sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Pensamento de Poeta - Meu Maior Amigo

 


MEU MAIOR AMIGO

- José Timotheo -

            Normalmente as pessoas precisam de lápis, caneta ou qualquer outra coisa que possa servir de intermediário entre as suas ideias e o papel. Meu pai não.  Sempre precisou unicamente da saudade. Com ela, as suas histórias pareciam acontecer naquele exato momento. Podia repeti-las quantas vezes fossem necessárias e elas estavam sempre novinhas em folha.

           Meu pai partiu aos 94 anos. Não tem um dia sequer que não me lembre dele. Quando conversávamos, olhando para ele me perguntava: - Será que vou conseguir chegar nessa idade – se lá chegar – com tanta clareza de pensamento?

           Eu pensei, quando ele teve um AVC, que ia ser difícil trocarmos ideias. Mas qual não foi a minha surpresa: mesmo com a voz atrapalhada conseguia contar as suas histórias. Porque essa voz saía mais do coração e não precisava necessariamente ser verbalizada com clareza.

           Aos noventa anos ele precisou usar bengala, depois de uma queda. Mas isso não fez com que os seus passos fossem se embaralhar. Continuou firme nas suas pisadas, até a sua partida do planeta.

           Depois do AVC ele mesmo ria das coisas que falava.  Pensava numa coisa e saía outra. Ao me chamar, saía o nome de um dos netos. Aí gargalhava! Não teve uma vez sequer que tenha falado o meu nome certo. Mas isso não tinha importância, porque ele estava pensando. Isso importava mais do que o acerto de nomes. Nunca percebi ele se entristecer por isso.  Conversava numa boa. Contava as histórias mais uma, duas e quantas vezes fosse solicitado. Ria quando errava alguma palavra, mas não interrompia o seu relato.

           Quando ficava frente a frente com ele, aquele jeito jovial me impressionava. Ficava pensando que muita gente com menos idade já estava pedindo para partir. Ele nem cogitava morrer. Se Deus quisesse esquecê-lo por aqui, ia ficar eternamente grato ao Criador. Ele gostava de viver. Mas tinha apenas um senão: na companhia da minha mãe, ele não abria mão.

            Num domingo quente veio nos visitar. O mar soprava uma brisa fresca. Abri uma cerveja e antes do seu primeiro gole, olhou para as águas da baía de Guanabara e sorriu. Depois de alguns minutos apreciando o mar falou, e saiu bem claro. –“ Muito bonito! Muito bonito! ”- Tirou os óculos e passou a mão nos olhos, para enxugar uma lágrima que desceu sem avisar. Nessa hora as ondas penteavam a areia com languidez.

            Com o copo não mão, ergueu-o e sugeriu um brinde. Em seguida, bebeu num gole só quase todo o seu conteúdo. Não deixou escapar nem a espuma que grudara no bigode. Sorriu e apontou na direção do Forte Santa Cruz, o guardião da Baía de Guanabara. Depois disse alguma coisa que não entendi. Ele percebeu e tentou falar um pouco mais pausado. Com muito esforço conseguiu me contar, mais uma vez, que o seu irmão Alcides foi um dos mergulhadores da marinha a colocar uma rede, durante a Segunda Guerra Mundial, na entrada da Baía da Guanabara, para bloquear qualquer possível invasão de submarinos alemães. Foi falando do jeito que dava. Como já conhecia a história, não me foi difícil entender a sua narrativa. Mas mesmo se fosse uma história nova, não importava entender ou não, pois o que valia mesmo era o que me contava. Além de saber que toda e qualquer história era mais importante para ele mesmo, do que para outras pessoas.

            No final da narrativa, deu um sorriso de orelha a orelha, mas com os olhos cheios d’água. Acho que bateu uma saudade do meu tio. Grande homem também. Parece até que o senti ali do nosso lado, bebericando e ouvindo o meu pai contar um dos seus feitos.  Grande mergulhador que nunca usou qualquer tipo de equipamento, que não fosse o seu pulmão.

             Abracei o meu pai e fiquei esperando mais alguma história, mas ele preferiu se calar. Depois do abraço, ainda em silêncio, pegou o seu copo, fez sinal para que o enchesse, e bebeu com prazer. No final passou a língua pelos lábios, para não deixar escapar qualquer gota da cerveja. Pelo seu olhar, imaginei que a sua cabeça continuava vasculhando a saudade. Sorriu mais uma vez e jogou os seus olhos miúdos, novamente, para as areias e águas da praia de Icaraí. 

            Meu pai sempre foi o meu melhor amigo, sem dúvida. Eu sempre achei, que mesmo sendo ligado a ele, estaria preparado para quando ele desse um tchau. Imaginava também que a sua partida fosse em grande estilo. Tinha certeza que ele não ia querer que derramassem lágrimas para uma pessoa que gostava de sorrir. Ele partiu, eu não chorei, mas fiquei triste. Me lembro sempre como se ele tivesse embarcado para uma viagem longa, sem tempo de regresso. Acho que embarcou no trem certo, na hora certa, para um destino incerto. Foi depois que cumpriu bem a sua caminhada na Terra. Esse é o meu pai, Júlio.

                              

                                                         fim

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