quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Assombração - Parte 8

Continuando...
          - Sabe Doutor, quando o senhor vir uma pessoa, vai nos perdoar e dar razão ao nosso comportamento, quando da sua chegada. Acho que todos nós tínhamos a certeza, que Assombração tinha apenas trocado de roupa.
         Dr. Antou interrompeu bruscamente as escusas do Dr. Justus, interrogando-o:
          - Mas por que assombração?
          Dr. Justus, calmamente, foi tentando colocar o colega a par do mistério que envolvia o rapaz.
          - Todos nós só o conhecemos por esse apelido. É um mistério, a sua origem. Ninguém sabe quem ele é. Ele não sabe de onde veio e desconhece completamente o nome dos pais. 
          - Mas ninguém investigou? - perguntou o Dr. Anton.
          - Não sei. Acho que não.
          - Ninguém foi à delegacia? Não procuraram na lista de pessoas desaparecidas?
          - Acho que ninguém, realmente, se interessou. Apenas perguntaram quem ele era. Mas ficou só por aí. Como o rapaz tem boa apresentação, não se mistura com os mendigos, nem com pessoas suspeitas e nunca foi visto usando álcool ou drogas, preferiram fazer vista grossa. O rapaz não estava incomodando ninguém, logo era melhor deixá-lo do jeito que estava. Tem uma coisa interessante. Uma não, tem mais do que uma. Você não vai acreditar. Ele, sendo um morador de rua, é uma pessoa asseada. Alguém na cidade deixa-o usar o seu banheiro.  E tem outra: mora nas árvores do passeio público. Ele agora é parte do folclore do lugar. Uma pessoa educadíssima e da paz.
          Dr. Anton ouvia atentamente o relato. Preferiu não interrompê-lo. A enfermeira, por outro lado, aproveitou a pausa do Dr. Justus, que propositadamente tinha parado para sentir o efeito que as suas palavras estavam causando, e ofereceu mais uma rodada de café, que foi prontamente aceita pelos dois.  Enquanto a enfermeira foi pegá-lo, Dr. Anton acabou fazendo um aparte:
           - Doutor eu estou intrigado com isso. Não estou nem acreditando que... Há quanto tempo ele apareceu por aqui? Tem certeza que realmente ele se parece comigo?
             Antes de responder, o Dr. Justus abriu uma gaveta, retirou um envelope e depois falou:
            - Se vocês se parecem? Meu Deus! É impressionante a semelhança de vocês! Mesmo ele trajando roupas doadas pela igreja local, é uma pessoa muito elegante. Está sempre limpo, de barba feita e cabelos cortados. Soube que se alimenta muito bem. Leva uma vida regrada. Os exames que fizemos com ele, mostraram ser ele uma pessoa de uma saúde invejável. Ele me impressiona muito. Você perguntou sobre o tempo que circula pela redondeza. Então, pelo que nos foi informado, deve estar por aqui, há mais ou menos cinco anos. 
              O médico interrompeu o seu relato, achando que o colega fosse falar alguma coisa, aproveitou e abriu o envelope. Mas não foi o que aconteceu de imediato.  O Dr. Anton a princípio abortou algum comentário, entretanto, depois de mostrar uma expressão enigmática, deixando aflorar um leve sorriso, perguntou:
          - O senhor disse cinco anos?
          - Sim. Pode ser mais ou menos isso. Não tenho muita certeza. Mas o mais importante está aqui na minha mão. Esse papel é o resultado de um exame de sangue.  Exame que fizemos com ele.
          - Para que foi o exame?
          O Dr. Justus abriu outra gaveta da sua mesa, retirou um cigarro e uma caixa de fósforos. Botou o cigarro na boca, acendeu um fósforo e ficou algum tempo com o cigarro preso no canto esquerdo da boca, mas sem acendê-lo. Depois, tirou o cigarro, apagou o fósforo com um assopro, jogou-o na lixeira, e colocou o cigarro de volta na boca. Deu uma tragada profunda e deixou escapar um leve sorriso de prazer. Em seguida botou a caixa de volta, juntamente com o cigarro, na gaveta. Já estava completando seis anos, quando acendeu um cigarro pela última vez. Olhou para o cigarro e observou que já estava na hora de trocar por outro, pois já estava ficando murcho. Só esse hábito ainda não tinha largado. E era como um amuleto, para momentos em que se sentia meio sem saber o que fazer. - Era só para situações emergenciais. – dizia.  Parecia que esse ritual, fazia com que tudo se clareasse e a solução se apresentasse pronta, depois da fumaça imaginária.  O ato de devolver o cigarro e a caixa de fósforos para a gaveta significava - isso a enfermeira deduziu, mas nunca disse isso para o Dr. - que ele já estava começando a encontrar a solução para o problema. Elga, já acostumada ao ritual, não deu importância para o fato. Já o Dr. Anton arregalou os olhos, logo que o colega pegou o cigarro, e falou, com uma entonação, misto de surpresa e reprovação:
          - Não acredito! O senhor vai fumar aqui?
            O Dr. Justus deixou aflorar um sorriso amistoso, não se importando com o tom ríspido que o Dr. Anton falou, e respondeu descontraído:
          - Oh! Não, meu amigo! Já parei há muito tempo! Vou segredar: isso é só um ritual. Finjo que vou fumar, só em situações que me sinto com dificuldade de resolver. Outro segredo: ainda tenho muita vontade de fumar. Porém luto bravamente, todos os dias, contra esse vício cruel. E vou lutar sempre, mas com ele por perto. Não consigo me distanciar. Sei que continuo um viciado em tabaco, mesmo sem usá-lo. O que fazer! Mas pode escrever aí: nunca mais voltarei a usá-lo aceso.
              O Dr. Anton já mais descontraído, sem o tom de reprimenda, falou:
          - Muito bem. Mas não se arrisque tanto. O vício tem suas manhas, suas armadilhas... Cuidado. Mas... – fez uma pausa – e os exames?
          - Então... – Dr. Justus interrompeu o que ia falar por alguns segundos, mas depois continuou – Então... Eu te olho e fico impressionado da sua semelhança com... Mas vamos em frente: o rapaz soube que uma criança estava precisando de um transplante de medula. Na realidade pensou que ela precisasse apenas de sangue. Veio e se ofereceu como doador. Mas já chegou aqui dizendo que iria salvar a menina. Que coração tem esse menino! Fizemos o exame de sangue e deu lá: compatível.
          - A +? - perguntou o Dr. Anton, interrompendo o Dr. Justus.
          - É sim. Como sabe?
          - É o mesmo sangue meu e do meu irmão. Somos A+.
        - Interessante. Dr. precisava ver a alegria dele. Então marcamos outro dia e fizemos todos os exames necessários. Amanhã teremos o resultado definitivo. Se der positivo, não sei como vou colocar o nome do doador. Assombração, é muito esquisito. Amigo, ele não tem nome.
          O Dr. Anton olhou para o médico, já com os olhos cheios d’água, e disse:
          - O senhor não percebeu. Mas ele tem nome e sobrenome. Ele é meu irmão. Não tenho dúvida. Ainda não vi, mas tenho certeza. Pensávamos que estivesse morto. Mas graças a Deus, ele está vivo!
          - Mas... Será mesmo? Pela semelhança, realmente pode ser. Há quanto tempo ele foi dado como morto? – perguntou Dr. Justus.
         - Precisamente há quatro anos e oito meses. – respondeu.
         - Mas como foi isso?

         - Nosso pai adorava pescar. O domingo era sagrado. Nunca falhou um. Podia fazer chuva ou sol e ele estava no cais. Mas era uma pessoa extremamente supersticiosa e não levava mais de uma pessoa da família com ele.  Nunca saímos juntos: eu, ele, minha mãe e meu irmão. Minha mãe nunca foi mesmo. Ele não a levava de jeito nenhum. Tinha medo que pudesse acontecer algum acidente e os dois perecerem. Dizia que não queria dar chance ao azar. A pescaria era ele e eu, ou ele e o meu irmão. Nunca fomos juntos. Adorávamos esses passeios. Meu velho era um bom pescador e nos ensinou tudo que sabia. Acabamos gostando. Ficávamos ansiosos para chegar o domingo. Era dia santo. Mas teve um domingo fatídico. E esse domingo era o meu. Mas nós trocamos. E...
        Continua semana que vem...(ano - rs.rs.rs)

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