- E se eu pintar tudo? Posso arranjar
tinta e fazer uma floresta do lado do castelo! Aí todo mundo vai saber que a
pintura é minha! Vou voltar pru lixão! A gente sempre acha umas lata com resto
de tinta por lá!
E assim Tião fez: girou nos
calcanhares e voltou para o lixão. Os amigos viram quando ele retornou com a
sua carroça. Ele passou e
não falou com ninguém. Procurou um lugar afastado dos outros catadores. Não foi
difícil a sua missão, logo achou uma lata de tinta, mas não soube identificar a
cor. Ela estava bem cheia. Não se preocupou em abri-la naquele momento. Depois
que chegasse à sua casa, faria isso. Tinha que, de qualquer jeito, achar outras
latas. Essa era a sua meta e não desviaria a sua rota em hipótese alguma. – Um
pintor que se preze, não pinta com uma cor só! – pensou, tentando transformar em
verdade uma fantasia. E ele foi em frente, na sua busca. Depois de muita
procura, Tião recolheu mais algumas latas, com algum resto de tinta, para
engordar o seu acervo. Encontrou também alguns pincéis gastos. Achou que aquilo
daria para torná-lo um pintor. Um artista plástico. Estava acreditando piamente naquele
sonho. Voltou rapidamente para casa. Passou pelos amigos e apenas bateu com a
mão.
O sol já invadia o seu barraco. Tião
se espreguiçou e viu as tiras de sol bordando o seu chão. Levantou-se rápido e
pensou logo no dia que ia ter: um dia dedicado ao seu quadro. Não ia para o
lixão. Nem pensou em tomar café, pegou a tela e prendeu-a na sua única parede
que ainda estava sem buracos. Pegou as latas de tinta e foi abrindo uma a uma.
Encontrou na primeira, a única que estava completamente cheia, uma cor parecida
com azul. Não soube identificar que azul era aquele. Encontrou nas outras latas
um pouco de verde, de vermelho, de branco e muito pouco mesmo de marrom. Entusiasmou-se ao ver o verde. Ia
fazer logo o seu gramado. Pegou uma trincha e passou em toda a parte que estava
sem tinta. Achou meio estranho, mas mesmo assim se sentiu orgulhoso da sua
primeira obra. O gramado estava pronto. Só não sabia como ia colocar as
árvores.
-
Como é que vou colocar as árvores agora? Ainda tem boi, cavalo, cabrito pra
entrar aí também! E a cachoeira?
Ficou pensando alto. Falava com a
tela, esperando que ela respondesse alguma coisa a ele. Quem sabe uma sugestão.
Andava de um lado para o outro sem encontrar saída. Depois de muito peregrinar
diante da tela, lembrou-se de umas revistas. Quem sabe não encontraria algumas
paisagens. Começou a desfolhar as revistas. Foram várias. Não sabia o porquê de
guardar todas àquelas revistas, já que nunca lia nenhuma. Finalmente encontrou
alguma coisa que o agradou: uma floresta, com uma imensa cachoeira ao fundo. Os
seus olhos encheram-se d’água. Só não escorreu, feito a água da cachoeira. Mas
lá estava ele diante da solução para o término da sua obra. Já estava realmente
se achando o pai daquele quadro. E lá foi ele com um pincel em uma das mãos e
na outra o recorte da revista. Prendeu-o na parede, ao lado da tela. Focou olhando
de um para o outro. Finalmente resolveu meter tinta no quadro. Não pensou duas
vezes: meteu o pincel na lata de tinta branca e foi fazer a sua cachoeira. Não
sabia que era tão fácil pintar. Com apenas uma pincelada fez a sua queda
d’água. Depois parou um pouco, analisando a obra. Pensou na mata. – Como fazer?
O gramado já está verde. A floresta também é verde. O que fazer? Só se fizer a
minha em azul! Vai ficar diferente e bonita! – e lá foi ele pincelando todo
pedaço que achava que cabia uma árvore. Nunca passou pela sua cabeça que era
tão fácil pintar um quadro. Pensou... Pensou... Estava se sentindo importante.
No dia seguinte ia levar para mostrar aos amigos.
Levantou-se bem cedo. Mais cedo do que
de costume. Saiu do barraco ainda no escuro. Chegou ao lixão antes do sol. Os
amigos ainda não tinham dado as caras. Arrumou um local para colocar a tela.
Esticou bem. Estava realmente orgulhoso do seu feito. Pensou que se tivesse
dinheiro, daria uma festinha. Pelo menos uma garrafa de pinga. Mas podia deixar
isso para depois... Depois que ficasse famoso? Quem sabe? Pensou bastante sobre
isso. Sorriu e colocou seu par de luvas. Rodeou a montanha de lixo. Procurou
alguma coisa, que não sabia o que era. Ainda estava escuro e isso estava
atrapalhando a sua visão. A única claridade vinha de um poste público.
Sentou-se em frente ao quadro e ficou apreciando-o, mesmo na penumbra. Depois
acendeu um fósforo e foi passando o lume por toda a obra. Sorriu, deixando
aparecer uma pontinha de orgulho. Mas enquanto olhava, lembrou-se dos papéis
que tinha achado. E se perguntou:
-Aquilo
num parece poesia? Muita gente pensa que eu sou analfabeto, mas se engana. Não
sei muito das letra, mas não sou burro. Estudei um pouquinho. Lembro que num
livro aparicia umas coisa escrita. A professora dizia que era poesia. Então,
isso deve sê poesia mesmo. Não é uma porção de palavras junta? Então... eu
posso fazer poesia também! Não posso? Vou ler.
E lá foi Tião tirando o pedacinho de
papel do bolso. Leu novamente.
- Lábios trêmulos
Vermelhos e carnudos
Mãos geladas
Logo, logo sem vida
Lábios...
-Puxa vida! Até que é bonito! Mas não
tem dono! Eu podia iscrever mais alguma coisa. Podia. Qualquer coisa, e botava
meu nome. Eu ia virar poeta também. Acho
que não é difícil. Ela é minha! – o pensamento falava. Estava tão envolvido com
a situação, que ainda não tinha se dado conta que estava pensando em voz alta.
Silenciou novamente. Olhava para a “sua” poesia, envaidecido. Já tinha se
apropriado dela. Como ele dizia:- Não tem assinatura, é minha. - Leu e releu
várias vezes. Entender, entender, não conseguiu. Mas entender para quê? Pegou a
sua caneta pela metade e colocou a ponta em cima do papel e ficou esperando.
Esperando o quê? – E agora? – se perguntou. Nada saía da caneta. – Droga! Essa
porra não escreve sozinha? – esbravejou. Levantou-se e deu um chute no lixo.
Deu azar: bicou uma pedra. Saiu pulando feito saci-pererê e xingando aos quatro
ventos. Quando a dor abrandou, foi examinar o local da pancada. Não estava
sangrando e conseguiu colocar o pé no chão, isso o acalmou. Respirou aliviado.
– Ufa! Que sorte! Puxa! Por que a vida é sempre assim? Parece que botam sempre
uma pedra no nosso caminho! Pedra! Pedra! E mais nada! – voltou a olhar a
poesia e ficou pensando na pedra. De repente falou entusiasmado. – Achei!
Achei! Sou poeta! Sou poeta! A pedra! A pedra! – Pegou a sua mini caneta e riscou no cantinho do
papel, para saber se ainda tinha tinta. Depois de confirmado, escreveu na linha
de baixo: - Pedra. Pedra. – Em seguida, do lado direito do papel, assinou o seu
nome. Olhava para a “sua” obra, extasiado. Estava se sentindo orgulhoso. Estava
se sentindo o máximo. Agora era pintor e poeta. Olhou para o papel todo
amassado e percebeu que não estava muito bom. Achou melhor arranjar outro que
estivesse em melhor condição. O único que encontrou, era uma propaganda
política. A cara do candidato não o agradou muito, mas como do outro lado
estava limpo, pegou aquilo mesmo. E começou a passar a limpo o poema.
Lábios
trêmulos
Vermelhos e carnudos
Mãos geladas
Logo, logo sem vida
Lábios...
Pedra. Pedra
Tião
Quando terminou de assinar, deixou
escapar um sorriso. Estava orgulhoso. Não parava de olhar. Nem percebeu que o
sol já estava chegando. Foi despertado do seu êxtase pelos amigos que chegavam
juntos com o sol. Ficou em pé para esperá-los. Eram três. Tião deu um bom dia.
Como isso não era habitual, eles ficaram assustados com o gesto cortês dele.
Responderam, mas não acreditando muito no que ouviram. Tião foi se chegando e
antes que falassem alguma coisa, mostrou a tela. Os três ficaram espremidos bem
de fronte ao quadro. Olhavam para a tela e depois para Tião. Moreno, um dos
seus poucos amigos, olhou de novo para Tião e falou:
- Tá legal! Manero mermo! Me diz uma
coisa brodi: o qui é aquilu pintadu di brancu?
- É a cachoeira.
- Legal. Porra cara! Cadê os boi e us
cabritu?
- Eu ia colocar, mas disisti. E si
comêssi a grama?
- É. Faz sintidu. Pudia atrapalhá o
seu quadru. Tem também o cocô. Cabrito então, caga muitu!
Tião Não respondeu ao amigo. Não
entendeu muito, o que ele queria dizer. Antes de mostrar a poesia, deixou os
três olhando para a sua obra. Estava realmente se sentindo um artista plástico.
Tinha ouvido alguém falar sobre artista plástico. Já que estava se sentindo um
artista, colocou plástico. De repente tinha alguma coisa a ver com as garrafas
pets que catava. Achava que era por causa disso. Já que era pintor, era um
artista. E como era catador de garrafas pets, era plástico. Juntou os dois e se
sentiu bem. – Será que todos esses artistas plásticos, que tem por ai, já foram
catadores de lixo? – ficou se perguntando. Mas agora ele tinha que mostrar a
poesia. Chamou os três e esticou o papel na direção deles. Moreno foi o
primeiro a pegar. Olhou, mas passou para o outro, apelidado de Ximbica. Olhou
também, mas passou para o terceiro, apelidado de Tiziu. Esse leu, pra si,
sorriu para Tião e fez um comentário.
- Aí brodi! Tá bunitu! Poeta também?
Tião deu um sorriso meio encabulado,
mas respondeu.
-
É. A gente faz o que pode. Vocês gostaram?
- Num sei! Lê pra gente, Tiziu! –
respondeu de pronto Moreno, deixando claro que não tinha intimidade com as
letras. O amigo então leu em voz alta. Ao termino da leitura, Ximbica sorriu e
esticou o dedão dando o seu ok. Moreno demonstrou estar emocionado. Aquela
demonstração dos amigos deixou, novamente, Tião com os olhos cheios d’água.
Disfarçou e enxugou, com as costas da mão, os olhos. Em silêncio, cada um foi para
o seu canto. Tião permaneceu no mesmo lugar. Dividia o seu olhar entre o papel
e o quadro. Não sabia ainda o que ia fazer. Tinha que cuidar do seu sustento,
isso era fato. Mas tinha que pensar como ia ser a sua vida dali para frente.
Tinha que aliar as duas coisas: o sustento e a garimpagem. Agora ele tinha se
transformado também em
garimpeiro. Já estava sentindo que a sua pedra preciosa
estava ali em algum lugar. A sua fama podia estar enterrada debaixo daquela
imundície toda. Olhou de novo para a tela e pensou: - Podia agradar o meu
amigo. Será que dá pra botar um boi e um cabrito? Acho que não. De repente ele
pode achar que a minha pintura é dele também. Não dá pra dividir a fama. Num
vou nem melhorá a minha obra. Segundo morreu de velho. Acho que é isso mesmo
que falam. Segundo... Por que segundo? Se soubesse quem falou isso, ia
perguntar. Também si é o segundo que morreu de velho, ele deve ter morrido
primeiro. Vou voltar para o trabalho, que é o melhor que eu faço. Vou catar o
quê? Acho que é o de sempre. Mas vou ficar de olho em qualquer papel
amassadinho. Porra! Tenho que tomar cuidado, senão vou falar igual a Moreno e
Ximbica! Os dois já falam bem parecidos! Tenho que me ligar. Agora sou poeta.
Continua na semana que vem...
Nenhum comentário:
Postar um comentário