quarta-feira, 13 de julho de 2016

O Catador de Histórias - Parte 1

- Lá vamos nós juntos em uma nova aventura. Conto com a presença de vocês, todas as semanas, para acompanharem essa estória!

               O CATADOR DE HISTÓRIAS

     - José Timotheo -

                  Uma montanha de lixo olhava para Tião. Não dava para saber se ele devolvia esse olhar com a mesma intensidade. Talvez nem percebesse essa troca de olhares. Era uma coisa instintiva. Somente um olhar de catador de lixo? Será? Podia ser um gesto inconsciente mesmo. Um olhar sem muita importância? Quem sabe? Mas o lixo, não, encarava-o com vontade de devorá-lo. Essa era a sensação que aquela montoeira de rejeitos, passava para quem, com asco, mirasse os olhos do lixão. Parecia que ali estavam todas as imperfeições do homem. Mas Tião não. Quem olhasse para ele, com profundidade, achava que o seu olhar sugeria algo mais. Não vou dizer que aquilo podia ser amor. Estava mais para respeito. Era dali que ele tirava o seu sustento. Era papelão, garrafa pet, latinha de cerveja, de refrigerante, de suco... Qualquer coisa que pudesse ser transformada em dinheiro. Ele se misturava ao lixo, mas não era lixo. Porém pensou muitas vezes que aquele cheiro não ia larga-lo nunca. Parecia que estava pregado não só no seu corpo, mas até na sua alma.
                Tião andava pra baixo e pra cima empurrando o seu “burrinho sem rabo.” Começava cedinho e parava somente ao anoitecer. Ele era assim. Às vezes achava que não ia aquentar aquilo por muito tempo. Pensou até em mudar de vida. Mudar como? Não sabia como. Não conseguia se enxergar fazendo outra coisa. Era a sua vida. Mas pensou que podia ficar doente um dia.  Pois assim era pra todo mundo que vivia daquele jeito. Entretanto, mais na frente, aquela dúvida sumia. Achava estranho nunca ter ficado doente. Nem alergia tinha. Parecia que era de pedra. Muitos catadores iguais a ele já tinham até morrido: uns com complicações pulmonares, outros com infecções intestinais e mais alguns contaminados com substâncias tóxicas. Mas ele continuava ali firme: nem gripe pegava. Ele era de uma época que não se usava nem luva pra mexer no lixo. Se machucava, mas o corte cicatrizava sem precisar de nenhum medicamento. Esse era o Tião. Um dia alguém disse que ele tinha pegado resistência. Não sabia bem o que era isso, mas acabou rindo. Agora até que se protegia. Viu outras pessoas que iam chegando usando luvas, acabou aderindo também. Usava luvas e uma roupa que, aparentemente, afastava-o do contato com o lixo. Às vezes ficava pensando em como era forte e achava que aquela fortaleza toda, veio com ele lá do sertão. 
          Nunca tinha parado, conscientemente, para olhar aquela montoeira de lixo, como se devia olhar. Talvez um jeito mais romântico de ver o que o sustentava.  Então resolveu que hoje ia ser diferente. Com mais de vinte anos catando o que pudesse transformar em dinheiro, nunca tinha olhado aquele conjunto todo. Só olhava mesmo o local onde pudesse encontrar qualquer coisa valiosa que pudesse render alguns trocados.  Começou, então a andar em torno da montanha. De repente achou que o lixo falava com ele. Até música ele ouviu. - Devia ser de uns CDs quebrados – pensou. Mas ela vinha e ia embora. Achou que era de um cd quebrado, que estava coberto de lama. Ficou chateado porque não conseguiu identificar de quem era a gravação. Devia ser por isso que não identificou também a música. Depois ouviu alguém falar alguma coisa. Não conseguiu saber do que se tratava. – Será que estou ficando maluco? – se questionou. Olhou, olhou e achou um papel enrolado. Abriu-o e leu o seu conteúdo.
            -Lábios trêmulos
             Vermelhos e carnudos
             Mãos geladas
             Logo, logo sem vida
             Lábios...
          Não tinha o restante. O papel estava rasgado. Nem o nome do autor dava para saber. – E se achasse o restante? – pensou. Todo papel enrolado, ele iria abrir. Resolveu passar aquele dia procurando. Esqueceu até de catar as coisas que pudesse transformar em dinheiro. Naquele momento, essa busca estava sendo mais interessante. De repente, a mais importante da sua vida. Não sabia o porquê, mas foi o que mudou o trajeto do seu tempo. Nunca tinha tido um dia tão diferente. Não conseguiu achar o restante daquele escrito. Mas encontrou mais um papel amassado com um recado estranho.
          -“Hoje será o meu fim. Não sei se me encontrará com vida. Peço perdão pelo que te fiz passar. Vou te contar quem fez...”
         E o bilhete estava incompleto.  Ficou parado bastante tempo com uma pulga atrás da orelha. Tentou achar o complemento. Foi em vão. – Quem escreveu esse bilhete? - ficou se perguntando por muito tempo. Era sem dúvida uma carta de um suicida. Ele devia estar com a alma atormentada. Coitado. Não chorava há muito tempo, mas naquele momento sentiu uma lágrima deslizar pela face. Os seus poucos amigos, que estavam passando na hora, ficaram curiosos ao vê-lo chorar e foram ao seu encontro.
         - Aí Tião, tá com dor de corno? – pilheriou um. Outro se chegou e falou no pé do ouvido: – Aí meu brodi! O que se passa com tu? – Tião respondeu, ainda enxugando um fio de lágrima. – Foi... Nada de mais. Deixa pra lá. Foi só esse bilhete que achei aqui.
          O amigo pegou o papel amarrotado, fingiu que leu e amassou de novo. Bateu no ombro de Tião e comentou. – Que "brabera" irmão! – saiu rapidinho para que o amigo não percebesse que tinha ficado emocionado, com a emoção dele. Tião vasculhou novamente o local onde tinha encontrado o tal papel, tentando achar o outro pedaço, mas foi em vão. Procurou um lugar para sentar. Tinha que pensar. Lembrou-se de que nunca tinha sentado perto daquele lixo fétido. Sempre se afastava com o seu carrinho e arranjava algum lugar para descansar e comer alguma coisa. Naquele dia estava sendo diferente. Pegou uma cadeira com três pernas, calçou-a com uma lata velha de tinta e ficou olhando para o nada. – O que levaria uma pessoa a tirar a própria vida? – ficou com a pergunta zanzando dentro da cachola. – Podia não ser nada ou muita coisa. – respondeu sem nenhuma convicção.
           Um caminhão grande derramou mais algumas toneladas de lixo, próximo dele. Tião olhou-o e ficou pensando no que poderia encontrar naquela lixarada toda. Não pensou em objetos valiosos. Pela primeira vez, em anos como catador de lixo, direcionou sua atenção apenas para qualquer bolinha de papel amassada, que pudesse trazer o restante do bilhete do suicida. Mas um brilho chamou sua atenção. Se tivesse sido no dia anterior, já tinha ido ao seu encontro, mas agora não. Apenas passou o pé por cima e cobriu-o. Ficou surpreso com o que fez. O olhar de cobiça tinha se afastado. O que tinha mudado no Tião? Retornou para onde tinha sentado e voltou para sua contemplação. Naquele momento, o lixo já não era tão asqueroso. Alguma coisa despencou do alto do monte e veio rolando até próximo aos seus pés. Era um cilindro de lata, com diâmetro, aproximado, de oito centímetros e comprimento de, um metro, mais ou menos. Tião se sentiu um imã. – Como podia um negócio daquele vir rolando, de uma montanha de lixo, e quase tocar no seu pé?  – pensou, deixando escapar um sorriso. Não titubeou, pegou o objeto e abriu-o. Observou que no seu interior, tinha um tecido enrolado. A sua curiosidade não deixou por menos: levou-o a esticá-lo, imediatamente, ali no chão. Ficou surpreso quando apareceu uma pintura. Era uma tela inacabada. Só tinha um castelo, numa montanha. Não sabia dizer se o autor desistiu de continuar, ou se havia perdido. Procurou para ver se tinha nome, mas não achou. Ele sorriu e engoliu um bocado de saliva. Se sentiu satisfeito com o achado. – Aquela pintura podia ser sua. Não tinha nome. Podia botar o seu: Tião. E em letras maiúsculas! – pensou cheio de orgulho. Pelo menos teria alguma coisa que pudesse dizer que era seu. Ficou olhando e imaginando o restante do quadro. Podia não saber pintar, mas sabia pensar. Imaginou uma linda cachoeira. Uma mata bem verdinha. Flores se espalhando em volta do castelo. Um gramado que se perdia na distância. Lembrou que nunca tinha ido a uma montanha. Não devia ser igual aquele morro onde morava. De jeito nenhum. Os casebres pareciam mais com restos de bombardeio. Aquela lembrança inundou a sua alma de tristeza. Tinha ouvido muita gente dizer para se ter orgulho de morar numa favela. Como ter orgulho? Orgulho de quê? A pergunta dava chicotadas na sua cabeça. Alguns que falavam sobre isso, já não eram mais favelados.  Se lembrou de um vizinho. Se não estava enganado, tinha ganhado na loteria. Não era muito, mas foi o suficiente para ele sair no dia seguinte. Ninguém nunca mais ouviu falar dele. Se tivesse orgulho, permaneceria por lá.
           Tião pegou sua caneta, que na verdade era metade de uma, e escreveu o seu nome no cantinho. Enrolou e colocou novamente dentro do cilindro. Lembrou-se de que já tinha visto um quadro e que, no canto direito da tela, trazia o nome de uma pessoa. Não era uma tela de tecido, mas assim mesmo tinha uma assinatura. Sentiu-se orgulhoso. Alguma coisa na sua vida ia ter a sua assinatura.  Não seria um roubo... Tem muita gente assinando e desviando muita grana da nação e...  Não é justificativa, mas Tião achou que alguém não teve coragem de assumir a paternidade daquela obra, logo ele poderia adotar um órfão. Já, em se tratando de propina, muita gente assina, não assume a autoria, mas rouba. Concluiu que não estava roubando. 
           Tião abriu mais uma vez o cilindro e pegou a tela, desenrolou-a e ficou apreciando a obra. Andou de um lado para o outro, várias vezes.
Acabou chamando a atenção dos seus amigos. Curiosos, se aproximaram.
          - E aí Tião, achou o que mais? – perguntou um deles.
          Ele quis responder, mas apenas gaguejou alguma coisa ininteligível. Não conseguiu falar mesmo, apenas abriu mais a tela e mostrou-a. Um quê de espanto desenhou-se nas caras. As trocas de olhares se revezavam. O mutismo geral acabou trazendo tranquilidade para Tião. Conseguiu encarar os amigos e deixar escapar um sorriso. Com a descontração chegando, um deles arriscou perguntar alguma coisa.
          - Tião! Di quem é issu?
          Tião não respondeu de pronto. O seu rosto se iluminou e apontou para o cantinho direito da tela e depois falou baixinho: - É meu. Olha o meu nome. - Um olhar de espanto caiu em cima do quadro. Tião sentiu que ali nascia um artista. Estava realmente se achando um pintor. Já estava acreditando que tinha sido ele o autor daquela tela pela metade. Ia ficar importante. Os amigos iam olhar para ele com respeito. A família não ia mais vê-lo como um fracassado. Só não sabia como convencer a todos que era um pintor. Mas isso ia pensar depois. Nisso foi interrompido por um deles.
          - Meu brodi! Aí! Aonde tá o restu du quadru? Aqui só tem um pedaçu! Faltou tinta? Mas tu pinta mermo? Nunca soubi!
         Tião pensou um pouquinho antes de responder. Não sabia o que dizer. Mas arriscou alguma coisa.
         - Aí Moreno! Sabe que eu também não sabia? Foi de repente! Quando dei conta, tava lá no quadro esse casarão! É um castelo!  Agora tenho que esperar pra  como vai ser o restante do quadro! Já comecei a sacar algumas coisa. Tipo, um tremendo gramado!
         - Também achu! Vai ficá manero! Já pensô? Olha só: botaí uns boizinhu. Cabritu também pega bem! Bota capim. Os boi e os cabritu tem qui pastá!

         Tião sorriu satisfeito. Sentiu firmeza no papo com os amigos. Eles confirmaram a sua autoria da pintura. Isso acendeu um sorriso maior na sua alma. Conversaram bastante tempo. Aí se deu conta que nunca tinha acontecido isso. Quase ninguém falava com ele assim, durante tanto tempo. Agora estavam todos interessados na sua conversa. O bate papo estava tão bom, que se esqueceram da vida. Temporariamente ficaram desligados do lixo. E isso era coisa rara. Mas alguém se lembrou de que tinha que fazer dinheiro e trouxe todo mundo para cair na real. Deram um tchau para Tião, seguido de um tapinha no ombro, acompanhado de um sorriso, e cada um pegou o seu caminho. Tião percebeu que os caras estavam se sentindo importantes, porque achavam que tinham um amigo importante. Sorriu, enquanto enrolava a tela e a colocava dentro do cilindro. Depois resolveu dar um dia de folga para a sua vida. Não ia catar mais lixo nenhum naquele dia. Saiu com o seu achado debaixo do braço e tomou o caminho de casa. Ia pensando. Pensou nos escritos que tinha achado. Nenhum deles tinha nome. Abriu um por um. O do suicida fez com que ele se arrepiasse todo. Rasgou-o e jogou-o para o alto. Olhou os pedacinhos caindo pelo caminho, não percebeu que estava sujando a sua estrada, mas sentiu a sensação de estar se livrando de um lixo. Olhou a sua volta e não se sentiu culpado: todo mundo larga a sua falta de educação por onde anda, logo, ele não ia ser diferente. Continuou a sua caminhada. Um pensamento estranho surgiu na sua mente.
                          ...Continua na semana que vem...

Nenhum comentário:

Postar um comentário