segunda-feira, 25 de julho de 2016

O Catador de Histórias - Parte 3

Continuando...
E lá foi Tião para a labuta. A sua atenção agora estava mais apurada. Os seus olhos pareciam que enxergavam mais. O olfato distinguia qualquer cheiro. Ficou até enjoado, coisa que só aconteceu no início da sua profissão. Parecia que o estômago tinha dado um nó. Estava se achando diferente. E pensou alto: - Realmente agora sou outra pessoa. Estou mi sintindo diferente. Que droga! Me sentindo! Sou poeta e também sou pintor. Tenho sensibilidade. Acho que falei direito: sensibilidade. Os artista são assim mermo. Tenho que ver se é mermo, que se fala. Moreno só fala assim. A convivência com eles é que me faz falar errado. Tenho que me ligar: pensar antes de falar. – Tirou do bolso um lenço velho e cobriu o nariz. Com o seu ancinho improvisado, foi espalhando o lixo.  Vasculhou aquele pedacinho de imundície e não encontrou nada do que ele queria. O que não queria, era o que ia dar para comprar o seu pão de cada dia. Ia alimentar o seu corpo, não o seu ego. Pensou duas vezes e começou a catar o lixo que dava para gerar dinheiro. Antes de jogar dentro de um saco um pedaço de alumínio, pensou: - Ouvi dizer que poeta morre de fome. E pintor também. Tenho que organizar a minha catação. Agora que posso ficar famoso, não posso bater as bota. - O estômago roncou.  Era mais uma manhã que Tião gastava da sua vida. Ele se sentia um gastador de manhãs. Se bem que desde a sua descoberta para as letras e artes plásticas, suas manhãs passaram a feder menos. O seu objetivo de vida era outro. Na realidade, nunca tinha tido um objetivo. Agora se sentia melhor, mas tinha uma coisa que o incomodava: alguém dentro da sua cabeça o acusava de ladrão. Nesse momento sentia um desespero danado, mas aos poucos conseguia se equilibrar novamente. Lutava diariamente contra esse dedo inquisidor. Às vezes gritava para o acusador, que o seu achado não tinha dono e que ele era o seu autor. Ou pelo menos coautor.
           Comeu alguma coisa e pegou novamente o seu ancinho improvisado e voltou a revirar o lixo. Mas a sua cabeça também estava sendo revirada. Interrompeu o que estava fazendo e ficou olhando os amigos de infortúnio. Observou-os durante algum tempo. A sua cabeça fervilhava. Olhava aquilo tudo a sua volta e estava começando a se sentir incomodado. Antes se achava meio lixo, como os amigos, mas naquele momento percebia que nascia outra pessoa dentro de si. Estava se sentindo melhor do que eles. Viu quando Moreno tirou uma garrafa de cachaça, que estava escondida no meio do papelão, no seu carrinho e ofereceu aos amigos. Cada um tomou a sua golada e fez cara feia. Mesmo se achando superior a eles, ficou com água na boca. Olhou-os, mas Moreno ignorou a sua presença. De repente o tal sentimento de superioridade deu uma queda. Perguntou-se do porquê de Moreno não ter lhe oferecido um gole de pinga. Aquilo fez com que se sentisse incomodado. Viu os três conversando animados e ele continuava só. Achou que devia ser por ter se tornado artista. Então preferiu ficar só.
          Mais um dia que ia rolando pela esteira do tempo. E aquele dia não estava sendo bom. Tião pensou, depois de ter virado artista, que fosse ser feliz todos os dias. Mas, com as suas atuais exigências, não estava sendo. Tinha que encontrar alguma coisa que valorizasse mais a sua alma de artista. Olhou para um pedaço de tijolo, pegou-o e colocou debaixo da sua bunda. Ficou sentado olhando para o nada. Estava desanimado. Colocou o seu ancinho improvisado descansando, pegou um pedaço de cabo de vassoura e começou a cutucar o lixo. Pelo jeito não estava procurando nada, apenas espetava o lixo, como se estivesse duelando com um adversário. A sua espada de cabo de vassoura, cravava no peito da raiva e do medo. No fundo sempre se sentiu engolido por aquele mundo podre, mas agora ele podia enfrenta-lo de frente, pois agora tinha arma. E começou a bater mais forte, com receio de ser derrotado. Não podia perder e não ia deixar isso acontecer. Levantou-se e partiu para dentro do seu adversário. Bateu, bateu, bateu... Já estava cansado de tanto bater e o oponente não cair. Os seus movimentos cresceram a ponto de chamar a atenção dos amigos. Os três foram se chegando silenciosamente, para não interromper o que quer que fosse aquilo. Se fosse briga com algum desconhecido, eles iriam ajudá-lo. Mas naquele tipo de luta não sabiam o que fazer. Sentaram-se os três e ficaram apreciando o combate. Tião espetava a sua espada na barriga do lixo e esperava para ver se ia haver alguma reação. Foi espaçando a sua investida, tendo em vista que o seu gás já estava se acabando. Suava em bica. Parecia que ia desmanchar. Estava tão envolvido com o seu duelo, que não percebeu que tinha plateia. Tentou lutar mais um pouco, mas acabou caindo vencido pelo cansaço. Só voltou à realidade quando uma voz soou atrás de si, próxima ao seu ouvido: -Tião, meu brodi! Você istá aprendendo a brigá com ispada?- assustou-se, mas, mesmo cansado, se levantou rapidamente e se deparou com os três amigos olhando para ele. De imediato não conseguiu falar nada, pois o cansaço tinha sugado quase todo o seu ar. A luta tinha sido terrível. E o seu inimigo mesmo atacado infinitas vezes, não morria nunca. Suas forças se multiplicavam feito vírus, quase não dando para os amigos entenderem o que falava. A final respondeu: - Não. Nem sei se luto. E se luto, não sei se é em vão. Os amigos sorriram, mas sem nada entender, e Moreno falou mais um pouco: - Aí brodi! Tô ti achandu meiu macambuzu! Você não podi mais ficá assim não! Você agora é poeta! Você agora é pintô! Iscreve alguma coisa pra genti! Vai que ispanta a tristeza!
          Tião não sabia direito o que responder, mas tentou: - Qualqué hora. Qualqué hora. Vocês vão ficá? Eu tô indo. – pegou os seus pertences, colocou-os em cima do burrinho sem rabo, e foi saindo. Mas até sumir das vistas dos amigos, foi ouvindo um ou outro gritando: - Até amanhã, poeta! Lá vai o nossu pintô! – continuou na sua marcha, sem muita pressa, sem responder verbalmente. Apenas batia com a mão. Quem estivesse próximo dele, ia ver que a sua tristeza tinha temporariamente ficado de canto. Pois sorria e os seus olhos brilhavam, iluminando corpo e alma. Pensou em parar, mas resolveu continuar a sua caminhada, mesmo sabendo que ao chegar em casa, ia voltar a ficar triste. A solidão estava de tocaia no seu barraco.  O único jeito quando chegasse, era tomar uma pinga, cozinhar um miojo e se jogar na tosca cama.
            Tião abriu a porta, acendeu a luz e se jogou numa cadeira. Pensou em tomar banho, mas lembrou-se que não tinha caído água na caixa. Levantou-se, pegou um balde, que tinha guardado cheio, e se lavou como pode. Depois fez o que tinha pensado: tomou uma cana, fez o miojo e foi para a cama. Olhou para o teto do barraco, com vários furos, e se lembrou da mulher. Rapidamente seus olhos se encheram d’água. Não sabia ou pensava que não sabia o porquê dela tê-lo abandonado. Na verdade ela se sentia, há muito tempo, relegada ao abandono. E ele tinha consciência disso. Às vezes tentava mascarar a verdade, mas não tinha como fugir dela. Sabia que tinha feito muitas promessas e não tinha conseguido cumprir nenhuma. Ela então não aguentou, teve coragem e foi embora, levando as crianças. Nem bilhete deixou. Lembrou-se de tudo. Pior que a lembrança não desgrudava nunca. Era sua companheira inseparável de todas as noites. Deitava com ela e acordava com ela. Tião carregava essa tristeza pra cima e pra baixo. Mas nada fazia para mudar esse quadro. De repente deixou que um sorriso aflorasse. Pensou: - Agora sou pintor e poeta! Quem sabe ela volta pra mim! Posso ficar famoso! E famoso tem dinheiro! Mas tenho que ter mais poemas e quadros, sem nomes, pois não quero me sentir um ladrão. - Depois que a palavra, ladrão ecoou dentro da sua cabeça, se lembrou de uma conversa que tinha ouvido, enquanto pegava papelão num supermercado perto, mas não tinha entendido direito, e que era mais ou menos assim: - Você soube da última? Roubaram petróleo! É isso mesmo! Roubaram petróleo! Pode ser que tenham roubado uma fábrica de petróleo! Sei lá! Uma casa de petróleo? Não sei direito. Só sei mesmo é que alguém disse que não deve ser roubo. Falou que já que o petróleo está debaixo da terra, ele não tem assinatura, então pertence a Deus. E com certeza Deus nunca vai reclamar. O que o Homem lá de cima tem demais, é riqueza. É ou não é? Então, a limpeza foi feita e está todo mundo limpo. Entendeu? – Tião ficou pensando nisso, como se estivesse tirando um peso das costas. – Então se alguém pega alguma coisa que não tem assinatura, é dono. Foi o que pensei. Então eu estou certo. - ficou pensando nisso quase a noite inteira. Quando começou a pegar no sono, o sol já estava passando pelos buracos das paredes do seu barraco. Um raio mais atrevido se instalou no seu olho. Tião começou a se revirar na cama. Mudou-se de lugar várias vezes, mas não adiantou nada. Eram tantos buracos, que parecia que o sol inteiro resolveu se deitar na sua cama. Pobre Tião, não teve outra opção, senão se levantar. Mas antes de lavar o rosto, reclamou do astro rei: - Acho o sol muito egoísta. Porque ele não se levanta sozinho e muda de direção? Penso que ele só procura a mim. A favela toda dorme, mas eu sou o único a tá de pé com ele. Isso é muita sacanagem! – O pensamento de Tião, que já saía pela boca, vinha carregado de revolta. Mas passado alguns segundos, acabou sorrindo e falou, abaixando o tom de voz: - Issu vai mudá! Issu vai mudá! – pegou o que tinha pra pegar e já estava ele a caminho do lixão. De repente parou, rodou nos calcanhares e voltou para casa. Decidiu naquele momento que ia ficar mais um pouquinho no seu barraco. Ia chegar mais tarde no lixão. Sempre foi o primeiro, mas a partir daquele momento não seria mais. Como agora era uma pessoa importante, ia chegar sempre depois dos outros.
              O sol já estava de rachar. Os amigos de Tião já estavam no cata-       cata desde, às sete da manhã. A preocupação era clara com a ausência do amigo. Ele sempre foi o primeiro a chegar, mas até o momento não tinha dado as caras. Moreno comentou, com ar de preocupação:
          - Aí, qui será qui aconteceu com nossu brodi? Tô preocupadão!
          - Podi tá doenti. Pegou a febri du musquito. – afirmou Tiziu.
          - Vira essa boca prá lá! Tá gorandu? - falou irritado Ximbica.
         Enquanto os três trocavam ideias a respeito do amigo, não perceberam que Tião estava chegando, arrastando o seu burrinho sem rabo. Só se deram conta da presença dele, quando ouviram um oi, meio murcho. Ninguém ousou falar nada, somente acompanharam, com os olhos, o seu trajeto até um dos seus pontos prediletos. Moreno colocou uma das mãos no ombro de Ximbica e falou, com ar preocupado: - Aí. Num tô gostando nada, nada dissu. U nossu brodi num tá legal. Agora qui tá ficandu famosu, ficô tristi? Num tô gostandu mermo! – o amigo não respondeu, mas balançou a cabeça afirmativamente, dando a entender que concordava com tudo que ele disse.
           Tião parou com o seu carrinho no ponto que sempre parava e observou que o lixo despejado ali, era recente. Pegou o seu ancinho e começou a fazer a sua garimpagem. Papelão tinha bastante. Depois achou um pedaço de cano de cobre e outro de chumbo. Encontrou também um pedaço de uma janela de alumínio. Algum objeto brilhou no meio daquela “lixarada” toda. Com cuidado foi tirando o lixo de cima, até chegar ao objeto. Era um anel com uma pedra azul. Não sabia se era ouro ou qualquer metal sem valor. Mas pegou e colocou no bolso. Mesmo não sendo, no momento, a sua prioridade catar papelão, metal... tinha que garantir o pão nosso de cada dia. Até que esse dia estava sendo bom, pois o seu carrinho já estava bem cheinho. Pensou em parar, mas resolveu garimpar mais um pouquinho. Mal acabou de espalhar uma camada de lixo e um embrulho chamou a sua atenção. Não era pequeno e estava bem amarrado.  Pegou-o com um pouco de medo. – Vai que tem uma bomba aí dentro! – pensou. Com o seu ancinho empurrou o embrulho de um lado e para o outro, se mantendo um pouco afastado. Já que não explodiu, cuidadosamente pegou-o e rasgou o saco plástico transparente que o envolvia. Colocou-o no chão e começou a observá-lo. A principio ficou com medo de ir tirando às várias camadas de folhas de jornal. Podia ter alguma coisa nos seu interior ou ter apenas folhas de jornal. A sua curiosidade estava aguçada. Acabou perdendo o medo e também a paciência. Foi retirando a fita crepe e rasgando o jornal, raivosamente. Mas de repente parou e ficou olhando fixamente para o que surgiu à sua frente. Os seus olhos pareciam que iam pular das órbitas. A voracidade para abrir o pacote, deu lugar a inércia. Foi um bom tempo até voltar a dar sinal de vida. Enquanto continuava com o olhar fixo no interior do embrulho, foi arriando o traseiro até encostar a bunda no seu banco improvisado. Ainda não tinha dado mostra do que ia fazer com o que estava vendo. O seu medo era explícito. A sua pele de coloração amarronzada, tinha ganhado um tom amarelado. Estava desbotado da cabeça aos pés. A sua palidez foi se acentuando. Um suor viscoso foi brotando no rosto e se espalhando pelo corpo. As suas mãos tremiam. O coração saltava dentro do peito, feito cavalo xucro. Teve a sensação que ia desmaiar. Mesmo vivendo numa comunidade, onde a violência era o café da manhã, o almoço e o jantar, mesmo assim nunca tinha passado a mão numa arma de fogo, ainda mais com ela no seu colo. Sentiu um nó na garganta, só em pensar que podia estar carregada. Com os nervos a flor da pele, colocou os dedos em cima dela. – Se estiver carregada? Pode disparar. Tenho que ficar atento. – pensou, enquanto passava as costas da mão na testa. Olhou o tambor e viu que estava cheio de balas. Com cuidado, pegando-o pelo cabo, levantou-o. Nisso caiu um envelope próximo aos seus pés. Parecia uma carta. Pegou o envelope e leu. Tinha um destinatário.
          -Para você.
          Achou estranho e esboçou até um sorriso. Nunca tinha recebido carta na vida. Abriu-o e encontrou dentro uma folha de caderno dobrada. Desdobrou-a e leu, com um par de olhos arregalados.

          - Comprei a arma, mas não tive coragem de usá-la. Ensaiei inúmeras vezes dar um tiro na minha cabeça, mas não consegui. Você vai perguntar, com certeza, o motivo e eu vou dizer: VERGONHA. Isso mesmo, VERGONHA! Mas depois fiquei sem vergonha.
            Continua semana que vem...

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