terça-feira, 16 de junho de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 13

continuando...
Dessa vez Olavo não fez nenhum comentário. Parecia que já estava começando a aceitar o amigo de João. Pedro ficou parado achando que ele fosse falar alguma coisa, mas como nada foi dito, ele foi marcar o lugar da passagem da água. Ficava exatamente no centro da cela. Era uma pedra um pouco maior. Pedro já estava com a cabeça enterrada no granito. Depois desceu completamente o corpo. Voltou e informou ao amigo que o córrego dava para uma pessoa, do tamanho dele, quase ficar de pé. Olavo ouvia João falar sozinho, não interrompeu em momento algum, mas ficava sorrindo baixinho. O seu olhar demonstrava o que ia no seu coração. Ria e pensava:
- Coitado. Esse tempo todo no cárcere, já fez uma ferida no seu cérebro. Está ficando doidinho. Será que vou ficar assim também?
João observou que Olavo não tirava o olho dele. Não sentiu que o sorriso dele fosse de zombaria, pelo contrário parecia que vinha com uma carga de pesar. Disse:
- Ô cara! Ainda está achando que estou ficando maluco? Escuta só! Pedro vai tirar a gente daqui! Você acha que estou falando sozinho, não é? Quando eu conseguir tirar essa laje aqui, você vai me dar razão. Vou achar o córrego que ele me indicou. Vê se melhora logo pra me ajudar.
- Tudo bem. Se tivesse uma vodka aqui, até que eu ia me recuperar muito mais rápido. Uma pequena dose e já estaria em pé.
- Você é alcoólatra?
- Não. Claro que não. Sou comunista. Mas só bebo de vez em quando. E tem que ser vodka, pois eu me sinto dentro da Rússia. E você, bebe?
- Não. Nunca botei uma gota sequer na boca. Tenho um irmão alcoólatra. É bem mais velho do que eu. Eu cresci vendo ele sempre bêbado. Acho que nunca percebeu que eu cresci do lado dele. É muito triste você ver uma pessoa se acabar lentamente. É um suicídio gota a gota. É horrível conviver com um viciado. Acho que por isso eu nunca quis beber. Quando sair daqui, vou tentar salvá-lo.
- Como? O pé de cana só pára quando ele quer!
- Mas no caso do meu irmão, ele vai parar quando eu quiser. Pode escrever aí.
- Como assim?
- Se não tivesse sido preso, neste momento o meu irmão já estaria bem. Eu e um amigo, químico, inventamos uma forma de frear o efeito devastador do álcool. Vamos chamar de dosador de álcool. A pessoa vai poder beber o quanto quiser de bebida alcoólica. E não vai ficar embriagado. O organismo vai absorver só o necessário. E ele vai ter a sensação de saciedade, mas nunca vai ficar bêbado. A bebida quando chegar ao estômago, em contato com a substância, que vou chamar de elidal, vai evaporar. Estranho não é? Vai sair em forma de gases, antes de entrar na circulação sangüínea. Somente o álcool vai evaporar. A água e outras substâncias benéficas, vão ficar. Na fórmula tem um componente que vai dar a sensação de alegria, mas sem embriagar. Quem tomar, só vai ficar com a parte “boa”, sem passar pelo excesso etílico, que faz chegar até a depressão. A pessoa vai chegar num ponto, que não vai ter mais vontade de continuar bebendo. Além de ter todos os órgãos protegidos. Adeus à cirrose hepática, causada pelo álcool.
- Que coisa de doido! Cara, você é muito doido mesmo! Isso é um sonho!
- Ô gajo! Por que não me contaste isto?
- Pedro, não tive tempo.
- Meu irmão! Agora eu saquei o seu estado mental! Cara, você está pirando! “Porra”, cara! Aonde já se viu beber um, dois, três litros de cana e não ficar bêbado! Por isso você fica falando com fantasma... Cara, você tem que ter os pés no chão. Eu custei a acreditar no seu amigo do outro mundo, mas já estava até aceitando. Mas agora estou percebendo que isso aqui está mexendo com a sua cabeça. Camarada. Nós comunistas estamos preparados para a adversidade. Podemos até tombar, mas não caímos de modo algum. Sabe por quê? O nosso partido é o nosso Deus. O Deus de vocês, não existe, é pura invenção da sua igreja. Não tem nada de concreto, de objetivo, de verdadeiro. É um velho que castiga. Que manda você para o inferno. Por isso é que tem uma porrada de gente doida. Vou ter dizer uma coisa: a morte não nos incomoda. Sabe por quê? Porque nós nos preocupamos com a vida. O partido está preocupado é com o bem estar do homem. Se você tem dois pães, você tem que dar um ao camarada que não tem nenhum. Vocês não realizam nada, porque têm medo, pois se estiverem errados, podem ir para o inferno. Alguém botou um inferno lá pra vocês. Pode ver que o imperialismo norte americano está por trás disso. Eles inventaram também uma falsa liberdade. É uma liberdade que escraviza os outros povos. Veja o que eles semearam pelas Américas. Uma corja de ditadores sanguinários. Nós, comunistas, somos sadios. Não enlouquecemos.
- Você fez um discurso e tanto. Puxou a brasa para a sua sardinha. O comunista é sadio! Não enlouquece? Me conta outra! Quer mais louco do que Stalin?
- Stalin não foi louco! Foi um grande líder! Um grande estadista. Se não fosse ele parar aquele louco do Hitler, a humanidade hoje estaria completamente afundada na miséria. Somente o povo ariano é que estaria na abastança. O restante do mundo, uma parte estaria morta e a outra escravizada.
- Olavo, Stalin foi um ditador cruel, isso sim! O comunista é cego?
- Ô gajo. Vais perder tempo com uma coisa que não pode ser mudada. Já aconteceu. Ninguém muda a história. Só se pode evitar que ela se repita.
- Tudo bem Pedro. Vou me concentrar no que tenho que fazer. Você tem razão. Essa história é a mais importante. Porque essa é a nossa história.
- Já está falando com o morto de novo? Você tem que entender, que quando a gente morre, acaba tudo. Não tem esse papo de alma, de espírito... Morreu, acabou. Eu entendo que você criou uma fantasia, para poder se manter vivo. No meu caso e dos meus camaradas, o que nos mantêm vivos, é o nosso ideal.
- É! Você já estava quase moribundo! Se não fosse Pedro, você teria morrido! Você é ingrato, cara. Você tinha que agradecer a ele.
- Olavo preferiu se calar. Mas ficou ruminando as palavras de João. Virou para o outro lado e fechou os olhos. Tinha falado muito e estava se sentindo cansado. Depois virou novamente para João e pediu um pouco d’água. Bebeu e deixou a vasilha do lado. Agradeceu, fechou os olhos novamente e dormiu.
Pedro saiu de onde estava. Preferiu ficar à parte e não participar muito da conversa dos dois. Cada pessoa tem a sua verdade. Se essa verdade não causa estrago em alguém, então tudo bem. Olhou para o amigo e apontou de novo a pedra que seria mais fácil de ser retirada. Depois comentou:
- Amigo, não te incomodes com o gajo. Ele é apenas um idealista. Não espere muito dele, pois só poderá dar o que tem. Ele só se preocupa em alimentar o corpo, mas deixa a alma morrer de fome. Um dia ele desperta.
- Tudo bem. Mas ele parece ser uma pessoa boa, você não acha?
- Parece. Eu não posso fazer um julgamento preciso. E, na realidade, nem julgá-lo. Não podemos esquecer que ele tem uma ideologia, pelo que entendi, radical. Uma ditadura, não é isso;
- Afirmativo. É isso mesmo. Uma ditadura de esquerda. Aqui, estamos vivendo ou morrendo numa ditadura de direita. É tudo a mesma merda!
- Então, sem querer julgá-lo, não dá para avaliar se o gajo é pessoa boa ou má. Mas como todos que aqui estão são “buena gente”- não é assim que o espanhol fala? – vamos acreditar que o gajo seja do bem também.
Algumas semanas se passaram. Nesse período Olavo ficou totalmente recuperado. João estava pelas tabelas e completamente desanimado. A sua ferramenta, a única, já estava bem gasta e ele ainda não tinha conseguido soltar nenhuma pedra do chão. Nem sabia dizer como a fivela do seu cinto estava resistindo tanto. Tinha momento que olhava para a ferramenta e achava que ela tinha melhorado. Como?  Aquilo era um verdadeiro milagre. Ele se sentou apresentando uma grande tristeza. Cobriu o rosto com as mãos e seus olhos se encheram de lágrimas. Pedro observando o estado do amigo foi em seu socorro.
- Fé! Fé, João! Tu vais conseguir! Ouça-me. Observaste que o gajo já está totalmente recuperado? Ela já poder ajudá-lo. Ânimo, meu amigo!
- Ânimo? Fé? Conseguir o quê, Pedro? A única ferramenta que nós temos é esta fivela, e já está bem gasta. Observou que tenho que trabalhar com extremo cuidado? Só posso raspar a parte mais macia. Mesmo assim ela não está resistindo. Com essa morosidade toda, só vamos acabar daqui a trinta anos, mais ou menos.
- Ô companheiro! Você tem que acreditar! Acredita como você acredita que está falando com uma alma de outro mundo! Nós vamos conseguir camarada. Agora somos nós dois. Nós vamos sair daqui!
- Nós dois não, nós três, ó pá! E antes que eu esqueça: alma de outro mundo é o “cacete”!
- Está bem. Pedro está “puto”, porque você o chamou de alma de outro mundo. Mas vamos ao que interessa. Você tem alguma coisa aí que possa ser usado como ferramenta?
- Não. Nem cinto eu tenho. Não sei como deixaram você com o seu. Temos que achar alguma coisa. Temos que pensar.
Enquanto os dois conversam, Pedro botou a cabeça para fora e ficou olhando o corredor, que estava na penumbra. Uma luz pálida tentava iluminar alguma coisa. Enquanto observava, Pedro pensava. De repente deixou escorregar um sorriso. Voltou para dentro da cela e falou para o amigo.
- João. Arranjei as ferramentas.
- Que ferramentas?
- O prato e a caneca que eles não recolheram.
- E o que adianta Pedro? Se eles não encontrarem o prato e a caneca, vão abrir a porta e aí a gente está frito!
- Ô camarada, o que é que você está falando?
- Acredite ou não, estou conversando com Pedro. Ele está dizendo pra gente usar o prato e a caneca...
- Até que não é má idéia! É um risco, eu sei. Mas não devemos descartar totalmente. A verdade é que a gente está ferrado mesmo! De uma forma ou de outra vamos morrer neste buraco fedorento. Então devemos arriscar!
- Você é prático mesmo, hein! Morrer... Eu não estou a fim de morrer não! Temos que usar de cautela. Não devemos chamar a atenção. É melhor que nos esqueçam aqui. Aí sim, vamos ter mais chance de fugir.
- Não fala besteira, ó gajo! A vida é feita de riscos! Mas o risco que vamos correr é muito pequeno. Eu tenho certeza que tudo vai dar certo. Podemos usar o prato e a caneca sem precisar botar a vida em risco. Escuta só. Lembra daquele gajo que saiu daqui correndo? Então, ele não retirou as vasilhas.
- E daí?
- E daí é que nunca foram recolhidas. As outras já foram trocadas algumas vezes e elas nunca foram mexidas.
- Isso mesmo! Então eu vou pegá-las!
- Agora não.
- Por quê?
- Os guardas estão chegando.
- Não! Os guardas estão chegando? Que droga! Vou rápido fechar a janela!
João passou rapidamente para a sua cela e fechou a janela que dava para o mar. Dessa vez Olavo não fez comentário algum, apenas observou e aguardou o desfecho do papo de João com Pedro, a alma do outro mundo.
Três minutos se passaram até que os guardas finalmente abriram a portinhola. Pegaram a vasilhas usadas e colocaram novas. As antigas permaneceram no mesmo lugar. Pedro então sorriu para João e colocou a cabeça dentro da parede, ali ficando até que os guardas fechassem atrás de si a porta pesada. Pensou que aquela porta que tinha ajudado a colocar ali, servia para manter pessoas ditas perigosas encarceradas até a morte. Gente sem identidade, sem nome, que era esquecida naqueles cubículos que só eram abertos depois que se passasse uma semana sem a comida e a água serem tocadas. Abriam somente para conferir o óbito. Pegavam o defunto, embrulhavam e levavam para ser queimado numa fornalha. Nenhum vestígio era deixado sobre a passagem da pessoa por ali. Quando da sua construção, os corpos eram jogados no mar.

                              Continua semana que vem...

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