O
doutor ficou por algum tempo sem responder. Falar o quê? Ninguém poderia ter um
nome assim. A enfermeira já tinha até comentado sobre o apelido, mas mesmo
assim estava surpreso. Tirou a mão de cima do ombro de Assombração, puxou uma
cadeira e sentou-se de frente para ele. Ficaram os dois conversando por alguns
minutos. O doutor perguntou tudo que podia para tentar desvendar, ou encontrar
alguma pista que o levasse à sua identificação, mas nada conseguiu. Ele repetiu
tudo que já havia falado para enfermeira. Ou seja: muito pouco. Simplesmente
disse mais uma vez, que abriu os olhos ao amanhecer e estava ali no
bairro. O seu aparecimento
na região sempre foi um mistério. Nem o Seu Juca e nem Dona Verona, as únicas
pessoas mais próximas, conseguiram descobrir de onde ele tinha vindo.
Entretanto nunca foram até a uma delegacia investigar de verdade. Só tentaram
mesmo conversando com Assombração. Aí se passaram quase cinco
anos.
O Dr. Justus se levantou, deu um
sorriso meio sem graça e disse:
- Venha comigo, rapaz.
Assombração devolveu o sorriso e
acompanhou-o. A enfermeira tentou falar alguma coisa, mas o doutor desconversou
e pediu para que ela o acompanhasse também. Dentro do consultório do Dr.
Justus, acertaram que iam coletar o sangue de Assombração, apenas constando
esse apelido. Depois veriam o que fazer. E assim foi feito. O exame foi marcado
para o dia seguinte. Assombração chegou na hora marcada, confirmando que era
uma pessoa pontual. Rapidamente o Dr. Justus já estava com o resultado na mão,
que confirmava a compatibilidade com o sangue da menina. Tinha o mesmo tipo
sanguíneo: A +. Mas ele sabia que isso não era tudo, já que alguns familiares
tinham o sangue compatível, entretanto, não confirmavam a compatibilidade
tecidual, que é determinada por um conjunto de genes, localizado no cromossomo
6. Tinha que fazer o exame de histocompatibilidade. Só com a análise das
células do doador e do receptor é que se poderia determinar a compatibilidade.
Assombração quando soube que tinha o
mesmo tipo sanguíneo da menina, falou emocionado para a enfermeira:
- Não disse! Meu sangue serve para a
menina do nº 18! Ela vai ficar boa! Vai mesmo!
Elga sorriu, mas preferiu não jogar
água fria na sua felicidade. Com cuidado tentou explicar que teriam que ser
realizados outros exames. E que só depois é que poderia ser confirmada a sua
compatibilidade. Assim mesmo ele saiu do hospital explodindo de tanto
contentamento. Foi mostrar a sua alegria para o Seu Juca e Dona Verona, que
acabaram embarcando na sua euforia. Acharam até que estava tudo resolvido. Mas
antes de se retirar, Assombração comentou que teria que voltar ao hospital para
fazer mais alguns testes, porém deixou claro que o seu coração dizia que estava
tudo certo, independente desses exames. A sua certeza era tanta, que os dois
amigos entraram de corpo e alma no seu clima. Dali para frente o pensamento
positivo já tinha tomado conta de ambos. Assombração deixou-os
curtindo aquele momento de paz e saiu para escolher qual árvore ia ser o seu
lar naquela noite, pois a tarde já estava quase se despedindo. Procurou andar
rápido para tentar chegar antes que os pássaros se recolhessem. Não queria
causar nenhum incômodo aos moradores de direito. Chegava e ficava em silêncio
até adormecer. De manhãzinha, despertava com a passarada.
O sol chegou sem modéstia. Veio e
cobriu com a sua luz a cidade. O hospital já estava no seu corre-corre
costumeiro: um entra e sai frenético, de funcionários chegando para o setor
burocrático; outros, do corpo médico, para iniciarem o plantão de 12 horas e
mais alguns médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, deixando o plantão
noturno, de luta e dedicação. A recepcionista Angélica já estava sentada na sua
cadeira, distribuindo um bom dia para quem chegava e para quem saía, sem
deixar, entretanto, o seu sorriso costumeiro, descolar dos lábios. De repente ao olhar na direção da
porta de entrada do hospital, emoldurou um sorriso de surpresa, que fora até
notado pela amiga da recepção. Só descongelou-o quando uma pessoa chegou até o
balcão. Nesse momento teceu um comentário:
- Quê qui é isso? Não estou
acreditando no que estou vendo! É você mesmo? Vestido assim, tá parecendo outra
pessoa! Irado! Assombração, quem te arrumou assim?
O rapaz olhava para a recepcionista,
com o rosto corado, aparentando
surpresa com o comentário e custou a respondê-la. Mas falou baixinho:
- Senhorita. Não entendi bem essa
intimidade comigo. Assombração?
O que é isso? A senhorita me conhece?
- Claro! Claro! E quem não te conhece?
Aqui no bairro não tem uma pessoa que não te conheça!
- Desculpe, mas eu não moro na
redondeza. Moro na capital.
A recepcionista não falou de pronto,
antes deixou que um sorriso descontraído viesse aos lábios. Olhou-o bem nos
olhos e perguntou:
-
Não mora? Como não mora! Eu só não sei em que árvore você está habitando
hoje! Só isso!
- Não estou entendendo nada. O que é
que está acontecendo aqui? Senhorita, cheguei ontem de Vitória, onde moro desde
que nasci. Estou chegando para ocupar o meu posto de trabalho, na ala de
pediatria.
Antes de falar alguma coisa, a
recepcionista arregalou o par de olhos para o rapaz. Num misto de surpresa e
incredulidade, falou, gaguejando:
- Nã... nã... não! É o que estou
pensado? Então o senhor... É... O senhor é médico! Médico mesmo? Não! Não pode
mesmo! Não pode ser!
- Sim. Doutor Anton. Vim ocupar a vaga
do Dr. Carlos Antunes. A senhorita deve estar me confundindo com outra pessoa.
Semana que vem continua...
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