terça-feira, 4 de agosto de 2020

Alma do Outro Mundo? - Parte 01


Alma do Outro Mundo?

- José Timotheo -

 

               Era qualquer dia do mês de junho, de um ano que não me lembro, mas penso que não tem importância. Foi há tanto tempo, que nem se transformou em saudade. É somente uma lembrança que de vez em quando brota e me deixa à deriva dentro de uma interrogação. 

            Recordo-me do convite que um amigo me fizera. Nessa época trabalhávamos na mesma empresa. Duas horas antes do fim do expediente, numa quinta-feira, ele veio até o meu setor de trabalho e sorridente me propôs acompanhá-lo até uma cidade afastada do Rio de Janeiro. A viagem seria no dia seguinte, sexta feira, e ficaríamos até domingo. Até aí tudo bem. Só havia um problema: eu não tinha dinheiro. Então dei uma recuada no convite. Mas o cara sorriu e disse que dinheiro não era problema. Mas como?  Questionei.

            Disse ele: estou com uma namorada, cuja família tem um hotel. Falei que ia levar um amigo e ela concordou. Disse mais, que ia apresentar você a uma prima.

           Tive que sorrir. Um fim de semana com boca livre é um presente caído do céu. Entretanto veio outra dúvida. E a comida para esses dias? Ele sorriu de novo e disse que estava tudo incluído. Só tinha que arranjar grana para a birita. Meti a mão no bolso, na hora, e saquei uns caraminguás. Vi que dava no máximo para três cervejas. Mas para umas doses de cana, até sobrava. 

            No dia seguinte, sexta feira, já estava na esquina de casa esperando por ele. Te pego às dezenove horas, sem atraso, disse-me com um sorriso enigmático. Eu sorri também. Sorri porque ele nunca chegava na hora marcada. E não seria dessa vez que ia chegar. Mesmo tendo certeza disso, lá estava eu ansioso, às dezoito horas e cinquenta minutos.   Já devia ter fumado uns dois cigarros. Nessa época ainda fumava. Mudava a mochila de um ombro para o outro, seguidas vezes. Mas ela não estava pesada, carregava apenas três camisas, uma bermuda, uma sunga que nunca saía dali, cuecas e um litro de cachaça, sequestrada da reserva do meu pai.

           Olhei para o relógio, tipo cebolão, e vi que seus ponteiros marcavam dezenove horas e trinta minutos. Depois disso, esperei mais meia hora, foi quando o cara chegou. Nem pude reclamar. Lembrei-me na hora de outro amigo, que dizia: “Quem dorme de favor, dorme encolhido.” Então é isso.  Carona, com fim de semana sem precisar mexer no meu orçamento, que era quase nenhum, reclamar pra quê?

           O mais estranho é que ele olhou-me fixamente e despejou a sua culpa sobre os meus ombros.

          - Pô cara! Pelo visto você está aqui na esquina desde as cinco da tarde! Toda vez é isso! Depois fica com essa cara de bundão, aí!

         Nem questionei. O errado acabava sendo sempre eu. O cara nunca foi pontual. E seria dessa vez?  Mas, mesmo sabendo disso, estava mais uma vez de plantão dez minutos antes da hora marcada. Nunca aprendi. Porém sempre achei estranho esse meu modo de ver a vida. Essa “pontualidade” tão radical. Mas cada um é cada um... 

           Pegamos a estrada, com a lua bem cheia espalhando a sua luz pela pista irregular. Olhando aquele asfalto, todo esburacado, que se alongava à nossa frente, senti um arrepio estranho. Aí comentei assustado, a sensação que tivera. Ele então disparou:

           - Já vem você pressentindo coisa ruim! Para com isso, cara! Não vai acontecer nada não!  Para com isso! Deixa de agourar!

           Chegamos à cidade, não me lembro da hora, e a namorada dele já estava na porta do hotel nos esperando. Entramos e o jantar também nos esperava. Era uma mesa comprida e que já estava preparada para o café da manhã, do dia seguinte. Ficamos os três na ponta, próximos da cozinha. Observei que tinham quatro pratos. Não demorou muito e apareceu uma menina com duas panelas. Deitou-as na mesa, em silêncio. Retornou de onde veio, sem dúvida era a cozinha, e voltou com mais duas e um prato de salada, em cima de uma dessas panelas. Juntou-se à nós. Fomos apresentados. Ela sorriu. Aí, meu amigo, o sorriso veio falhado. Além de faltarem dois dentes da frente, ainda tinha um acompanhante completamente podre. Torci a boca. Olhei para o amigo, pedi licença, abri a minha mochila, peguei a garrafa de cachaça, ofereci, mas ele não quis, e tomei um copo cheio num gole só. Seis olhos miravam-me. Mas ninguém comentou nada. A menina em silêncio levantou-se e sumiu das nossas vistas.

          Fomos dormir antes da meia noite. Juro que sonhei com aquela boca faltando dentes. Acho que foi mais de um pesadelo naquela noite. Acordei debilitado. Parecia que estava de ressaca. Olhei para a cama do meu amigo e estava vazia. Levantei meio a contra gosto, lavei o rosto, escovei os dentes, fiz o sinal da cruz e fui tomar o café. Cheguei devagarinho, pé ante pé e não encontrei ninguém por ali.

.......Continua semana que vem...


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