Dessa
vez Olavo não fez nenhum comentário. Parecia que já estava começando a aceitar
o amigo de João. Pedro ficou parado achando que ele fosse falar alguma coisa,
mas como nada foi dito, ele foi marcar o lugar da passagem da água. Ficava
exatamente no centro da cela. Era uma pedra um pouco maior. Pedro já estava com
a cabeça enterrada no granito. Depois desceu completamente o corpo. Voltou e
informou ao amigo que o córrego dava para uma pessoa, do tamanho dele, quase
ficar de pé. Olavo ouvia João falar sozinho, não interrompeu em momento algum,
mas ficava sorrindo baixinho. O seu olhar demonstrava o que ia no seu coração.
Ria e pensava:
-
Coitado. Esse tempo todo no cárcere, já fez uma ferida no seu cérebro. Está
ficando doidinho. Será que vou ficar assim também?
João
observou que Olavo não tirava o olho dele. Não sentiu que o sorriso dele fosse
de zombaria, pelo contrário parecia que vinha com uma carga de pesar. Disse:
-
Ô cara! Ainda está achando que estou ficando maluco? Escuta só! Pedro vai tirar
a gente daqui! Você acha que estou falando sozinho, não é? Quando eu conseguir
tirar essa laje aqui, você vai me dar razão. Vou achar o córrego que ele me
indicou. Vê se melhora logo pra me ajudar.
-
Tudo bem. Se tivesse uma vodka aqui, até que eu ia me recuperar muito mais
rápido. Uma pequena dose e já estaria em pé.
-
Você é alcoólatra?
-
Não. Claro que não. Sou comunista. Mas só bebo de vez em quando. E tem que ser
vodka, pois eu me sinto dentro da Rússia. E você, bebe?
-
Não. Nunca botei uma gota sequer na boca. Tenho um irmão alcoólatra. É bem mais
velho do que eu. Eu cresci vendo ele sempre bêbado. Acho que nunca percebeu que
eu cresci do lado dele. É muito triste você ver uma pessoa se acabar
lentamente. É um suicídio gota a gota. É horrível conviver com um viciado. Acho
que por isso eu nunca quis beber. Quando sair daqui, vou tentar salvá-lo.
-
Como? O pé de cana só pára quando ele quer!
-
Mas no caso do meu irmão, ele vai parar quando eu quiser. Pode escrever aí.
-
Como assim?
-
Se não tivesse sido preso, neste momento o meu irmão já estaria bem. Eu e um
amigo, químico, inventamos uma forma de frear o efeito devastador do álcool.
Vamos chamar de dosador de álcool. A pessoa vai poder beber o quanto quiser de
bebida alcoólica. E não vai ficar embriagado. O organismo vai absorver só o
necessário. E ele vai ter a sensação de saciedade, mas nunca vai ficar bêbado.
A bebida quando chegar ao estômago, em contato com a substância, que vou chamar
de elidal, vai evaporar. Estranho não é? Vai sair em forma de gases, antes de
entrar na circulação sangüínea. Somente o álcool vai evaporar. A água e outras
substâncias benéficas, vão ficar. Na fórmula tem um componente que vai dar a
sensação de alegria, mas sem embriagar. Quem tomar, só vai ficar com a parte
“boa”, sem passar pelo excesso etílico, que faz chegar até a depressão. A
pessoa vai chegar num ponto, que não vai ter mais vontade de continuar bebendo.
Além de ter todos os órgãos protegidos. Adeus à cirrose hepática, causada pelo
álcool.
-
Que coisa de doido! Cara, você é muito doido mesmo! Isso é um sonho!
-
Ô gajo! Por que não me contaste isto?
-
Pedro, não tive tempo.
-
Meu irmão! Agora eu saquei o seu estado mental! Cara, você está pirando!
“Porra”, cara! Aonde já se viu beber um, dois, três litros de cana e não ficar
bêbado! Por isso você fica falando com fantasma... Cara, você tem que ter os
pés no chão. Eu custei a acreditar no seu amigo do outro mundo, mas já estava
até aceitando. Mas agora estou percebendo que isso aqui está mexendo com a sua
cabeça. Camarada. Nós comunistas estamos preparados para a adversidade. Podemos
até tombar, mas não caímos de modo algum. Sabe por quê? O nosso partido é o
nosso Deus. O Deus de vocês, não existe, é pura invenção da sua igreja. Não tem
nada de concreto, de objetivo, de verdadeiro. É um velho que castiga. Que manda
você para o inferno. Por isso é que tem uma porrada de gente doida. Vou ter
dizer uma coisa: a morte não nos incomoda. Sabe por quê? Porque nós nos
preocupamos com a vida. O partido está preocupado é com o bem estar do homem.
Se você tem dois pães, você tem que dar um ao camarada que não tem nenhum.
Vocês não realizam nada, porque têm medo, pois se estiverem errados, podem ir
para o inferno. Alguém botou um inferno lá pra vocês. Pode ver que o
imperialismo norte americano está por trás disso. Eles inventaram também uma
falsa liberdade. É uma liberdade que escraviza os outros povos. Veja o que eles
semearam pelas Américas. Uma corja de ditadores sanguinários. Nós, comunistas,
somos sadios. Não enlouquecemos.
-
Você fez um discurso e tanto. Puxou a brasa para a sua sardinha. O comunista é
sadio! Não enlouquece? Me conta outra! Quer mais louco do que Stalin?
-
Stalin não foi louco! Foi um grande líder! Um grande estadista. Se não fosse
ele parar aquele louco do Hitler, a humanidade hoje estaria completamente
afundada na miséria. Somente o povo ariano é que estaria na abastança. O
restante do mundo, uma parte estaria morta e a outra escravizada.
-
Olavo, Stalin foi um ditador cruel, isso sim! O comunista é cego?
-
Ô gajo. Vais perder tempo com uma coisa que não pode ser mudada. Já aconteceu.
Ninguém muda a história. Só se pode evitar que ela se repita.
-
Tudo bem Pedro. Vou me concentrar no que tenho que fazer. Você tem razão. Essa
história é a mais importante. Porque essa é a nossa história.
-
Já está falando com o morto de novo? Você tem que entender, que quando a gente
morre, acaba tudo. Não tem esse papo de alma, de espírito... Morreu, acabou. Eu
entendo que você criou uma fantasia, para poder se manter vivo. No meu caso e
dos meus camaradas, o que nos mantêm vivos, é o nosso ideal.
-
É! Você já estava quase moribundo! Se não fosse Pedro, você teria morrido! Você
é ingrato, cara. Você tinha que agradecer a ele.
-
Olavo preferiu se calar. Mas ficou ruminando as palavras de João. Virou para o
outro lado e fechou os olhos. Tinha falado muito e estava se sentindo cansado.
Depois virou novamente para João e pediu um pouco d’água. Bebeu e deixou a
vasilha do lado. Agradeceu, fechou os olhos novamente e dormiu.
Pedro
saiu de onde estava. Preferiu ficar à parte e não participar muito da conversa
dos dois. Cada pessoa tem a sua verdade. Se essa verdade não causa estrago em
alguém, então tudo bem. Olhou para o amigo e apontou de novo a pedra que seria
mais fácil de ser retirada. Depois comentou:
-
Amigo, não te incomodes com o gajo. Ele é apenas um idealista. Não espere muito
dele, pois só poderá dar o que tem. Ele só se preocupa em alimentar o corpo,
mas deixa a alma morrer de fome. Um dia ele desperta.
-
Tudo bem. Mas ele parece ser uma pessoa boa, você não acha?
-
Parece. Eu não posso fazer um julgamento preciso. E, na realidade, nem
julgá-lo. Não podemos esquecer que ele tem uma ideologia, pelo que entendi,
radical. Uma ditadura, não é isso;
-
Afirmativo. É isso mesmo. Uma ditadura de esquerda. Aqui, estamos vivendo ou
morrendo numa ditadura de direita. É tudo a mesma merda!
-
Então, sem querer julgá-lo, não dá para avaliar se o gajo é pessoa boa ou má.
Mas como todos que aqui estão são “buena gente”- não é assim que o espanhol
fala? – vamos acreditar que o gajo seja do bem também.
Algumas
semanas se passaram. Nesse período Olavo ficou totalmente recuperado. João
estava pelas tabelas e completamente desanimado. A sua ferramenta, a única, já
estava bem gasta e ele ainda não tinha conseguido soltar nenhuma pedra do chão.
Nem sabia dizer como a fivela do seu cinto estava resistindo tanto. Tinha
momento que olhava para a ferramenta e achava que ela tinha melhorado.
Como? Aquilo era um verdadeiro milagre.
Ele se sentou apresentando uma grande tristeza. Cobriu o rosto com as mãos e
seus olhos se encheram de lágrimas. Pedro observando o estado do amigo foi em
seu socorro.
-
Fé! Fé, João! Tu vais conseguir! Ouça-me. Observaste que o gajo já está
totalmente recuperado? Ela já poder ajudá-lo. Ânimo, meu amigo!
-
Ânimo? Fé? Conseguir o quê, Pedro? A única ferramenta que nós temos é esta
fivela, e já está bem gasta. Observou que tenho que trabalhar com extremo
cuidado? Só posso raspar a parte mais macia. Mesmo assim ela não está resistindo.
Com essa morosidade toda, só vamos acabar daqui a trinta anos, mais ou menos.
-
Ô companheiro! Você tem que acreditar! Acredita como você acredita que está
falando com uma alma de outro mundo! Nós vamos conseguir camarada. Agora somos
nós dois. Nós vamos sair daqui!
-
Nós dois não, nós três, ó pá! E antes que eu esqueça: alma de outro mundo é o
“cacete”!
-
Está bem. Pedro está “puto”, porque você o chamou de alma de outro mundo. Mas
vamos ao que interessa. Você tem alguma coisa aí que possa ser usado como
ferramenta?
-
Não. Nem cinto eu tenho. Não sei como deixaram você com o seu. Temos que achar
alguma coisa. Temos que pensar.
Enquanto
os dois conversam, Pedro botou a cabeça para fora e ficou olhando o corredor,
que estava na penumbra. Uma luz pálida tentava iluminar alguma coisa. Enquanto
observava, Pedro pensava. De repente deixou escorregar um sorriso. Voltou para
dentro da cela e falou para o amigo.
-
João. Arranjei as ferramentas.
-
Que ferramentas?
-
O prato e a caneca que eles não recolheram.
-
E o que adianta Pedro? Se eles não encontrarem o prato e a caneca, vão abrir a
porta e aí a gente está frito!
-
Ô camarada, o que é que você está falando?
-
Acredite ou não, estou conversando com Pedro. Ele está dizendo pra gente usar o
prato e a caneca...
-
Até que não é má idéia! É um risco, eu sei. Mas não devemos descartar
totalmente. A verdade é que a gente está ferrado mesmo! De uma forma ou de
outra vamos morrer neste buraco fedorento. Então devemos arriscar!
-
Você é prático mesmo, hein! Morrer... Eu não estou a fim de morrer não! Temos
que usar de cautela. Não devemos chamar a atenção. É melhor que nos esqueçam
aqui. Aí sim, vamos ter mais chance de fugir.
-
Não fala besteira, ó gajo! A vida é feita de riscos! Mas o risco que vamos
correr é muito pequeno. Eu tenho certeza que tudo vai dar certo. Podemos usar o
prato e a caneca sem precisar botar a vida em risco. Escuta só. Lembra daquele
gajo que saiu daqui correndo? Então, ele não retirou as vasilhas.
-
E daí?
-
E daí é que nunca foram recolhidas. As outras já foram trocadas algumas vezes e
elas nunca foram mexidas.
-
Isso mesmo! Então eu vou pegá-las!
-
Agora não.
-
Por quê?
-
Os guardas estão chegando.
-
Não! Os guardas estão chegando? Que droga! Vou rápido fechar a janela!
João
passou rapidamente para a sua cela e fechou a janela que dava para o mar. Dessa
vez Olavo não fez comentário algum, apenas observou e aguardou o desfecho do
papo de João com Pedro, a alma do outro mundo.
Três
minutos se passaram até que os guardas finalmente abriram a portinhola. Pegaram
a vasilhas usadas e colocaram novas. As antigas permaneceram no mesmo lugar.
Pedro então sorriu para João e colocou a cabeça dentro da parede, ali ficando
até que os guardas fechassem atrás de si a porta pesada. Pensou que aquela
porta que tinha ajudado a colocar ali, servia para manter pessoas ditas
perigosas encarceradas até a morte. Gente sem identidade, sem nome, que era
esquecida naqueles cubículos que só eram abertos depois que se passasse uma
semana sem a comida e a água serem tocadas. Abriam somente para conferir o
óbito. Pegavam o defunto, embrulhavam e levavam para ser queimado numa
fornalha. Nenhum vestígio era deixado sobre a passagem da pessoa por ali.
Quando da sua construção, os corpos eram jogados no mar.
Continua semana que vem...
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