Assombração
- José Timotheo -
A rua era o seu lar. E ele fazia
dessas ruas do bairro o seu mundo. Num percurso diário, praticamente circulava
por quase todas. Se perguntado, não saberia dizer quantas vezes fazia aquele
trajeto. Aparentemente nunca parou para pensar nisso. Era um ir e vir várias
vezes ao dia, pegando uma latinha aqui, outra ali. E alguma coisa a mais, que
fosse garantia para mais uma quentinha. Raramente
levantava a cabeça. Os seus olhos andavam pregados em cada pedaço do caminho.
Uma vez ou outra, olhava para alguma casa, mas normalmente enterrava a cara nas
lixeiras pelas calçadas, procurando o seu sustento. O misterioso andarilho, de
poucos caminhos, parecia que não era muito percebido pela vizinhança, mesmo
circulando por ali, há mais de quatro anos. Ninguém falava com ele. Parecia que
era transparente. Mas ele também não falava com ninguém. Como falar, se a sua
cabeça estava sempre enterrada em alguma lixeira! Entretanto isso parecia que
não o incomodava muito. Preferia a solidão como companheira? Aparentemente sim, pois era uma pessoa
extremamente tímida. Era um recluso dentro da sua liberdade. Não fazia amigos.
Entretanto não se poderia afirmar que fosse uma pessoa infeliz. E o sorriso nos
lábios? Mesmo com a cabeça
baixa, procurava não deixar
o sorriso fugir. Pelo menos, uma vez ao dia sorria. Mas procurava sorrir mais vezes, pois
se sentia bem com isso. Observava outros amigos de infortúnio, que nunca
sorriam. Pareciam carrancas. O que via no habitat deles, deixava-o
triste. Era uma convivência
sem respeito mútuo, onde a animosidade predominava. A exceção era quando
passava de mão em mão, uma garrafa de pinga. Ou quando enterravam as caras
dentro de latas e se embriagavam, também, cheirando cola. Depois saiam
zanzando, feito zumbis. Mas na maioria das vezes, essa “convivência pacífica”
acabava em briga. E
ele vendo isso, ficava com receio de se aproximar e não ser bem vindo. Mas a
palavra certa seria medo. Essa é que era a verdade. Era só topar com algum
deles e rapidamente mudava de calçada, indo se esconder na distância. Escolhia
lugares diferentes para se abrigar para não ser importunado. Nunca dormia no
mesmo lugar e jamais no chão. Normalmente procurava árvores com a copa bem
fechada. E escalar esses arvoredos era uma tarefa que não tinha a menor
dificuldade de realizar. As
mais altas, eram as suas preferidas. Ali ficava abrigado dos indesejáveis. Só
dividia o espaço com os pássaros. Mas devia ter alguns cuidados nessas
empreitadas. Principalmente se cobrir bem, para evitar surpresas noturnas, tais
como uma cagada de um pássaro, chuva e frio.
Antes de escalar as árvores, no final
da tarde, olhava a cidade que já começava a se vestir de luz. Parece que era o
único momento que levantava a cabeça. E isso ele fazia diariamente. Não falhava
um dia sequer. Era sagrado aquele momento, antes de escalar qualquer arvoredo.
Parecia uma oração. Quando o pisca pisca dos painéis comerciais eram ligados,
ficava fascinado. Olhava antes de subir e depois, já em cima, bebia mais um
pouco daquela visão privilegiada. Porém não demorava muito, para não incomodar
os outros moradores. Após esse ritual, se encaixava no seu já conhecido tronco,
se amarrava para não cair e se cobria dos pés à cabeça. Alguns dos moradores
pareciam que já o conheciam, pois não voavam e nem se agitavam em meio às
folhagens. Acho que o encaravam como um pássaro grande, mas inofensivo. No
início a coisa não era bem assim. O mundo ali na copa da árvore parecia que ia
cair. Virava o maior inferno. Muitos pássaros, que não estavam acostumados a
voar à noite, saiam em debandada, tentando encontrar outros lugares para se
abrigarem. Com a confusão instalada, ele se encolhia e procurava ficar em
silêncio, até tudo voltar ao normal. Mas pela manhã ao descer, ficava triste ao
encontrar algum pássaro morto pelo caminho. Pegava o bichinho, pedia desculpas
e depois arranjava algum lugar para enterrá-lo. Com o tempo, as coisas foram se
arrumando, até que não houve mais acidentes.
Debaixo do plástico, antes de dormir,
tentava se lembrar de como foi parar ali. Tentava, tentava, mas não conseguia.
Parecia que tinha surgido do nada por aquelas bandas. Pai, mãe... Será que
teve? Não sabia responder. Dentro da sua cabeça não aparecia o rosto de
ninguém. Tinha momentos que pensava na hipótese de ter vindo do espaço. De ter
sido colocado ali por algum extraterreno. Às vezes cismava com isso. Quem sabe
não era um alienígena? Não tinha nome. Alguém um dia o chamou de assombração.
Ficou se lembrando do Seu Juca, do “Caco, Velho Caco”, onde ele vendia os seus
achados. Foi exatamente ele quem o batizou com esse nome. Recordou das suas
gargalhadas, quando dizia que ele aparecia tão de repente, que parecia uma
assombração. Acabou rindo da risada do Seu Juca. Não sabia o que ele queria
dizer com assombração, mas isso não tinha muita importância. Achou o nome
bonito e isso era o que importava. Esse era o seu nome. Depois se lembrou,
também, de Dona Verona, aquela senhora que sempre o tratou com carinho. Era com
ela que comprava a sua quentinha. Mas ele só olhava pra ela, quando ela não
estava olhando pra ele. Pensou algumas vezes que Dona Verona podia ser a sua
mãe. Ia gostar muito. Ficava emocionado quando ela o chamava de “meu filho”.
Depois, quando ia saindo, um “vai com Deus, meu filho". Aí quase chegava
às lágrimas. Saía com a cabeça mais baixa ainda, para esconder toda a emoção
que aquelas palavras lhes causavam. Ia satisfeito e bem feliz, indo procurar
algum lugar para se alimentar sossegado. Ele não sabia o porquê de não aceitar
o oferecimento dela para almoçar num cantinho da sua cozinha. Só sabia que
ficava com a cara vermelha, não respondia nada e saía vazado. Isso se repetiu algumas vezes, até ela
desistir do oferecimento.
Bocejou. Tentou se espreguiçar debaixo
do plástico, mas não conseguiu. Sentiu que o sono se aproximava. Estava tão
escuro ali embaixo, que não teve certeza se estava com os olhos abertos. Piscou
para confirmar. Acabou sorrindo com essa dúvida. De repente apareceu na sua
cabeça a menininha do nº 18, que mandava pra ele um aceno e um beijo estalado
na mão. Se lembrou que era a única casa que olhava. E foi por um acaso. A
lixeira tinha quebrado e o saco de lixo tinha sido pendurado na grade. Quando
olhou para o saco de lixo, viu a menininha que estava brincando no quintal. Foi
olhar no olhar. A menina sorriu e acenou pra ele. A sua felicidade foi tanta,
que o coração teve que ser empurrado goela abaixo. O sorriso dela ficou tatuado
para sempre no seu coração. Assombração sorriu com a lembrança, mas depois fez
uma expressão preocupada. Tinha passado ontem e não a tinha visto. Depois
passou hoje e também não a viu. Dois dias que não ganhava o seu sorriso. Acabou
dormindo abraçado às suas lembranças e preocupações. Mas sonhou bastante. Ao
acordar na manhã seguinte não conseguiu se lembrar de nada. Parecia sonho bom,
pois tinha despertado tranquilo.
...Continua semana que vem...
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