antes de lavar o rosto, reclamou do astro rei: - Acho o sol
muito egoísta. Porque ele não se levanta sozinho e muda de direção? Penso que
ele só procura a mim. A favela toda dorme, mas eu sou o único a tá de pé com
ele. Isso é muita sacanagem! – O pensamento de Tião, que já saía pela boca,
vinha carregado de revolta. Mas passado alguns segundos, acabou sorrindo e
falou, abaixando o tom de voz: - Issu vai mudá! Issu vai mudá! – pegou o que
tinha pra pegar e já estava ele a caminho do lixão. De repente parou, rodou nos
calcanhares e voltou para casa. Decidiu naquele momento que ia ficar mais um
pouquinho no seu barraco. Ia chegar mais tarde no lixão. Sempre foi o primeiro,
mas a partir daquele momento não seria mais. Como agora era uma pessoa
importante, ia chegar sempre depois dos outros.
O sol já estava de rachar. Os amigos
de Tião já estavam no cata- cata desde, às sete da manhã. A
preocupação era clara com a ausência do amigo. Ele sempre foi o primeiro a
chegar, mas até o momento não tinha dado as caras. Moreno comentou, com ar de
preocupação:
- Aí, qui será qui aconteceu com nossu
brodi? Tô preocupadão!
- Podi tá doenti. Pegou a febri du
musquito. – afirmou Tiziu.
- Vira essa boca prá lá! Tá gorandu? -
falou irritado Ximbica.
Enquanto os três trocavam ideias a
respeito do amigo, não perceberam que Tião estava chegando, arrastando o seu
burrinho sem rabo. Só se deram conta da presença dele, quando ouviram um oi,
meio murcho. Ninguém ousou falar nada, somente acompanharam, com os olhos, o
seu trajeto até um dos seus pontos prediletos. Moreno colocou uma das mãos no
ombro de Ximbica e falou, com ar preocupado: - Aí. Num tô gostando nada, nada
dissu. U nossu brodi num tá legal. Agora qui tá ficandu famosu, ficô tristi?
Num tô gostandu mermo! – o amigo não respondeu, mas balançou a cabeça
afirmativamente, dando a entender que concordava com tudo que ele disse.
Tião parou com o seu carrinho no ponto
que sempre parava e observou que o lixo despejado ali, era recente. Pegou o seu
ancinho e começou a fazer a sua garimpagem. Papelão tinha bastante. Depois
achou um pedaço de cano de cobre e outro de chumbo. Encontrou também um pedaço
de uma janela de alumínio. Algum objeto brilhou no meio daquela “lixarada”
toda. Com cuidado foi tirando o lixo de cima, até chegar ao objeto. Era um anel
com uma pedra azul. Não sabia se era ouro ou qualquer metal sem valor. Mas
pegou e colocou no bolso. Mesmo não sendo, no momento, a sua prioridade catar
papelão, metal... tinha que garantir o pão nosso de cada dia. Até que esse dia
estava sendo bom, pois o seu carrinho já estava bem cheinho. Pensou em parar,
mas resolveu garimpar mais um pouquinho. Mal acabou de espalhar uma camada de
lixo e um embrulho chamou a sua atenção. Não era pequeno e estava bem
amarrado. Pegou-o com um
pouco de medo. – Vai que tem uma bomba aí dentro! – pensou. Com o seu ancinho
empurrou o embrulho de um lado e para o outro, se mantendo um pouco afastado.
Já que não explodiu, cuidadosamente pegou-o e rasgou o saco plástico
transparente que o envolvia. Colocou-o no chão e começou a observá-lo. A
principio ficou com medo de ir tirando às várias camadas de folhas de jornal.
Podia ter alguma coisa nos seu interior ou ter apenas folhas de jornal. A sua
curiosidade estava aguçada. Acabou perdendo o medo e também a paciência. Foi
retirando a fita crepe e rasgando o jornal, raivosamente. Mas de repente parou
e ficou olhando fixamente para o que surgiu à sua frente. Os seus olhos
pareciam que iam pular das órbitas. A voracidade para abrir o pacote, deu lugar
a inércia. Foi um bom tempo até voltar a dar sinal de vida. Enquanto continuava
com o olhar fixo no interior do embrulho, foi arriando o traseiro até encostar
a bunda no seu banco improvisado. Ainda não tinha dado mostra do que ia fazer
com o que estava vendo. O seu medo era explícito. A sua pele de coloração
amarronzada, tinha ganhado um tom amarelado. Estava desbotado da cabeça aos
pés. A sua palidez foi se acentuando. Um suor viscoso foi brotando no rosto e
se espalhando pelo corpo. As suas mãos tremiam. O coração saltava dentro do
peito, feito cavalo xucro. Teve a sensação que ia desmaiar. Mesmo vivendo numa
comunidade, onde a violência era o café da manhã, o almoço e o jantar, mesmo
assim nunca tinha passado a mão numa arma de fogo, ainda mais com ela no seu
colo. Sentiu um nó na garganta, só em pensar que podia estar carregada. Com os
nervos a flor da pele, colocou os dedos em cima dela. – Se estiver carregada?
Pode disparar. Tenho que ficar atento. – pensou, enquanto passava as costas da
mão na testa. Olhou o tambor e viu que estava cheio de balas. Com cuidado,
pegando-o pelo cabo, levantou-o. Nisso caiu um envelope próximo aos seus pés.
Parecia uma carta. Pegou o envelope e leu. Tinha um destinatário.
-Para você.
Achou estranho e esboçou até um
sorriso. Nunca tinha recebido carta na vida. Abriu-o e encontrou dentro uma
folha de caderno dobrada. Desdobrou-a e leu, com um par de olhos arregalados.
- Comprei a arma, mas não tive coragem
de usá-la. Ensaiei inúmeras vezes dar um tiro na minha cabeça, mas não
consegui. Você vai perguntar, com certeza, o motivo e eu vou dizer: VERGONHA.
Isso mesmo, VERGONHA! Mas depois fiquei sem vergonha.
Continua semana que vem...
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