Uma montanha de lixo olhava para Tião.
Não dava para saber se ele devolvia esse olhar com a mesma intensidade. Talvez
nem percebesse essa troca de olhares. Era uma coisa instintiva. Somente um
olhar de catador de lixo? Será? Podia ser um gesto inconsciente mesmo. Um olhar
sem muita importância? Quem sabe? Mas o lixo, não, encarava-o com vontade de
devorá-lo. Essa era a sensação que aquela montoeira de rejeitos, passava para
quem, com asco, mirasse os olhos do lixão. Parecia que ali estavam todas
as imperfeições do homem. Mas Tião não. Quem olhasse para ele, com
profundidade, achava que o seu olhar sugeria algo mais. Não vou dizer que
aquilo podia ser amor. Estava mais para respeito. Era dali que ele tirava o seu
sustento. Era papelão, garrafa pet, latinha de cerveja, de refrigerante, de
suco... Qualquer coisa que pudesse ser transformada em dinheiro. Ele se
misturava ao lixo, mas não era lixo. Porém pensou muitas vezes que aquele
cheiro não ia larga-lo nunca. Parecia que estava pregado não só no seu corpo,
mas até na sua alma.
Tião andava pra baixo e pra cima
empurrando o seu “burrinho sem rabo.” Começava cedinho e parava somente ao
anoitecer. Ele era assim. Às vezes achava que não ia aquentar aquilo por muito
tempo. Pensou até em mudar de vida. Mudar como? Não sabia como. Não conseguia
se enxergar fazendo outra coisa. Era a sua vida. Mas pensou que podia ficar
doente um dia. Pois assim
era pra todo mundo que vivia daquele jeito. Entretanto, mais na frente, aquela
dúvida sumia. Achava estranho nunca ter ficado doente. Nem alergia tinha.
Parecia que era de pedra. Muitos catadores iguais a ele já tinham até morrido:
uns com complicações pulmonares, outros com infecções intestinais e mais alguns
contaminados com substâncias tóxicas. Mas ele continuava ali firme: nem gripe
pegava. Ele era de uma época que não se usava nem luva pra mexer no lixo. Se
machucava, mas o corte cicatrizava sem precisar de nenhum medicamento. Esse era
o Tião. Um dia alguém disse que ele tinha pegado resistência. Não sabia bem o
que era isso, mas acabou rindo. Agora até que se protegia. Viu outras pessoas
que iam chegando usando luvas, acabou aderindo também. Usava luvas e uma roupa
que, aparentemente, afastava-o do contato com o lixo. Às vezes ficava pensando
em como era forte e achava que aquela fortaleza toda, veio com ele lá do
sertão.
Nunca tinha parado, conscientemente,
para olhar aquela montoeira de lixo, como se devia olhar. Talvez um jeito mais
romântico de ver o que o sustentava. Então
resolveu que hoje ia ser diferente. Com mais de vinte anos catando o que
pudesse transformar em dinheiro, nunca tinha olhado aquele conjunto todo. Só
olhava mesmo o local onde pudesse encontrar qualquer coisa valiosa que pudesse
render alguns trocados. Começou,
então a andar em torno da montanha. De repente achou que o lixo falava com ele.
Até música ele ouviu. - Devia ser de uns CDs quebrados – pensou. Mas ela vinha
e ia embora. Achou que era de um cd quebrado, que estava coberto de lama. Ficou
chateado porque não conseguiu identificar de quem era a gravação. Devia ser por
isso que não identificou também a música. Depois ouviu alguém falar alguma
coisa. Não conseguiu saber do que se tratava. – Será que estou ficando maluco? – se
questionou. Olhou, olhou e achou um papel enrolado. Abriu-o e leu o seu
conteúdo.
-Lábios trêmulos
Vermelhos e carnudos
Mãos geladas
Logo, logo sem vida
Lábios...
Não tinha o restante. O papel estava
rasgado. Nem o nome do autor dava para saber. – E se achasse o restante? –
pensou. Todo papel enrolado, ele iria abrir. Resolveu passar aquele dia
procurando. Esqueceu até de catar as coisas que pudesse transformar em dinheiro. Naquele
momento, essa busca estava sendo mais interessante. De repente, a mais
importante da sua vida. Não sabia o porquê, mas foi o que mudou o trajeto do
seu tempo. Nunca tinha tido um dia tão diferente. Não conseguiu achar o
restante daquele escrito. Mas encontrou mais um papel amassado com um recado
estranho.
-“Hoje será o meu fim. Não sei se me
encontrará com vida. Peço perdão pelo que te fiz passar. Vou te contar quem
fez...”
E o bilhete estava incompleto. Ficou parado bastante tempo com uma
pulga atrás da orelha. Tentou achar o complemento. Foi em vão. – Quem escreveu
esse bilhete? - ficou se perguntando por muito tempo. Era sem dúvida uma carta
de um suicida. Ele devia estar com a alma atormentada. Coitado. Não chorava há
muito tempo, mas naquele momento sentiu uma lágrima deslizar pela face. Os seus
poucos amigos, que estavam passando na hora, ficaram curiosos ao vê-lo chorar e
foram ao seu encontro.
- Aí Tião, tá com dor de corno? –
pilheriou um. Outro se chegou e falou no pé do ouvido: – Aí meu brodi! O que se
passa com tu? – Tião respondeu, ainda enxugando um fio de lágrima. – Foi...
Nada de mais. Deixa pra lá. Foi só esse bilhete que achei aqui.
O amigo pegou o papel amarrotado,
fingiu que leu e amassou de novo. Bateu no ombro de Tião e comentou. – Que "brabera" irmão! – saiu rapidinho para que o amigo não percebesse que tinha
ficado emocionado, com a emoção dele. Tião vasculhou novamente o local onde
tinha encontrado o tal papel, tentando achar o outro pedaço, mas foi em vão. Procurou um
lugar para sentar. Tinha que pensar. Lembrou-se de que nunca tinha sentado
perto daquele lixo fétido. Sempre se afastava com o seu carrinho e arranjava
algum lugar para descansar e comer alguma coisa. Naquele dia estava sendo
diferente. Pegou uma cadeira com três pernas, calçou-a com uma lata velha de
tinta e ficou olhando para o nada. – O que levaria uma pessoa a tirar a própria
vida? – ficou com a pergunta zanzando dentro da cachola. – Podia não ser nada
ou muita coisa. – respondeu sem nenhuma convicção.
Um
caminhão grande derramou mais algumas toneladas de lixo, próximo dele. Tião
olhou-o e ficou pensando no que poderia encontrar naquela lixarada toda. Não
pensou em objetos valiosos. Pela primeira vez, em anos como catador de lixo,
direcionou sua atenção apenas para qualquer bolinha de papel amassada, que
pudesse trazer o restante do bilhete do suicida. Mas um brilho chamou sua
atenção. Se tivesse sido no dia anterior, já tinha ido ao seu encontro, mas
agora não. Apenas passou o pé por cima e cobriu-o. Ficou surpreso com o que
fez. O olhar de cobiça tinha se afastado. O que tinha mudado no Tião? Retornou
para onde tinha sentado e voltou para sua contemplação. Naquele momento, o lixo
já não era tão asqueroso. Alguma coisa despencou do alto do monte e veio
rolando até próximo aos seus pés. Era um cilindro de lata, com diâmetro,
aproximado, de oito centímetros e comprimento de, um metro, mais ou menos. Tião
se sentiu um imã. – Como podia um negócio daquele vir rolando, de uma montanha
de lixo, e quase tocar no seu pé? –
pensou, deixando escapar um sorriso. Não titubeou, pegou o objeto e abriu-o.
Observou que no seu interior, tinha um tecido enrolado. A sua curiosidade não
deixou por menos: levou-o a esticá-lo, imediatamente, ali no chão. Ficou
surpreso quando apareceu uma pintura. Era uma tela inacabada. Só tinha um
castelo, numa montanha. Não sabia dizer se o autor desistiu de continuar, ou se
havia perdido. Procurou para ver se tinha nome, mas não achou. Ele sorriu e
engoliu um bocado de saliva. Se sentiu satisfeito com o achado. – Aquela
pintura podia ser sua. Não tinha nome. Podia botar o seu: Tião. E em letras
maiúsculas! – pensou cheio de orgulho. Pelo menos teria alguma coisa que
pudesse dizer que era seu. Ficou olhando e imaginando o restante do quadro.
Podia não saber pintar, mas sabia pensar. Imaginou uma linda cachoeira. Uma
mata bem verdinha. Flores se espalhando em volta do castelo. Um gramado que se
perdia na distância. Lembrou que nunca tinha ido a uma montanha. Não devia ser
igual aquele morro onde morava. De jeito nenhum. Os casebres pareciam mais com
restos de bombardeio. Aquela lembrança inundou a sua alma de tristeza. Tinha
ouvido muita gente dizer para se ter orgulho de morar numa favela. Como ter
orgulho? Orgulho de quê? A pergunta dava chicotadas na sua cabeça. Alguns que
falavam sobre isso, já não eram mais favelados. Se lembrou de um vizinho. Se não
estava enganado, tinha ganhado na loteria. Não era muito, mas foi o suficiente
para ele sair no dia seguinte. Ninguém nunca mais ouviu falar dele. Se tivesse
orgulho, permaneceria por lá.
Tião pegou sua caneta, que na verdade
era metade de uma, e escreveu o seu nome no cantinho. Enrolou e colocou
novamente dentro do cilindro. Lembrou-se de que já tinha visto um quadro e que,
no canto direito da tela, trazia o nome de uma pessoa. Não era uma tela de
tecido, mas assim mesmo tinha uma assinatura. Sentiu-se orgulhoso. Alguma coisa
na sua vida ia ter a sua assinatura. Não
seria um roubo... Tem muita gente assinando e desviando muita grana da nação
e... Não é justificativa,
mas Tião achou que alguém não teve coragem de assumir a paternidade daquela
obra, logo ele poderia adotar um órfão. Já, em se tratando de propina, muita
gente assina, não assume a autoria, mas rouba. Concluiu que não estava
roubando.
Tião abriu mais uma vez o cilindro e
pegou a tela, desenrolou-a e ficou apreciando a obra. Andou de um lado para o
outro, várias vezes.
Acabou chamando a atenção dos seus amigos. Curiosos, se
aproximaram.
- E aí Tião, achou o que mais? –
perguntou um deles.
Ele quis responder, mas apenas
gaguejou alguma coisa ininteligível. Não conseguiu falar mesmo, apenas abriu
mais a tela e mostrou-a. Um quê de espanto desenhou-se nas caras. As trocas de
olhares se revezavam. O mutismo geral acabou trazendo tranquilidade para Tião.
Conseguiu encarar os amigos e deixar escapar um sorriso. Com a descontração
chegando, um deles arriscou perguntar alguma coisa.
- Tião! Di quem é issu?
Tião não respondeu de pronto. O seu
rosto se iluminou e apontou para o cantinho direito da tela e depois falou
baixinho: - É meu. Olha o meu nome. - Um olhar de espanto caiu em cima do
quadro. Tião sentiu que ali nascia um artista. Estava realmente se achando um
pintor. Já estava acreditando que tinha sido ele o autor daquela tela pela
metade. Ia ficar importante. Os amigos iam olhar para ele com respeito. A
família não ia mais vê-lo como um fracassado. Só não sabia como convencer a
todos que era um pintor. Mas isso ia pensar depois. Nisso foi interrompido por
um deles.
- Meu brodi! Aí! Aonde tá o restu du
quadru? Aqui só tem um pedaçu! Faltou tinta? Mas tu pinta mermo? Nunca soubi!
Tião pensou um pouquinho antes de
responder. Não sabia o que dizer. Mas arriscou alguma coisa.
- Aí Moreno! Sabe que eu também não
sabia? Foi de repente! Quando dei conta, tava lá no quadro esse casarão! É um
castelo! Agora tenho que
esperar pra vê como vai ser o restante do quadro!
Já comecei a sacar algumas coisa. Tipo, um tremendo gramado!
- Também achu! Vai ficá manero! Já
pensô? Olha só: botaí uns boizinhu. Cabritu também pega bem! Bota capim. Os boi
e os cabritu tem qui pastá!
Tião sorriu satisfeito. Sentiu firmeza
no papo com os amigos. Eles confirmaram a sua autoria da pintura. Isso acendeu
um sorriso maior na sua alma. Conversaram bastante tempo. Aí se deu conta que
nunca tinha acontecido isso. Quase ninguém falava com ele assim, durante tanto
tempo. Agora estavam todos interessados na sua conversa. O bate papo estava tão
bom, que se esqueceram da vida. Temporariamente ficaram desligados do lixo. E
isso era coisa rara. Mas alguém se lembrou de que tinha que fazer dinheiro e trouxe
todo mundo para cair na real. Deram um tchau para Tião, seguido de um tapinha
no ombro, acompanhado de um sorriso, e cada um pegou o seu caminho. Tião
percebeu que os caras estavam se sentindo importantes, porque achavam que
tinham um amigo importante. Sorriu, enquanto enrolava a tela e a colocava
dentro do cilindro. Depois resolveu dar um dia de folga para a sua vida. Não ia
catar mais lixo nenhum naquele dia. Saiu com o seu achado debaixo do braço e
tomou o caminho de casa. Ia pensando. Pensou nos escritos que tinha achado.
Nenhum deles tinha nome. Abriu um por um. O do suicida fez com que ele se
arrepiasse todo. Rasgou-o e jogou-o para o alto. Olhou os pedacinhos caindo
pelo caminho, não percebeu que estava sujando a sua estrada, mas sentiu a sensação
de estar se livrando de um lixo. Olhou a sua volta e não se sentiu culpado:
todo mundo larga a sua falta de educação por onde anda, logo, ele não ia ser
diferente. Continuou a sua caminhada. Um pensamento estranho surgiu na sua
mente.
...Continua na semana que vem...
Nenhum comentário:
Postar um comentário