segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Assombração - Parte 2

              Continuando,,,
            Uma claridade meio embaçada pegou Assombração com a cabeça já descoberta. Os seus amigos vizinhos de “quarto”, já tinham debandado. Ele continuou assim, com medo de espantar algum retardatário. Antes de confirmar que estava sozinho, não saiu debaixo do plástico negro. Algum tempo depois, com a certeza de ser o último morador a se levantar, é que desceu da árvore. A rua ainda se espreguiçava. Mas ele tinha certeza que Dona Verona já estava de pé. Ia tomar o seu café antes de começar o seu trabalho, a sua garimpagem. Encontrou, como sempre, uma xícara de café e um pedaço de pão, arrumados no cantinho do balcão. Dona Verona sabia de cor o horário de ele chegar e já deixava tudo arrumadinho. Tentou por várias vezes não cobrar pelo desjejum, mas ele nunca aceitou. E assim os dias foram passando no mesmo ritmo. Todo dia era o mesmo ritual, só que o sorriso de Assombração começava a escassear. O calendário já havia pulado para outro mês e ele só tinha as gargalhadas do Seu Juca, o “Vai com Deus, meu filho”, de Dona Verona, mas o sorriso da menina tinha sumido. Alguma coisa estava errada. Estava errada, porque o deixou triste. E ele nunca ficava triste. Por que agora o sorriso fugiu da sua boca?
          Novas manhãs surgiram. Mas os dias continuaram se arrastando feito animal peçonhento. A verdade é que a sua alegria tinha entristecido. Nunca foi de parar em frente das casas da redondeza, mas resolveu ficar em frente ao nº 18, esperando para ver se a menina aparecia. E foi ficando. E foi ficando até o sol dar sinal que ia se esconder. E nada da menina. Antes de sair, observou que a casa estava completamente fechada. Pelo quintal, as folhas secas das árvores se amontoavam. Dava a impressão de total abandono. Sentiu um aperto no coração. Se sentiu como aquelas folhas, amarelas e envelhecidas. Parecia que a vida estava fugindo. Não se lembrava de em algum momento da vida ter chorado. Emocionado, ficou várias vezes. Ficando até com os olhos rasos d’água. Mas sem perceber, já estava com o rosto banhado de lágrimas.  Botou pra fora toda a sua tristeza. Chorou o que pode, até não ter mais lágrimas a derramar.
          Assombração caminhou pra lá e pra cá, em frente ao portão. De repente a sua barriga roncou. Aí captou a mensagem de que ainda não tinha comido nada até àquela hora. O alarme tinha disparado. A princípio não deu muita importância, tendo em vista que não estava com vontade de comer, mesmo estando com fome. Mas achou esquisito aquilo que estava sentindo pela primeira vez. Tinha fome, mas não estava com vontade de comer. Mas alguma coisa o arrastou para casa de Dona Verona. Chegou, mas achando que não encontraria mais comida. A amiga olhou pra ele, deu um sorriso, mas não perguntou o porquê dele ter chegado tão tarde. Pegou a quentinha que tinha guardado, e o entregou. Ele, sem levantar a cabeça, apanhou a vasilha de comida e se sentou numa caixa de refrigerantes que estava ao lado da porta. Deve ter sido o hábito que fez com que ele pegasse no bolso, o garfo que guardava enrolado com um pedaço de atadura elástica, encontrado em algum lixo. Mexeu na comida de um lado para o outro. Mas nada de levá-la à boca. A barriga roncou mais uma vez, alertando-o da necessidade de comer. Porém continuou resistindo. – E a menina do nº 18? – continuava se perguntando. E ali ficou sentando bastante tempo sem arriscar levar o garfo à boca. Dona Verona observa o amigo. Uma pessoa que tinha chegado e angariado a sua simpatia.  Gostava dele. Quando o via, lembrava-se do filho, que um dia, havia muito tempo, tinha metido os pés pelas estradas do mundo. Enxugou discretamente os cantos dos olhos. Ia perguntar alguma coisa, mas desistiu. Nunca tinha visto Assombração com a cara tão preocupada. Não tinha lembrança da falta de sorriso naquela cara redonda. Esboçou um ar de preocupação, mas depois balançou a cabeça, achando que não devia ser nada demais. Achou que era normal, já que todo mundo tem o seu dia ruim. E como não gostava que perguntassem o porquê de estar triste, preferiu não se intrometer na vida do amigo. Entrou e foi fazer o que sempre fazia: cozinhar.

          Alguém chegou vagarosamente e se postou ao lado de Assombração, dando o maior susto no rapaz, que quase caiu da caixa. Era o Seu Juca, que soltou a sua gargalhada costumeira e em seguida comentou: - E aí! Se assustou? Sou também uma assombração!  Sou ou não sou? – Assombração acabou esboçando um sorriso, mas voltou a ficar de cabeça baixa. Seu Juca não notou o estado de tristeza do seu amigo e foi procurar Dona Verona. Se chegou ao balcão e chamou pela a amiga. Rapidamente foi atendido. Pediu uma média e um misto quente. E aproveitou para jogar conversa fora. Dona Verona aproveitou o papo e comentou sobre o estado estranho de Assombração. Seu Juca olhou na direção dele e disse: - Será que ele sabe o que aconteceu com a menina do nº 18? – E o que é que aconteceu com ela? – perguntou Dona Verona secamente. – Seu Juca abriu um ar de espanto, não acreditando que ela não soubesse do que estava acontecendo, fato que quase toda a vizinhança já sabia, e custou a responder. Fez um esforço para romper o silêncio. – Coitada da menina. A senhora não sabe nada mesmo? – Dona Verona balançou a cabeça negativamente. Estava com os olhos arregalados e pareceu que estava com alguma coisa presa na garganta. A voz não saiu. Seu Juca então continuou a falar: - Coitadinha. Não é que apareceu uma doença no sangue dela! Coitadinha da menina do nº 18! – Assombração, que aparentemente estava alheio à conversa dos dois, levantou-se num pulo. Não tinha escutado tudo, mas bastou o final da conversa para puxá-lo para a realidade. E rapidamente já estava de pé, do lado do Seu Juca. E já com a ansiedade à mostra, indagou: - Ela quem? Quem é que tá com doença no sangue? – Seu Juca olhou para Assombração e falou, demonstrando surpresa. – Ué! Pelo jeito você também tá por fora? Relaxa garoto! Relaxa! Você não sabe mesmo? – Assombração engoliu um pouco de saliva e respondeu perguntando: - Não sabe o quê? Eu não sei de nada! Fala Seu Juca! Fala! – Seu Juca tentando demonstrar tranquilidade, diminuiu o tom de voz e atendeu a curiosidade do amigo, mas com a alma assustada. – É a filha do Aquino. Sabe quem é? A Verinha está... – Quem é Seu Aquino? Quem é Verinha? Não sei Seu Juca! Me diz Seu Juca! Só não pode ser... – Assombração sentia o coração apertado. Alguma coisa apontava numa direção que, no fundo, não queria aceitar, mas que quase tinha certeza. Olhou para dentro dos olhos do Seu Juca, coisa que nunca fazia, e deixou escapulir uma lágrima. Seu Juca tentou tranquilizá-lo, dizendo: - Calma. Calma. Eu não sei em quem você está pensando, mas se for à mesma pessoa, fica calmo. Pode não ser coisa grave. Você não sabe mesmo quem é Verinha? – Assombração balançou a cabeça negando. Seu Juca continuou. – É a menina do nº 18. Sabe quem é? – Assombração não respondeu, mas caiu num pranto de dar dó. Dona Verona saiu detrás do balcão e foi tentar consolar o seu melhor freguês, a quem já considerava como um filho. – Meu filho. Calma meu filho. Não chora não. Fica calminho. Vem cá. Senta aqui nessa caixa de refrigerante. Vou pegar um pouco d’água com açúcar pra você. – alisou a cabeça dele e foi pegar a água com açúcar. Não demorou muito e lá estava ela com o seu “calmante” caseiro. Assombração tomou-o todo, num só gole. Respirou fundo e indagou dos amigos sobre o paradeiro da menina. Seu Juca que ainda não tinha saído totalmente do choque da explosão de dor do rapaz, antes de falar alguma coisa, respirou fundo, pigarreou e tentou passar para ele tudo que sabia do caso. – Calma. Eu vou te informar de tudo que sei. Fiquei sabendo que ela tem chance de ficar boa. Dizem que já estão procurando algum doador. – Assombração interrompeu o amigo num repente, indagando-o: - Doador de quê? Eu posso doar qualquer coisa de mim pra salvar ela? Eu dou! Eu dou! – Seu Juca e Dona Verona se miraram e cada um tinha uma interrogação no olhar. Não estavam entendendo tanto abatimento do rapaz. Pelo que sabiam, ele só trocava algumas palavras com eles dois.  Seu Juca, antes de responder alguma coisa, alisou o bigode grisalho e perguntou: - Você conhece a menina? Por acaso ela é sua amiguinha? – Assombração enxugou o rosto, que já estava todo banhado de lágrimas, deixou escapar um brilho de alegria e disse: - Sabe... Todo dia ela bate a mão pra mim e manda um beijo estalado! Ela é minha amiga sim. - Dona Verona olhou para o Seu Juca e o olhar dos dois pareciam se abraçar, cheios de emoção. Seu Juca disfarçou e enxugou os olhos com as costas da mão. Dona Verona, como toda mulher, deixou a emoção aflorar espontaneamente. O silêncio entrou no meio dos três e isso foi o bastante para equilibrar aquelas almas amigas. O Seu Juca conseguiu abortar o pranto, que não ia tardar a desabar, e falou calmamente: - Assombração escuta só: a menina pode ficar boa. É uma questão de sorte, lá isso é. Mas ela vai ter sorte e achar um doador. Eu não sei bem como isso funciona, mas lá no hospital eles podem explicar direitinho. Só uma coisa eu sei: tiram o sangue da gente e depois eu não sei mais. – Assombração olhou para os dois e deixou aquele sorriso de todo o dia aparecer. Deu um tchau, virou nos calcanhares e foi embora. Mas alguma coisa fez com que parasse a alguns metros à frente. Deslizou nos calcanhares novamente, voltou e falou cheio de emoção: - Vocês podem ter certeza! Vou até o hospital e vou dar alguma coisa do meu corpo e vou salvar a menininha do nº 18! A minha amiguinha vai ficar boa! – Deu às costas rapidamente e saiu em direção ao hospital da cidade.
       Semana que vem continua...

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