Continuando...
Quim
se aproxima e mete a cara no vidro da porta traseira. Firma o olhar para o
interior do veículo e fica tentando enxergar alguma coisa. De repente grita
assustado:
- Nossa mãe, Toni! Meu Deus! É sangue só! Só
estou vendo uma pessoa encostada aqui na porta. Mano, acho que não sobrou viva
alma dentro desse carro. Já viu o tamanhão desse carro? Dá para carregar um
batalhão.
- Está vendo mais alguma coisa?
- O interior está bem escuro, não dá pra ver quase
nada. Não sei quantas pessoas tem aí dentro. Se tiver dez, estão todas mortas.
Olha só, mano: o teto tá todo amassado, e do jeito que afundou, amassou todo
mundo. Que tristeza, mano. Toni, como esses vidros não quebraram? Não parece
que são brindados?
- E são
mesmos. Vamos tentar abrir essa porta. É o único jeito de se saber alguma
coisa. Vamos lá.
- Mano, vamos deixar isso pra lá. A
polícia não vai demorar a chegar aqui. Isso não é problema nosso. Se tivesse
alguém vivo, aí era outra história. Vamos embora, mano. Vai por mim.
- Ir embora assim? E se tiver gente
viva aí dentro? Vamos resolver isso e depois vamos embora. Tá bom assim?
- Tá bom, mano. Você venceu. Mas
depois vamos embora mesmo. Não fico aqui nem mais um minuto.
- Está combinado. Então vamos lá. Força
Quim. Bastante força. Vou contar. No três a gente dá um puxão. Um, dois, três.
Isso, viu? Está cedendo! De novo Quim. Agora. Abriu! Até que não foi tão
difícil! Viu só? Estão conspirando a nosso favor.
Mas mal a porta se escancara, uma
escopeta cai no asfalto. E mais três se espalham por cima de alguns corpos,
corpos que Quim não havia visto. Tinha mais duas imprensadas no teto, saindo do
banco da frente. Do jeito que o teto arriou, não dava para saber se tinha ali alguém
com vida. É só um monte de ferro torcido. Os dois estão sem ação, mas
assustados com o que viam. Quim manifesta, surpreso e interrogativo:
- Olha só, Toni. Mano, pra que essas
armas todas? Será que iam pra alguma guerra?
- Nossa mãe! Quim isso é muito
esquisito!
- Bota esquisito nisso! Mano não é
melhor a gente se mandar? Pode ser encrenca pura. E pode ainda cair em cima da
gente. Escuta o que estou dizendo. Tá na intuição.
Toni
dá um sorriso sem graça e contesta:
- Ih! Que encrenca nada! Intuição,
Quim? Deixa disso. Vamos é dar uma olhada geral. A gente tem que sair daqui com
a consciência tranquila e dentro da lei. Ninguém vai poder falar que recusamos
prestar socorro.
- Socorro pra quem, Toni?
- Ué, vamos olhar. Às vezes no meio
desse ferro torcido, possa ter algum sobrevivente.
- Que otimismo. Só você mesmo. Então tá. Olha
só o cara aqui como ficou: parece que a cabeça entrou pra dentro do corpo. E
você acha que possa ter mais algum sem um arranhão sequer?
- Não sei! Esse aí... Que coisa
horrível, Quim. Mas olha só. Ali não parece que tem uma pessoa?
- Está parecendo um saco cheio de
roupa. Deixa eu meter a mão.
Quim vai cautelosamente, mas fica
receoso, ao perceber que vai ter que se apoiar nas pernas do defunto. Aborta os
movimentos e recua em seguida, fazendo uma careta. Depois dá uma olhada para o
irmão, com uma expressão de nojo.
- Mano não vai dá. Tô até enjoado.
- Enjoado? Deixa disso! Não vai dá por
quê?
- Por quê? Você viu? Pra se chegar até aquele monte de roupa, vou ter
que me apoiar nas pernas do morto. Viu a cabeça dele enterrada no corpo? Não
tenho estômago de ferro, mano.
Toni dá mais uma vez a sua risada sem graça e
zoa o irmão:
- Não acredito! Você agora tem medo de
defunto? É isso mesmo? Quim, você sabe que ele não vai te fazer nada. Se ele estivesse
vivo, aí sim ia ser perigoso. Vai lá! Deixa de besteira! Eu estou aqui. Nessas estradas
já vimos coisas piores. Saiu por quê?
- Não aguento esse seu risinho sem
graça. Estou aqui pra respirar ar puro. Posso?
- Quim, volta pra lá, volta. Assim
vamos demorar mais.
- Tá bom. Mas vou, porque sei que, se
o defunto se mexer, o primeiro a correr vai ser você! – deu um sorriso meio sem
graça e, em seguida, um tapa no teto amassado do carro.
- Correr! Que correr o quê! – ensaia
uma gargalha - Você é que é capaz de se
borrar todo! Vai logo, Quim. Sem enrolação. Quanto mais rápido a gente olhar
tudo, saímos daqui logo, logo. Vai lá.
- Tá bem! Tá bem! O serviço pesado
sempre cai em cima de mim mesmo. Mas eu vou te dizer uma coisa: só vou olhar
aqui, nesse pedacinho. Depois perna pra quem te quer. Não fico nem mais um
minuto aqui.
Continua Semana que vem!