quarta-feira, 20 de julho de 2016

O Catador de Histórias - Parte 2

Continuando...
          - E se eu pintar tudo? Posso arranjar tinta e fazer uma floresta do lado do castelo! Aí todo mundo vai saber que a pintura é minha! Vou voltar pru lixão! A gente sempre acha umas lata com resto de tinta por lá!
          E assim Tião fez: girou nos calcanhares e voltou para o lixão. Os amigos viram quando ele retornou com a sua carroça. Ele passou e não falou com ninguém. Procurou um lugar afastado dos outros catadores. Não foi difícil a sua missão, logo achou uma lata de tinta, mas não soube identificar a cor. Ela estava bem cheia. Não se preocupou em abri-la naquele momento. Depois que chegasse à sua casa, faria isso. Tinha que, de qualquer jeito, achar outras latas. Essa era a sua meta e não desviaria a sua rota em hipótese alguma. – Um pintor que se preze, não pinta com uma cor só!  – pensou, tentando transformar em verdade uma fantasia. E ele foi em frente, na sua busca. Depois de muita procura, Tião recolheu mais algumas latas, com algum resto de tinta, para engordar o seu acervo. Encontrou também alguns pincéis gastos. Achou que aquilo daria para torná-lo um pintor. Um artista plástico. Estava acreditando piamente naquele sonho. Voltou rapidamente para casa. Passou pelos amigos e apenas bateu com a mão.
          O sol já invadia o seu barraco. Tião se espreguiçou e viu as tiras de sol bordando o seu chão. Levantou-se rápido e pensou logo no dia que ia ter: um dia dedicado ao seu quadro. Não ia para o lixão. Nem pensou em tomar café, pegou a tela e prendeu-a na sua única parede que ainda estava sem buracos. Pegou as latas de tinta e foi abrindo uma a uma. Encontrou na primeira, a única que estava completamente cheia, uma cor parecida com azul. Não soube identificar que azul era aquele. Encontrou nas outras latas um pouco de verde, de vermelho, de branco e muito pouco mesmo de marrom.  Entusiasmou-se ao ver o verde. Ia fazer logo o seu gramado. Pegou uma trincha e passou em toda a parte que estava sem tinta. Achou meio estranho, mas mesmo assim se sentiu orgulhoso da sua primeira obra. O gramado estava pronto. Só não sabia como ia colocar as árvores.
         - Como é que vou colocar as árvores agora? Ainda tem boi, cavalo, cabrito pra entrar aí também! E a cachoeira?
          Ficou pensando alto. Falava com a tela, esperando que ela respondesse alguma coisa a ele. Quem sabe uma sugestão. Andava de um lado para o outro sem encontrar saída. Depois de muito peregrinar diante da tela, lembrou-se de umas revistas. Quem sabe não encontraria algumas paisagens. Começou a desfolhar as revistas. Foram várias. Não sabia o porquê de guardar todas àquelas revistas, já que nunca lia nenhuma. Finalmente encontrou alguma coisa que o agradou: uma floresta, com uma imensa cachoeira ao fundo. Os seus olhos encheram-se d’água. Só não escorreu, feito a água da cachoeira. Mas lá estava ele diante da solução para o término da sua obra. Já estava realmente se achando o pai daquele quadro. E lá foi ele com um pincel em uma das mãos e na outra o recorte da revista. Prendeu-o na parede, ao lado da tela. Focou olhando de um para o outro. Finalmente resolveu meter tinta no quadro. Não pensou duas vezes: meteu o pincel na lata de tinta branca e foi fazer a sua cachoeira. Não sabia que era tão fácil pintar. Com apenas uma pincelada fez a sua queda d’água. Depois parou um pouco, analisando a obra. Pensou na mata. – Como fazer? O gramado já está verde. A floresta também é verde. O que fazer? Só se fizer a minha em azul! Vai ficar diferente e bonita! – e lá foi ele pincelando todo pedaço que achava que cabia uma árvore. Nunca passou pela sua cabeça que era tão fácil pintar um quadro. Pensou... Pensou... Estava se sentindo importante. No dia seguinte ia levar para mostrar aos amigos.
          Levantou-se bem cedo. Mais cedo do que de costume. Saiu do barraco ainda no escuro. Chegou ao lixão antes do sol. Os amigos ainda não tinham dado as caras. Arrumou um local para colocar a tela. Esticou bem. Estava realmente orgulhoso do seu feito. Pensou que se tivesse dinheiro, daria uma festinha. Pelo menos uma garrafa de pinga. Mas podia deixar isso para depois... Depois que ficasse famoso? Quem sabe? Pensou bastante sobre isso. Sorriu e colocou seu par de luvas. Rodeou a montanha de lixo. Procurou alguma coisa, que não sabia o que era. Ainda estava escuro e isso estava atrapalhando a sua visão. A única claridade vinha de um poste público. Sentou-se em frente ao quadro e ficou apreciando-o, mesmo na penumbra. Depois acendeu um fósforo e foi passando o lume por toda a obra. Sorriu, deixando aparecer uma pontinha de orgulho. Mas enquanto olhava, lembrou-se dos papéis que tinha achado. E se perguntou:
          -Aquilo num parece poesia? Muita gente pensa que eu sou analfabeto, mas se engana. Não sei muito das letra, mas não sou burro. Estudei um pouquinho. Lembro que num livro aparicia umas coisa escrita. A professora dizia que era poesia. Então, isso deve sê poesia mesmo. Não é uma porção de palavras junta? Então... eu posso fazer poesia também! Não posso? Vou ler.
           E lá foi Tião tirando o pedacinho de papel do bolso. Leu novamente.
            - Lábios trêmulos
              Vermelhos e carnudos
              Mãos geladas
              Logo, logo sem vida
              Lábios...
           -Puxa vida! Até que é bonito! Mas não tem dono! Eu podia iscrever mais alguma coisa. Podia. Qualquer coisa, e botava meu nome. Eu ia virar poeta também.  Acho que não é difícil. Ela é minha! – o pensamento falava. Estava tão envolvido com a situação, que ainda não tinha se dado conta que estava pensando em voz alta. Silenciou novamente. Olhava para a “sua” poesia, envaidecido. Já tinha se apropriado dela. Como ele dizia:- Não tem assinatura, é minha. - Leu e releu várias vezes. Entender, entender, não conseguiu. Mas entender para quê? Pegou a sua caneta pela metade e colocou a ponta em cima do papel e ficou esperando. Esperando o quê? – E agora? – se perguntou. Nada saía da caneta. – Droga! Essa porra não escreve sozinha? – esbravejou. Levantou-se e deu um chute no lixo. Deu azar: bicou uma pedra. Saiu pulando feito saci-pererê e xingando aos quatro ventos. Quando a dor abrandou, foi examinar o local da pancada. Não estava sangrando e conseguiu colocar o pé no chão, isso o acalmou. Respirou aliviado. – Ufa! Que sorte! Puxa! Por que a vida é sempre assim? Parece que botam sempre uma pedra no nosso caminho! Pedra! Pedra! E mais nada! – voltou a olhar a poesia e ficou pensando na pedra. De repente falou entusiasmado. – Achei! Achei! Sou poeta! Sou poeta! A pedra! A pedra! – Pegou a sua mini caneta e riscou no cantinho do papel, para saber se ainda tinha tinta. Depois de confirmado, escreveu na linha de baixo: - Pedra. Pedra. – Em seguida, do lado direito do papel, assinou o seu nome. Olhava para a “sua” obra, extasiado. Estava se sentindo orgulhoso. Estava se sentindo o máximo. Agora era pintor e poeta. Olhou para o papel todo amassado e percebeu que não estava muito bom. Achou melhor arranjar outro que estivesse em melhor condição. O único que encontrou, era uma propaganda política. A cara do candidato não o agradou muito, mas como do outro lado estava limpo, pegou aquilo mesmo. E começou a passar a limpo o poema.

             Lábios trêmulos
             Vermelhos e carnudos
             Mãos geladas
             Logo, logo sem vida
             Lábios...
             Pedra. Pedra
                                                 Tião

              Quando terminou de assinar, deixou escapar um sorriso. Estava orgulhoso. Não parava de olhar. Nem percebeu que o sol já estava chegando. Foi despertado do seu êxtase pelos amigos que chegavam juntos com o sol. Ficou em pé para esperá-los. Eram três. Tião deu um bom dia. Como isso não era habitual, eles ficaram assustados com o gesto cortês dele. Responderam, mas não acreditando muito no que ouviram. Tião foi se chegando e antes que falassem alguma coisa, mostrou a tela. Os três ficaram espremidos bem de fronte ao quadro. Olhavam para a tela e depois para Tião. Moreno, um dos seus poucos amigos, olhou de novo para Tião e falou:
           - Tá legal! Manero mermo! Me diz uma coisa brodi: o qui é aquilu pintadu di brancu?
           - É a cachoeira.
           - Legal. Porra cara! Cadê os boi e us cabritu?
           - Eu ia colocar, mas disisti. E si comêssi a grama?
           - É. Faz sintidu. Pudia atrapalhá o seu quadru. Tem também o cocô. Cabrito então, caga muitu!
           Tião Não respondeu ao amigo. Não entendeu muito, o que ele queria dizer. Antes de mostrar a poesia, deixou os três olhando para a sua obra. Estava realmente se sentindo um artista plástico. Tinha ouvido alguém falar sobre artista plástico. Já que estava se sentindo um artista, colocou plástico. De repente tinha alguma coisa a ver com as garrafas pets que catava. Achava que era por causa disso. Já que era pintor, era um artista. E como era catador de garrafas pets, era plástico. Juntou os dois e se sentiu bem. – Será que todos esses artistas plásticos, que tem por ai, já foram catadores de lixo? – ficou se perguntando. Mas agora ele tinha que mostrar a poesia. Chamou os três e esticou o papel na direção deles. Moreno foi o primeiro a pegar. Olhou, mas passou para o outro, apelidado de Ximbica. Olhou também, mas passou para o terceiro, apelidado de Tiziu. Esse leu, pra si, sorriu para Tião e fez um comentário.
          - Aí  brodi! Tá bunitu! Poeta também?
          Tião deu um sorriso meio encabulado, mas respondeu.
          - É. A gente faz o que pode. Vocês gostaram?

          - Num sei! Lê pra gente, Tiziu! – respondeu de pronto Moreno, deixando claro que não tinha intimidade com as letras. O amigo então leu em voz alta. Ao termino da leitura, Ximbica sorriu e esticou o dedão dando o seu ok. Moreno demonstrou estar emocionado. Aquela demonstração dos amigos deixou, novamente, Tião com os olhos cheios d’água. Disfarçou e enxugou, com as costas da mão, os olhos. Em silêncio, cada um foi para o seu canto. Tião permaneceu no mesmo lugar. Dividia o seu olhar entre o papel e o quadro. Não sabia ainda o que ia fazer. Tinha que cuidar do seu sustento, isso era fato. Mas tinha que pensar como ia ser a sua vida dali para frente. Tinha que aliar as duas coisas: o sustento e a garimpagem. Agora ele tinha se transformado também em garimpeiro. Já estava sentindo que a sua pedra preciosa estava ali em algum lugar. A sua fama podia estar enterrada debaixo daquela imundície toda. Olhou de novo para a tela e pensou: - Podia agradar o meu amigo. Será que dá pra botar um boi e um cabrito? Acho que não. De repente ele pode achar que a minha pintura é dele também. Não dá pra dividir a fama. Num vou nem melhorá a minha obra. Segundo morreu de velho. Acho que é isso mesmo que falam. Segundo... Por que segundo? Se soubesse quem falou isso, ia perguntar. Também si é o segundo que morreu de velho, ele deve ter morrido primeiro. Vou voltar para o trabalho, que é o melhor que eu faço. Vou catar o quê? Acho que é o de sempre. Mas vou ficar de olho em qualquer papel amassadinho. Porra! Tenho que tomar cuidado, senão vou falar igual a Moreno e Ximbica! Os dois já falam bem parecidos! Tenho que me ligar. Agora sou poeta.
               Continua na semana que vem...

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