terça-feira, 7 de agosto de 2018

Sem Inspiração - Parte Final

Continuando...

Falou numa cachaça quarentona, logo a minha boca se encheu d’água. Mas uma bruta interrogação cravou na minha cabeça. – Esse cara só liga pra me aporrinhar! O que deu nele para me convidar, cheio de satisfação no convite, depois de anos enchendo o meu saco?
         Saí cauteloso. Vou segredar que quase voltei. Bateu uma dúvida danada. Por insistência da minha curiosidade, fui até ao apartamento do vizinho. Fui de escada. Mas parava de degrau em degrau; de tanto pensar, tive a sensação de que estava dissecando o meu cérebro. O pior é que não encontrava rastro que me levasse a esse convite. Quando me dei conta, já estava na porta dele. Tive vontade de voltar. - Vai que o cara está armando uma arapuca pra mim – pensei, com o dedo quase apertando a campainha. Fiz menção de voltar no mesmo instante, mas antes que fizesse qualquer movimento, a porta se abriu num repente. Apareceu uma figura sorridente, com uma garrafa na mão, mandando-me entrar. Escancarou a porta e se afastou bem, deixando o caminho livre para que eu entrasse. Não tive escolha. Mas primeiro olhei para a outra mão, para ver se não tinha uma faca, ou um porrete, ou até um revolver. Sei lá! Vai que o cara estava cheio de reclamar e quisesse me eliminar! Ninguém sabe o que vai na cabeça da outra pessoa!
          Falei meio que entre dentes. Foi tão baixo, que ele me perguntou se eu estava com algum problema. Acenei que não e me sentei na cadeira que ele me apontava. Na mesa já tinha um cálice. Ele foi até um armário e pegou outro. Antes de abrir a garrafa, mostrou-me. Vi o nome, mas acabei não decorando. Cuidadosamente abriu a garrafa e disse:
         - Sinta só o cheirinho dela! Essa cana é de primeira!
         Cheirei, mas me abstive de qualquer comentário. Apenas balancei a cabeça, concordando. Ele então sorriu. Em seguida encheu o meu cálice e depois o dele. Mas antes de beber, esticou a sua mão e disse um sonoro obrigado. Eu apertei a sua, sem saber o motivo do agradecimento. Aí finalmente eu falei:
         - Meu irmão, não estou entendendo o agrado. O que foi que eu fiz?
          Ele sorriu, bebeu a cachaça numa golada só e disse:
         - Ué! Se você não tivesse passado o nome do técnico do ar refrigerado para a minha mulher, eu ia estar ferrado nesse verão! Você foi o máximo!
         Depois do que ele falou, finalmente consegui esboçar um sorriso. Fiquei aliviado realmente. Uma pequena gentileza operou um milagre. Estava satisfeito e com sede. Peguei o cálice, cheirei a bebida e esvaziei numa golada só. Percebi que ele também estava satisfeito. Tanto que encheu novamente o meu cálice e depois o dele. Em seguida levantou-o e propôs um brinde. Aceitei e brindamos. Depois do terceiro gole já estava rindo com descontração. A conversa rolou com leveza. Mas quando percebi que começávamos a tropeçar nas letras, me despedi e voltei para casa.
           Como encarar o lápis e o papel novamente?  Fiquei me perguntando no trajeto. Entrei em casa e fui direto para a mesa do escritório. Peguei a caneta e coloquei-a com a ponta virada na direção do papel. Tive que me concentrar para fazer uma mira. A sensação naquele momento era de que o papel estava balançando. Ele não parava para que eu escrevesse alguma coisa. Realmente a sua cooperação era zero. - Não tem santo que me faça chegar até a tal folha? – perguntei irritado. Mas o que fazer? Então comecei a pedir a todos os santos, pelo menos os que eu me lembrava, que me ajudassem. Tinha que produzir alguma coisa. O meu dia não podia passar em branco. Acho que depois de tanta reza, a folha de papel resolveu encostar-se à ponta da caneta. Ou o contrário? Até agora não consegui saber. Entretanto alguma coisa aconteceu: risquei o papel. Isso me animou. – A inspiração está chegando! – pensei.
           Senti uma cutucada nas costelas. Abri os olhos e lá estava a minha mulher me perguntando se eu não iria para a cama. Falei alguma coisa entre dentes, tipo o rabugento, que ninguém sabe o que é. Olhei para o papel e ele estava todo riscado. Depois dei uma olhadela para ela, sorri um sorriso sem expressão e me levantei. Ela sem falar mais nada, me deixou e foi dormir. Peguei o papel e encarei todos aqueles riscos. Procurei alguma coisa no meio deles, que não sabia o que era, uma procura só por procurar, e meio decepcionado amassei-o e joguei-o  no lixo. – Amanhã é outro dia. – pensei.  E fui deitar sem saber a hora. Mas antes, olhei para uma cadeira que tinha acabado de tropeçar, fiquei com raiva e bati com ela no chão com toda a força que tinha naquele momento. A raiva era grande, a ponto de bater também com a porta. A minha mulher já estava ferrada no sono, e por sorte minha ela não acordou.  Não demorou muito e o interfone tocou. Abri a porta, olhei na direção da cozinha e dei uma banana pra ele. Fechei a porta, mas dessa vez sem batê-la. Sorri e me joguei na cama.

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