A recepcionista não conseguiu falar
nada. Estava completamente emocionada. Olhava para Assombração e pensava: - Um
homem tão pobre, vivendo da cata de lixo, mas carrega um coração tão grande.
Homem bom taí! Esse é um bom sinal! Mostra que devemos acreditar na
humanidade! Que o mundo tem jeito! - se levantou, falou alguma coisa com a
colega ao lado, pegou Assombração pela mão e se dirigiu para o interior do hospital. Aquele era um mundo desconhecido para
ele. Observava, sem a recepcionista perceber, cada pedaço de corredor que
passavam. Ficou admirado que ao cruzar com algumas pessoas, era por elas
cumprimentado e que ainda deixavam um sorriso. Algumas até o chamavam pelo
nome. Realmente estava surpreso. Não sabia que outras pessoas o conheciam, além
de Dona Verona e Seu Juca. Já ele, não fazia a menor ideia de quem eram aquelas
pessoas. Dava um oi, meio sem jeito, mas não parava, e continuava em frente,
rebocado por Angélica, a recepcionista.
O corredor parecia que não tinha fim.
Mesmo sendo uma pessoa acostumada a longas caminhadas, já estava se sentindo
cansado. Talvez a exaustão fosse fruto da ansiedade. Quando pensou em reclamar
com a menina, ela parou em frente a uma porta, deu uma pequena pancada e
entrou. Era uma pequena sala bem iluminada, toda pintada de branco e bem
aconchegante. Pelo cheiro, parecia que tinha sido pintada recentemente. Mas
tinha outro perfume no ambiente que não conseguiu identificar, porém causou-lhe
um tremendo bem estar. Com certeza era o melhor cheiro que tinha sentido nos
últimos tempos. Ficou olhando tudo em volta. Estava extasiado. Aquilo tudo fazia bem a
ele. O cheiro do hospital fazia se sentir à vontade. Não saberia explicar o que
estava acontecendo, mas aquele ambiente era por demais familiar. Estava se
sentido em casa. No
meio daquele devaneio todo, acabou se assustando quando a recepcionista
mandou-o sentar-se. Sorriu e sentou-se numa pequena poltrona. Não acreditava no
que estava acontecendo. Tirou e colocou o traseiro, pelo menos três vezes.
Estava se sentindo confortável. Não sabe o porquê, mas se lembrou do Seu Juca.
Era ele quem o deixava tomar o seu banho diário. Deixava também lavar a sua
roupa. Nunca gostou de andar sujo. Era uma pessoa asseada. Viver em contato com
lixo, não quer dizer que vá se tornar um. Fazia questão de comprar o seu
sabonete, o mais cheiroso, na tenda do Seu Onofre. Sujeito emburrado, mas que
parecia boa gente.
Enquanto Angélica conversava com a
enfermeira, ele continuou vasculhando a memória e deixou escapar um sorriso,
quando se lembrou da menina do nº 18, batendo com a mão para ele e mandando um
beijo estalado. Acordou das suas lembranças quando a recepcionista tocou no seu
ombro. Assustou-se, mas mesmo assim não deixou de sorrir. Ela carinhosamente
passou a mão na sua cabeça e disse: - Vou deixar você com a enfermeira Elga.
Ela vai explicar tudinho a respeito de doação. Passo a passo. Todos os
procedimentos. Tudo, tudo. Está bem? – Assombração balançou afirmativamente a
cabeça e beijou as costas da mão dela. Ela
sorriu, deu um tchau para os dois e saiu da sala.
A enfermeira com a cabeça baixa
parecia que escrevia alguma coisa. Isso foi o que ele deduziu. Mas ela também
pegava alguns papeis na gaveta, arrumava num canto da mesa e guardava outros, em silêncio. Ele se
cansou de ficar observando os movimentos de Elga, desviou sua atenção para
alguns cartazes que estavam afixados num quadro de avisos. Lia um por um. Lia,
mas não sabia como tinha aprendido. Escrevia também. Quando tinha vontade,
copiava alguma coisa de alguma revista e escrevia em um caderno, encontrado
numa lixeira. Nunca soube dizer onde tinha aprendido a ler e escrever. Tentou
bastante, mas depois desistiu, já que a sua lembrança não passava do dia em que
tinha acordado naquela cidade.
Um dos cartazes, do quadro de avisos,
chamou a sua atenção. Estava escrito: - “Seja um doador. Salve uma vida”. Com os olhos fixos na frase, pensou: -
Vou doar alguma coisa minha, pra salvar a menina do nº 18. – Assombração
despencou dos pensamentos e voltou à realidade, quando a enfermeira Elga o
chamou. – Senhor, senhor, pode vir até aqui? – ele olhou para Elga - nunca
tinha sido chamado de senhor - abriu um sorriso, talvez o maior da sua vida, e
quase deu uma gargalhada. Não com o tamanho da do Seu Juca, mas não ia deixar
de ser uma gargalhada. Mas conseguiu conter-se. Levantou-se e foi até a mesa da
enfermeira. Ficou em pé defronte dela. Só se sentou quando ela indicou-lhe uma
cadeira. Sentou-se meio sem jeito, mas olhou-a na cara. Parecia que já fazia
isso, há muito tempo. Percebeu que era uma coisa normal. Concluiu que tinha que
ter feito isso sempre, pois só assim ele reconheceria todas as pessoas que o
chamaram pelo nome. Esperou, com um sorriso grudado nos lábios, a enfermeira
voltar a falar com ele. Elga então levantou o olhar para ele e falou: - Você
sabe o que veio fazer aqui, não sabe?
- Sei sim. Eu vim até aqui para salvar
a vida da menina do nº 18.
Elga deu um sorriso e disse: - Essa
menina que você fala, é Vera. Verinha.
- Agora, sei sim. Antes, eu não sabia
não.
- Então vamos lá. Mas antes de
qualquer procedimento, temos que conversar um pouco. Primeiro vamos preencher
uma ficha. – A enfermeira pegou
uma caneta e abriu uma folha. Olhou para ele e perguntou: - Qual o seu nome.
- Meu nome... Meu nome... Só sei que
me chamam de Assombração.
- Mas... Assombração?
- É. É isso mesmo.
- Mas assombração não é nome, é
apelido.
- Eu só sei isso. Foi Seu Juca que me
chamou assim. Ele que me deu esse nome. Então esse é o meu nome. Eu gosto dele.
A enfermeira Elga ficou olhando para
ele sem saber direito o que fazer. Como poderia colocar uma pessoa a candidato
a doador, que não tinha
nome? Mas arriscou perguntar mais alguma coisa.
- Quantos anos você tem? Qual a data
do seu nascimento?
Continua semana que vem...
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