O
tempo foi passando e o rapaz foi dando mostras de melhoria. João estava animado
com a resposta do seu organismo. Era jovem e forte. Isso contava muito. Tanto é
que não demorou muito e ele abriu os olhos. Olhou surpreso, mas não conseguiu
emitir nenhum som. João aproveitou para ministrar-lhe o caldo. Pouco tempo
depois, já estava se alimentando com mais vontade. Neste momento já não estava
mais deitado no colo de João. Estava sentado e encostado na parede. A sua
recuperação era surpreendente. João e Pedro ficaram eufóricos, quando o rapaz
agradeceu. Pedro falou para o amigo:
-Graças
a Deus! Viu João, a sua fé conseguiu trazer o gajo de volta! São mais dois
braços para nos ajudar!
-É
claro! Mas foi Deus e ele mesmo os responsáveis pela sua recuperação. Você está
com razão Pedro, são mais dois braços pra trabalhar com a gente!
-Hei!
Meu nome não é Pedro. Eu me chamo Olavo. Não entendi muito bem, esse negócio de
trabalho. Estou sonhando? Ou já morri? Trabalhar aonde? A minha cabeça está que
é só confusão. Eu devo ter morrido mesmo, pois já estou vendo até claridade.
Desde que fui preso, essa é a primeira vez que vejo um pouco de luz.
Olavo
pára um pouco para respirar. Estava visivelmente cansado. João então pegou a
vasilha de água e deu-lhe mais um pouco e ele bebeu com mais avidez. Depois
falou:
-
Calma, amigo. Nós só pensamos alto. Depois você vai se inteirar do nosso
trabalho. Eu e Pedro estamos tentando fugir. Pedro, é esse aqui meu amigo.
-
Seu amigo? Eu entendo você, companheiro. Eu também, enterrado aqui, vivo, tive
que criar o meu amigo imaginário. Só assim eu consegui me manter vivo até
agora. Eu sei que se não fosse você, eu tinha morrido. Mas depois desses anos
todos, não sei ao certo quanto tempo, consegui me manter lúcido. Consegui
sobreviver.
-
Mas esse meu amigo aqui, existe. É ele que está me ajudando a achar o caminho
pra fugir desse inferno. Se não fosse ele, eu teria enlouquecido, com certeza.
-
Companheiro, isso aqui deixa qualquer um com o miolo mole. Se a gente não ficar
vigilante, entra em parafuso.
-
João, tu achas que o gajo está cego?
-
Não sei. Olavo, você consegue me enxergar direito?
-
Claro. Estou vendo você perfeitamente. A gente acaba, nesse ambiente quase
escuro, enxergando bem. Mesmo naquele breu que eu vivia, conseguia ver alguma
coisa. Se bem que aqui não tem nada pra se ver. Mas você, pelo menos, eu sei que
não é alma de outro mundo. Companheiro, vou confessar uma coisa: até que eu
gostaria de ver um fantasma. Acho que seria uma boa. A solidão é uma merda. Por
aqui deve ter uma porção de alma penada dando cabeçada. Devem ficar zanzando
por aqui sem ter nada pra fazer. É ou não é? Companheiro, vou deixar uma coisa
bem clara, não acredito em alma de outro mundo. Só existe mesmo é o trabalho e
o partido comunista.
Pedro
olhou com desdém para Olavo e zombou dele.
-
Olha só João! Esse bunda mole está me chamando de alma penada! Esse pobre
coitado morreu e ainda não se deu conta! Mas eu o desculpo. Ele não sabe o que
está falando. É um pobre coitado. Falou de alma de outro mundo, depois disse
que não acreditava. Eu acredito em alma de outro mundo, pois estou vendo uma.
-
Calma Pedro! Ele ainda não se recuperou de todo! Vamos ter paciência com ele!
-Ô companheiro, já te disse que o meu nome é
Olavo!
-
Você já disse. Só estou falando com o meu amigo... Deixa pra lá! Cara, por que
é que você veio parar aqui?
-
Sou comunista, camarada! Sou comunista!
Olavo
falou e bateu no peito. Para uma pessoa debilitada, até que conseguiu bater com
uma força razoável. Além de tentar se levantar. Ficou na tentativa. João olhou
para ele e ficou admirado com aquela explosão de energia que brotou nele. Pedro
olhou-o com um ar interrogativo e falou com João:
- Que raio é isto? Nunca ouvi falar
de alguém que tenha nascido em algum lugar com este nome! Que raio é isto? É
algum país, ó gajo?
-
Pedro, isso não é país. É uma ideologia. Tem alguns países que adotam o regime
comunista. A União Soviética comanda...
-
Ó raios! Agora tu me falas: União Soviética! Ó raios, do que se trata?
-
A Rússia invadiu vários países vizinhos e fez deles aliados. Mas isso, eu acho,
foi na marra. Democraticamente, fez todo mundo virar comunista. Eu acho que é
por aí. Como não sou nada ligado em política, pode ser que esteja errado.
-
A Rússia eu conheço!
-
Conhece mesmo?
-
Sim. Nunca fui, mas conheço pelo mapa. E a Rússia czarista, quem não conhece!
Olavo fica olhando para João, sorri e
comenta:
-
Cara! Você está pirando! Eu sei que isso aqui pode deixar qualquer um maluco
mesmo! Você pode até conversar com a sua alma de outro mundo, mas tenha
cuidado! Veja só! O fantasma tem até nome! Uma coisa de bom tem nisso aí: agora
somos três, não é camarada? Pensando bem, acho que vou arranjar um pra mim
também! O camarada, não fala besteira sobre a minha União Soviética, não!
-
É! Pra quem estava moribundo, até que você está muito bem! Ele melhorou muito,
não é Pedro?
-
Claro! O gajo vai até poder nos ajudar! Mas cuidado que ele é muito debochado.
-
O que foi que a sua alma penada falou?
-
Falou que você vai poder nos ajudar a fugir daqui. Falou também que você é
muito debochado.
-
Debochado, é? Tá bom! Mas como é que a gente vai fugir?
João joga um sorriso na cara e, antes de
falar, deixa o silêncio se prolongar um pouco. Depois, demonstrando otimismo
fala, mostrando o lugar da provável fuga:
-
Olavo! Vai ser fácil! Olha só! Nesse cantinho aqui passa um riacho, ou um duto
para escoamento de água de chuva e esgoto. Sei lá pra que mais. Mas vai ser por
aqui a nossa saída.
-
Mas como é que você sabe disso?
-
Foi Pedro que me contou.
-
Pedro... A alma do outro mundo?
-
E é mesmo. Mas ele afirma que quem está morto sou eu. Pode isso? Mas tudo bem.
Estou aqui com você graças a ele. Me mostrou ponto por ponto onde eu podia
abrir. Na minha cela, nos fundos, que dá para o mar, consegui abrir uma pequena
janela. Por ali passa um pouco de luz e ar puro. Eu só tenho que ficar ligado
para não esquecer ela aberta direto. Se os guardas virem qualquer claridade
aqui, o bicho vai pegar. Sorte que Pedro
me avisa quando vem alguém.
-
Estranho. Você vê mesmo esse cara? Não é invenção não?
-
Não. Claro que não. Eu até custei muito a acreditar. Mas tenho certeza que o
vejo sim. Ele me disse que ajudou a construir essa fortaleza.
-
Agora é mais um a me chamar de alma de outro mundo.
João sorri com a reclamação de Pedro e Olavo
não entende o porquê do riso.
-
Você está rindo de quê?
-
Foi Pedro reclamando. Ele disse que agora são dois a chamá-lo de alma de outro
mundo.
-
É? Até que gostaria de vê-lo.
-
Então já está acreditando em alma de outro mundo?
-
Eu não disse isso!
João
riu com a reação de Olavo. Pedro continuava sério, mas fez careta para Olavo.
Depois disso um silêncio tumular tomou conta da cela. João ficou encostado à
porta, parecendo que pensava alguma coisa. Olavo, como estava ainda debilitado,
fechou os olhos. Pedro começou a andar de um lado para o outro. Depois meteu a
metade do corpo dentro da parede e ficou observando o que se passava no
corredor do lado de fora. Ficou um bom tempo assim. Em seguida passou o corpo
inteiro para fora. Voltou quando a porta
grande começou a ser aberta. Retornou rapidamente e falou com João.
-
João, vamos rápido para a nossa cela. Dois guardas se aproximam.
-
Tem certeza?
-
Claro gajo!
-
Certeza do quê, João?
-
Olavo, estou passando para minha cela. Dois guardas estão se aproximando.
-
Como é que você sabe?
-Pedro
me avisou. Estamos indo, depois nós voltamos. Segura as pontas aí! Vai ficar
tudo escuro novamente.
João
passou feito foguete pelo buraco e depois colocou a pedra tapando a janela,
para barrar a claridade. Pedro atravessou a parede, sem cerimônia alguma, e se
colocou do lado da porta. Menos de um minuto a botija de água e a comida já
estavam dentro da cela. As vasilhas vazias foram recolhidas. Na cela que estava
Olavo foi feito o mesmo procedimento. Mas antes dos guardas fecharem a
portinhola, um deles fez uma gracinha para o prisioneiro.
-
Aí, ó comunista safado! Resolveu comer de novo? Come mesmo, pra ficar gordinho!
Os peixes não gostam de osso! Eles querem carne pra comer!
Olavo
ouviu, mas preferiu não responder. Engoliu em seco a ofensa recebida e falou
baixinho, para que os guardas não ouvissem.
-
Safado? Você vai ver só quem é o safado, quando eu sair daqui! Quando
vencermos... Irão todos para o paredão! Seus filhos da...
Abortou
o palavrão, porque um acesso de tosse pegou-o de repente. Ainda ouviu quando o
outro guarda falou:
-
Resende! O cara tá mal! Pelo jeito esse não vai longe! Os peixes vão ter que se
contentar mesmo só com os ossos! Ah! Ah! Ah!
Fecharam
a portinhola e se afastaram rindo da desgraça alheia. Olavo continuava
tossindo. Não conseguiu nem completar o palavrão. E a sua raiva foi crescendo,
até que acabou chorando. João ouviu tudo. Esperou até os guardas saírem, meteu
a cara no buraco e interrogou-o.
-
Tudo bem aí? Já vamos ficar com você. Aguarde um pouco. Vou abrir de novo a janela
para entrar claridade. Podemos ficar tranquilos, porque eles não vão voltar tão
cedo. Não vou nem te perguntar o motivo do choro. Nós ouvimos tudo.
-
O meu choro é apenas de raiva. Mas já vai passar. Eles, um dia, vão me pagar. E
vão pagar caro.
-
Não entendi direito o que você falou. Mas segura às pontas, que daqui um pouco
estou aí. Pode deixar que vou te dar a comida. Primeiro vou comer um pouco. A
comida é ruim, mas se a gente não comer fica pior.
-
Não chama de comida não! Isso parece mais uma lavagem!
-
Que seja. Mas essa lavagem vai botar você de pé.
Pedro
não esperou João terminar de comer. Atravessou logo para a cela ao lado.
Enquanto o amigo não atravessava, ele ficou tentando chamar a atenção de Olavo,
achando que poderia ser visto por ele. Fez de tudo, mas ele não registrava a
sua presença. Quando João passou para a outra cela, Pedro comentou:
-
João, este gajo também está morto. Cheguei à conclusão que estou cá com dois
ex- vivos. Como pode isso?
-
Pedro, só rindo mesmo de você, cara! Engraçado que ainda não percebeu que você
é o único morto aqui!
-
És mesmo um brincalhão! Ô gajo, tu sabes que estou vivinho da Silva! És muito
engraçado! Senti até vontade de dar umas boas gargalhadas! Vou fazer igual como
fizeram os guardas: Ah! Ah! Ah! É melhor pegar as ferramentas e ir ao trabalho!
-
Eu é que tenho que rir. Sabe de uma coisa: vou trabalhar que é o melhor que
faço. Então, localiza logo o ponto certo! Enquanto o amigo aí não se recupera,
vou fazer o trabalho sozinho.
Continua semana que vem...
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