Pedro
voltou e deu ok para João pegar as vasilhas. Ele acariciou-as emocionado. Já ia
começar a preparar as ferramentas, quando Pedro advertiu-o.
- Ô gajo! Não vais te alimentar? Tu não podes
adoecer!
João
acenou com a cabeça, mas antes retirou a pedra da parede para abrir a janela e
deixar passar a claridade. Pegou o prato e pela primeira vez comeu com prazer.
Naquele momento aquela lavagem parecia um manjar dos deuses. Comia deixando
escapar um sorriso de satisfação.
Do outro lado Olavo observava o amigo. Sorriu
e comentou:
-
É camarada! Ou você é adivinho, ou realmente fala com os mortos. Acho que vou
acreditar em você e abraçar a segunda hipótese. Seria bom se o seu amigo
defunto me deixasse vê-lo.
-
Quem sabe! Quem sabe!
-
Não é só querer ver e pronto. É preciso ter olhos para ver. Avisa a ele, João.
João
preferiu não comentar a colocação de Pedro e voltou a comer. Olavo por sua vez
também pegou o seu prato e sentou-se num canto e procurou almoçar. Ou jantar,
tendo em vista que era apenas uma refeição ao dia. Depois de se alimentarem,
começaram a preparar as ferramentas. João gostou do entusiasmo do amigo e Pedro
começou a sentir simpatia por Olavo. Comentou baixinho, pensando que ele
pudesse ouvi-lo:
-
João, o gajo parece-me melhor... Uma pessoa melhor. Aquele jeito de jumento
mudou. Você não acha?
-
Pode falar alto que ele não vai te escutar não! Nunca percebi que ele parecesse
com um jumento, mas eu concordo que ele está melhor sim!
-
Que jumento é esse? Fala pro seu amigo aí que jumento é ele e que eu estou
realmente ótimo! E estou pronto para outra rebordosa! Fala pra ele!
-
João responda por mim. Diga ao gajo que ouço tudo que ele diz. E que em
hipótese alguma eu quis ofender o jumento.
-
Está bom Pedro. Olavo, ele mandou te falar, que o... Não é Pedro? Ele pode
falar à vontade que você escuta tudo.
-
Não quiseste falar do jumento...
-
Não, melhor assim. Então, Olavo, pode falar o que você quiser.
-
Assim está bom. Mas ele falou mais alguma coisa?
-
Sem importância.
-
Já estou eu acreditando no fantasma. Só assim nós dois vamos ficar pirados
juntos!
Olavo
falou e em seguida deu uma risada. Com a piadinha até Pedro riu. João
aproveitou e fez um comentário:
-
Olavo, Pedro gostou da sua piada e riu também.
-
Foi mesmo? Já estou começando a gostar desse fantasma. Um camarada fantasma!
Aonde já se viu uma coisa dessas! Quando sair daqui, com certeza, eu vou falar
sobre isso. Os camaradas vão rir na minha cara.
-
O gajo é engraçadinho! João, é melhor acelerar o trabalho. Este gajo gosta
muito de jogar conversa fora. Está na cara que ele gosta de brincar.
-
Está bem Pedro. Vamos ao trabalho, Olavo?
Olavo
sorriu e entregou a João um pedaço do prato que ele tinha preparado para servir
de ferramenta. Os dois se entregaram de corpo e alma ao trabalho. Foi mais de
um mês raspando as juntas do chão. Um trabalho de pura paciência. Com medo, não
raspavam com muita força, para não gastar as ferramentas. Só que por incrível
que pareça elas não apresentavam praticamente nenhum desgaste. Olavo ficou meio
intrigado com aquilo, já que com certeza as ferramentas deveriam ter acabado há
muito tempo, mas acabou não comentando nada com João. Ele até tentou, mas não
conseguiu. Alguma coisa tirou-o do foco. As suas mãos estavam bem machucadas e
no momento em que ia fazer o comentário, doeu muito. Parece que tinha passado
uma borracha na sua cabeça. Esqueceu completamente o fato. Pedro sorriu e
colocou a cabeça mais uma vez pela parede. Observava todo o movimento que
acontecia do lado de fora. Ia algumas vezes até o pátio e voltava e ficava com
a metade do corpo dentro da parede e a outra para dentro da cela. Quando os
guardas se aproximavam, ele avisava.
João corria para o seu lado e fechava a janela. E assim foi o mês todo e mais
um pouquinho. Dava para se perceber nitidamente o desânimo se apoderando dos
dois. Mas Pedro dava uma cutucada em João e esse falava com Olavo. Não tinha
como, naquela altura, abandonar o projeto de fuga. Não tinham coisa melhor para
fazer mesmo, então o negócio era continuar. Então no trigésimo terceiro dia
veio a grande surpresa. Olavo estava sentado comendo. E João tinha atravessado
para a sua cela para pegar a sua refeição. De repente alguma coisa estalou. Deu
o segundo e em seguida um som oco se espalhou pelas duas celas. O bloco de
pedra se soltou e caiu no fundo da vala. Olavo imediatamente chamou por João,
mas ele já estava com a cara enfiada na passagem de uma cela para a outra.
-João!
João! A pedra desceu! Camarada! Graças a Deus a nossa saída está pronta!
Pedro
olhou para Olavo e depois para João, que estava mudo e surpreso, parecendo que
não estava acreditando no que estava acontecendo, e falou sorrindo:
-
Olha isto, João! O gajo falou em Deus! Ele não é ateu? Sabes de uma coisa: não
se fazem mais ateus como antigamente!
-
Pedro deixa pra lá. Eu nem sei se é verdade. Será que é real o que estou vendo?
Será que vou sair daqui mesmo? O que você falou mesmo? O negócio agora é sair
daqui!
Mal
terminou de falar e já estava pulando para o outro lado. Se aproximou do buraco
aberto no chão e comentou, com os dedos comprimindo as narinas:
-
Meu Deus, isso fede muito! Pedro que história é essa de riacho! Isso aqui é
esgoto puro!
-
Mas era um córrego de águas cristalinas. Deve ser esses buracos que usam para
fazerem as suas necessidades fisiológicas, que acabaram comprometendo a pureza
deste córrego. Nunca vi um povo para cagar tanto! Eles querem se livrar da
merda e acabam jogando em qualquer lugar! Mas isso agora não vem ao caso. Estas
preocupações, neste momento, não têm importância. O que importa realmente, é
fugirmos daqui. Vou entrar para fazer o reconhecimento do terreno. Isto é, do
buraco.
- Mas Pedro, você não ajudou a fazer estes
buracos para que pudéssemos fazer as nossas necessidades fisiológicas?
-“É.
Mas... nós fizemos uns buraquinhos. Comíamos pouco, logicamente cagávamos
pouco. Estou entrando.
Olavo olhava para João, sem entender a
conversa dele com o fantasma.
-
Ô camarada! Que papo é esse? Já está conversando com a alma do outro mundo de
novo? Vamos entrar no buraco?
-
Pedro vai entrar primeiro. Vai dar uma olhada e depois a gente entra.
Pedro
entrou e a poucos metros depois botou a cabeça por entre um bloco de pedra e
comentou:
-
João, podes entrar que aqui dá para um homem caminhar em pé. Ou quase. É só
fazeres uma pequena curvatura no pescoço. Sem problema. Venham os dois. Mas
antes feches a janelinha. Coloques a pedra no lugar.
João atravessou o vão entre as celas
rapidamente. Voltou e comentou com Olavo:
-
Acho que você nem entendeu a minha saída. Pedro falou pra gente descer, mas
antes tinha que fechar o buraco na parede. Parece que tem alguma claridade lá
embaixo. Pedro está muito escuro aí?
-
Podes descer! Não é como estar debaixo do sol, mas dá para se enxergar! Está
praticamente igual aí em cima! Então venham! A liberdade é um sol de primeira
grandeza! Não tem escuridão alguma que possa ofuscar este brilho! Venham!”
João
desceu primeiro. O mau cheiro era tanto, que fez ânsia de vômito. Depois tentou
se equilibrar. A situação era aquela e tinha que encarar. Mas se tremeu dos pés
à cabeça quando se lembrou de ratos e cobras. Olavo já estava do seu lado.
Colocou a mão no ombro do amigo e comentou:
-
Amigo será que tem rato aqui? E cobra? Tenho um medo danado dos dois!
-
Camarada, não tem ratos e cobras piores do que esses que nos colocaram aqui. Se
não incomodarmos esses “ilustres” moradores, vamos sair bem. Vou à frente. Está
bem assim?
João
apenas confirmou com a cabeça e assim foi feito. Olavo tomou à dianteira e foi
rebocando João. Foram caminhando devagar e cuidadosamente até chegarem próximos
de Pedro. A iluminação não era das melhores, mas dava para se enxergar alguma
coisa. Olavo ficou encucado com aquilo e comentou com João.
-
Companheiro. De onde será que vem essa claridade? Não está um dia ensolarado,
mas está uma maravilha! Mas que eu estou achando isso estranho, eu estou!
-
Não encuca não! Lembra que as ferramentas também não acabavam? Isso só pode ser
coisa de Pedro!
-
Será que a alma do outro mundo está mexendo com a natureza?
-Sei
lá! Não quero nem pensar nisso! Tem hora que até duvido se estou vivo mesmo!
Ele sempre disse que o único morto aqui era eu. E você também, ô camarada! Você
já está acreditando mesmo que Pedro é um fantasma? Agora já está acreditando
até em Deus!
-
Calma camarada. Isso vai contra tudo que acredito de verdade. E que é a única
verdade. Mas...
-
Mas...
-
É o seguinte. Camarada, estou realmente confuso. Se não estou morto, devo estar
muito doente. Aonde já se viu um comunista convicto acreditar nessas coisas!
Como disse anteriormente a você, é melhor ter um amigo imaginário. As crianças
não arranjam sempre um amigo desses? Então vou acreditar até sair daqui. Depois
volto a ser um comunista com as verdades absolutas do partidão.
Continua semana que vem...
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