João fez o que o amigo mandou. O frescor da madrugada acariciou-lhe
apenas a mão. Era até onde o seu braço alcançava. Aquele contato com o mundo
exterior despertou-lhe novamente uma imensa alegria. Mas em seguida, uma
tristeza profunda, fez com que qualquer chama de esperança ficasse acesa. Pedro
sentiu isso e tentou consolá-lo.
-Ô pá, não fiques
assim! Tu vais conseguir escapar desta gaiola também! Eu demorei, mas consegui!
Vês? Estou até mais novo!
João conseguiu
empurrar um pouco para o lado a sua tristeza e falou para o amigo:
-Como eu posso vê-lo
por esse buraquinho? Você está de novo tirando um sarro com a minha cara?
-De novo não estou a
entender-te! Agora dizes que estou a tirar um sarro! Não te entendo! Desconheço
também esta palavra! Como disseste antes: querendo me sacanear. É isso?
-É isso ai! Está
aprendendo rápido!
-É isso ai. Muito
estranho o seu palavreado. Sabes... Não sabes... Eu vou cumprir o que prometi.
Antes de ir-me, vou mostrar-te o caminho para que possas fugir. Há alguma pedra
do piso que pode ser retirada. Uma delas tem apenas um calço segurando-a. Terás
que movê-la para que solte. Por aí o amigo poderá escapar. Não faça essa cara
de pouco caso. Vais ter que cavar e cavar muito. Embaixo passa um pequeno
córrego. Ele corta todo o forte. Ele vem de uma pequena nascente. Serve também
para escoar a água da chuva e do esgoto. E deságua no mar. Veja só, por
coincidência ele passa bem aqui em baixo!
-Você tem certeza? Não
está querendo me sacanear de novo?
-Ô gajo! É claro que eu
tenho certeza! Eu participei da construção disso aqui. Esqueceu? Não estou
querendo vos sacanear! Certeza, certeza eu não tenho! Tendo em vista que apenas
coloquei a pedra aqui da parede! A pedra do chão foi colocada por um
infortunado amigo. Era meu único amigo. Há muitos anos que não nos vemos. Será
que já partiu para a pátria celestial? Não posso responder a tal pergunta. Ele
me segredou sobre a tal pedra no chão e eu falei sobre a da parede, isso antes
de sermos aprisionados. Tínhamos que manter segredo. Isso só ficou entre ele e
eu. Era uma época em que a desconfiança era o prato principal.
-Mas isso não mudou
muito!
-Não? Como tu
dissestes que vives há muitos anos a minha frente,o comportamento humano
deveria estar bem mudado! Tu não achas?
-Claro! Concordo
plenamente com você! Mas, infelizmente, esse quadro continua inalterado. Também
com essa ditadura que estamos vivendo, todo mundo desconfiando de todo mundo...
As pessoas estão com os nervos à flor da pele. Parece que está todo mundo
estressado. Muita gente, para suportar o tranco, tem que ter apoio de
psicólogo.
-Ô gajo. Duas coisas eu
não estou entendendo. Uma, é estressado e, a outra, é psicólogo.
-Sabe de uma coisa: no
corre-corre do dia a dia, as pessoas ficam nervosas. O desgaste emocional é
tanto, que as pessoas acabam adoecendo. Esse desgaste emocional, a gente chama
de stress. Você, parece um psicólogo.
-O que é isso, ó pá, estás querendo me
sacanear?
-É claro que não estou
querendo te sacanear! O psicólogo ajuda as pessoas que estão com problemas
dentro da cabeça.
-São médicos?
-Não. Não é bem assim. Se
bem que existem médicos que usam a psicologia...
-Então eles curam todos
os males que estão dentro da cabeça.
-Não. Não é uma cirurgia.
O psicólogo ajuda as pessoas a encontrarem a cura para os seus males, que não
são físicos. Às vezes esses males, que chamamos psicológicos, contribuem para
os males do corpo. Aí sim, quando passa para o corpo, é que entra o médico.
-Mas é assim? Assim
mesmo?
-O psicólogo ajuda você a
encontrar a chave para abrir o cofre que está dentro da sua cabeça. É lá que
estão guardados todos os seus problemas. E essa chave só quem
tem é você. Cada pessoa tem a sua chave. E não existe duplicata. Só
você pode abrir a caixa onde estão todos os seus problemas. E a função do
psicólogo é fazer você encontrar o caminho para a sua cura. A cura está em nós, mas às vezes precisamos
de alguém habilitado para nos ajudar a descobri-la.
-Interessante. Muito
interessante. Eu acho que conheci alguns franciscanos que faziam algo parecido
com isso. Alguns padres também. O confessionário é mais ou menos isso, não é? O
padre é um psicólogo?
-Mais ou menos. Alguns
têm até o dom de levar a pessoa, que vai se confessar, que vai pedir ajuda, a
encontrar a sua chave e abrir o seu cofre de segredos. Hoje já há alguns padres
que são, sim, psicólogos.
-Acho que entendi. Mas
está na hora da minha partida. Quem bom ter te conhecido, amigo. Com a sua
presença ficou mais fácil suportar este lugar fétido. Mas... Quem bom ter a
liberdade! Um dia eu encontro-te aqui do lado de fora. Quando conseguires
escapar, estarei aqui a vos esperar.
Pedro sumiu da vista de
João, que continuava olhando pelo buraco. De repente apareceu novamente, mas
voando. João ficou olhando o amigo até perdê-lo de vista. Logo bateu uma
tristeza profunda. Encostou o ouvido na pequena janela e ficou ouvindo a onda
se chocar contra as pedras. Parecia com a tristeza batendo no seu peito. Não se
lembrava da última vez que tinha chorado. Enxugava as lágrimas que desciam
pelas suas faces. Jamais poderia imaginar que sentiria saudade de um fantasma.
E de um fantasma que falava um português enrolado. Às vezes até sem sotaque.
Misturava as pessoas... Mas era mais um amigo que tinha conquistado. Como
sempre foi muito difícil para ele ter amigos, aquele até que tinha sido fácil.
E era o mais especial, com certeza. Era uma boa companhia. Naquele buraco que
estava enterrado vivo, até um fantasma se tornava a melhor companhia do mundo.
Voltou a olhar pelo buraco, com a esperança de ver novamente o amigo, mas nada.
Nem sombra dele. Enxugou mais uma vez o rosto e tentou recomeçar o seu
trabalho, raspando a junta da pedra do lado. Raspou bastante. Mas nem um cisco
conseguiu tirar. A fivela já estava quase toda gasta. Então resolveu desistir
temporariamente. Tinha que arranjar uma nova ferramenta. Caminhou até a porta e sentou-se do lado. Não sabe
quanto tempo ficou ali. O estômago começou a roncar. Depois doeu um pouco. A
fome era grande e a comida nada. Já tinha perdido a noção do tempo que estava
sem comer. Aquela comida passou a ser a melhor do mundo. A água conseguiu
economizar. Ia bebendo aos poucos. De repente se lembrou de uns poucos amigos,
que eram quase nenhum. Os colegas... Percebeu que pouco ou quase nenhuma vez
deram-lhe atenção. E os professores? De repente tinham raiva dele. Também não
era para menos: um simples aluno que ensinava o professor! Resolveu falar para
si mesmo:
-Sabe de uma coisa: se
eles têm raiva de mim, é com razão. Agora eu tenho quase certeza de que eles
achavam que eu estava ali, não para aprender e sim para humilhá-los. Era isso
que eu fazia: humilhava-os. Mas era uma coisa que fazia inconsciente. Juro por
Deus! Agora estou vendo com clareza. Lá eu não percebia. Não enxergava nada. Eu
estava cego. Será que era a cegueira da vaidade? Mas vou mudar.
Vou ser igual a todo mundo. Vou andar com livros, cadernos... Fazer
perguntas como todo mundo. Posso até fingir que não entendi, mas vou perguntar
qualquer coisa. E agradecer pela explicação. Agradecer... É isso. Tenho que
aprender a agradecer.
Continua semana que vem...
Nenhum comentário:
Postar um comentário