quinta-feira, 6 de outubro de 2022

O Socialista Burguês nas Eleições de 2022 - Parte 01


 

O SOCIALISTA BURGUÊS NAS ELEIÇÕES DE 2022

- José Timotheo -

 

              O sol ainda não tinha repousado no horizonte. Em cima da montanha um tom avermelhado escondia um pedaço do azul do céu, enquanto um amarelo fraquinho se esfregava nas bordas de uma nuvem clara. Eu estava parado numa estrada de barro vermelho, que parecia sem fim, com o olhar e os pensamentos perdidos nesse falecer de tarde. Esse lugar, era próximo à pousada onde me hospedara, no dia anterior.

             Fim de semana é sempre bom viajar e ir deixando pelas estradas as preocupações acumuladas, as escamas dos aborrecimentos semanais. Estava ali sozinho. Havia deixado a família na pousada. Queria um momento de sossego e fui esticar as pernas naquele caminho de barro, que margeava um pequeno riacho de águas cristalinas. Rezava baixinho, pedindo a Deus que não botasse ninguém naquele caminho. Aquele silêncio quase me fazia flutuar. Pensei no silêncio absoluto. Mas depois me dei conta de que vinha um som do riacho. Era quase imperceptível, eu sei, mas não deixava de ser um leve barulho. Barulho esse que não feria em nada o meu bem-estar. A leveza da minha alma não estaria comprometida de jeito nenhum. Esse almejado silêncio absoluto, que não existe, beirava a um sossego que deixava os meus pensamentos sem ruídos.

             O lugarejo, era longe do centro nervoso da capital. – “ Era o fim do mundo? ” – De jeito nenhum. Se o fim do mundo fosse naquele molde, poderia dizer que a Terra é o paraíso, sem tirar nem pôr. Acreditava piamente que ali era o lugar mais harmônico do planeta. O que poderia desarmonizar aquele lugar abençoado? Senti que Deus morava ali pela redondeza.

             Para não ter dúvida de que estava num lugar abençoado, apontei meus olhos para todos os lados. Girei 360 graus e realmente só vi beleza. Não encontrei defeito na natureza. A perfeição fez dali a sua morada. Procurei, então, colar no meu olhar cada pedaço daquela paisagem. Nem o cocô de algum boi, que eu acabara de enfiar o pé, causou qualquer anomalia no meu humor. A leveza me abraçou. E leve queria continuar.

             Era tempo de eleições, e que já se aproximava. Queria e precisava ficar um pouco distante desse conflito de opiniões. Ora verdadeiramente mentirosas, ora mentirosamente verdadeiras. Aliviava um pouco, não precisarmos escolher prefeitos e vereadores. Acho que já fizeram assim, para que não chegássemos a um colapso nervoso generalizado.  Aposto que não sobreviveria uma alma sequer para apontar os vencedores. Pelo menos, me senti livre das tensões eleitorais temporariamente.

             Fiz um trato com a minha mulher que seria zero tv. Nem desenho animado veríamos. Vai que Pernalonga, Pica pau, Peppa, Mickey... se candidatassem? Não podia correr esse risco. Era ficar por ali afastado de tudo. Eu sei que era inevitável votar. Uma hora ia ter que voltar para o sacrifício. Mas... de repente meus pensamentos foram interrompidos. Ué!? Que som era aquele que chegava até aos meus ouvidos? Não queria acreditar. Fui ficando tenso. Isso não podia estar acontecendo. Esse som, em especial, sempre me deixou irritado. A natureza estava em perigo. Olhei para o fundo da estrada e vi uma luz, que ora aparecia, ora sumia. Cento e oitenta graus de visibilidade. Logo uma nuvem avermelhada cobriu o fundo da estrada e um som mais que alucinante entrou pelos meus ouvidos. E em frações de segundo já estava completamente desnorteado e envolvido por uma densa nuvem vermelha, e a um passo de ficar surdo.

              Não conseguia ver um palmo na frente do nariz. Junto com a poeira, de repente, voltou o silêncio novamente. Fiquei como uma estátua. Sentia apenas um calor próximo às minhas pernas. Uma brisa veio me salvar. A poeira foi sendo dissipada lentamente. Mas quando a visibilidade voltou, veio o susto. Quase no meu nariz estava uma boca com um sorriso escancarado. Era ele. Há quatro anos que não nos víamos: o Socialista Burguês. Estava ali na minha frente, em cima de uma moto do ano. A maior que já tinha visto. Rapidamente pulou e veio me abraçar. Puxou-me com cuidado, pois estava com a roda quase embaixo do meu saco. Deu-me um abraço apertado e sussurrou:

             - Grande amigo! Há quanto tempo! Quando foi? Ontem? Não sei bem. Mas essa data de hoje é que é a mais importante. Está perto de mais uma eleição. Acertei?

             Eu não sabia o que falar. Estava em estado de choque. Ainda sentia o calor do pneu entre as minhas pernas. Tremia todo, não vou negar. Se ele tivesse errado por um milímetro, não estaria mais aqui. Só de pensar nisso, quase me borrei.

             Tirei os óculos para poder vê-lo com mais clareza. As lentes estavam completamente cobertas com a poeira vermelha. Na verdade, não eram só os óculos que estavam cobertos de barro, eu estava vermelho dos pés à cabeça. Para falar alguma coisa, tive que cuspir uma saliva que parecia sangue. Mas antes que eu tentasse emitir qualquer som, ele foi logo me atropelando.

              - Amigo! Estou aqui em campanha! Hoje sou da direita da esquerda. Mas também da esquerda da direita. Meu amigo, finalmente consegui entender tudo o que o meu mestre deixou escrito. Você sabe quem é, não sabe? Isso! Já li seu pensamento: Marx! Só pode ser ele! Não existe outro!

              Não consegui responder nada. Ele perguntou e respondeu. A princípio achei que continuava a mesma pessoa. Mas o meu coração não concordou. Ele tinha piorado. Pela sua cara, depois que tirou os óculos, constatei as minhas suspeitas: as suas feições transmitiam um desequilíbrio acentuado.  

               O meu amigo estava envelhecido, assim como eu. Mas isso não era justificativa para os seus atos. A sua aparência exterior não me preocupava, mas sim o que vinha de dentro. Olhei-o em silêncio por algum tempo. E ele, por incrível que pareça, ficou também me olhando dos pés à cabeça. Depois de analisá-lo, percebi que ele ainda trazia um livro preso no sovaco. –“ É o livro de Marx? “ – Perguntei, demonstrando uma certa incredulidade.

              - E podia ser outro? É o meu livro de cabeceira! – Respondeu-me, com um sorriso de satisfação.

              Eu então provoquei: - Você quis dizer, de axila? – Mas naquele exato momento não me respondeu. Mas intuitivamente eu sabia que estavam a caminho coisas do arco da velha na sua retórica.

              Senti que a sua empolgação ainda não o tinha abandonado. Continuava a se deliciar com a convivência de anos com Marx. Mesmo com o corte que dera na sua fala, não o tirei do prumo. Só pelo fato de ele acariciar aquele livro ensebado que trazia há décadas debaixo do braço, percebi que realmente eu não lhe tinha causado qualquer tipo de abalo.

                Ainda em silêncio, gesticulou, como se estivesse fazendo um discurso em pensamento. No alto da empolgação, levantou os dois braços, o mais alto que pode. Aí a surpresa me pegou de jeito: o livro não soltou do seu sovaco. Ele percebeu o meu espanto e sorriu de orelha a orelha. Nunca se dava por vencido. Para que eu não continuasse a falar, abriu a mão e tapou a minha boca. Em seguida disse: 

               - “ Sem sombra de dúvidas. ” Amigo, quando penso nessa frase, aí é que me encho de certezas duvidosas. Há sempre sombra. É ou não é? Sobram interrogações no horizonte. No que é para ser simples, a complicação brota sempre entre vírgulas. Aí vem a tensão, a ansiedade e nesse contexto, quase único, é que não sobram dúvidas, pois vem a certeza que a pressão vai aumentar. E aumenta. Quando eu penso “sem sombra de dúvidas”, acho que a dúvida não existe. Acredito que a numerologia explica a sombra. A dúvida eu não tenho certeza. Já as interrogações, cabem dentro do contexto. Ou do texto? Até agora sigo com a minha meta: não duvido da dúvida. Pensa bem. Pensou? Eu ainda não. Olha só. Olhou? Eu ainda não. Lembra de Marx? Eu não tiro ele debaixo do sovaco. Estive pensando na sua candidatura. 

...............Acaba semana que vem!! 

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