A primavera já apontava. O
inverno pendurava o agasalho no guarda roupa. A temperatura estava agradável.
Cinco alunos subiam o morro a caminho do Instituto de Física. João Paulo ia à
frente, acelerado. Isso era raridade. Ninguém conseguia entender a sua pressa.
A sua preocupação em não chegar atrasado era um fardo que carregava no lugar da
mochila. Todos sabiam que ele não perderia nada, mesmo chegando atrasado ou até
não indo à aula. A física que ele vestia, estava muito mais à frente da de qualquer
professor. Se um problema era apresentado na aula, automaticamente ele já tinha
a resposta. A solução para qualquer tipo de questão estava dentro da sua
cabeça. Ninguém nunca viu o cara portando livro, caderno, lápis, caneta... Era
só a sua cabeça mesmo. Nesse dia a aula não apresentou nenhuma novidade. Os
colegas que não conseguiram tirar as suas dúvidas com o professor, foram
acudidos por João. Segundo alguns colegas era muito mais fácil tirar dúvidas com
ele, do que com o professor. Depois da aula encerrada, foi para a cantina tomar
um café, como fazia habitualmente. Para a segunda aula, teria que esperar uma
hora. Pegou um café e foi para o seu canto favorito, que ficava escondido atrás
de um pilar e cercado de caixas de refrigerantes. Era ali que ficava viajando.
Às vezes refazendo algumas de suas teorias ou criando outras. Isso ele segredou
a um amigo, que tinha se preocupado com a sua solidão. –“Que solidão?” –
perguntou ele. E antes que o outro falasse mais alguma coisa, disse que era
impossível ser sozinho, com tanta coisa na cabeça. Eram tantas perguntas para
serem respondidas e outros tantos questionamentos, que enchiam suas manhãs,
tardes e noites. Até pelas madrugadas ele tinha companhia, pois dormia muito
pouco.
Não era do seu feitio, ficar
observando o que se passava a sua volta, jogar conversa fora, discutir
política, futebol... O que não fosse útil estava fora de questão. Por isso ele
sentava ali, tomava toda a xícara de café e fechava os olhos, atrás de um par
de lentes imensas, e fazia a sua viagem. Mas nesse dia foi diferente. Pediu
para colocarem o seu café no copo. Tomou apenas um gole e não fez o seu
mergulho interior. Depois colocou o copo numa mesinha baixa a sua frente. Deu
uma espreguiçada. Quando foi pegar o copo, a sua atenção foi despertada por um
livro de capa vermelha. Retirou uma garrafa de refrigerante que estava em cima
dele. Não tinha nenhum nome a vista. Abriu na primeira página. Aí sim viu o
nome do autor, mas fechou-o. O autor era Karl Marx. Ficou olhando para o livro
e depois cerrou os olhos e foi bater um papo com a sua cabeça. O teor da
conversa não dá pra saber. Algum tempo depois, abriu os olhos e foi para a sala
de aula. Como era de costume, não falou com ninguém. Sentou e colocou o livro
em cima da carteira. Um amigo ficou surpreso ao vê-lo com um livro, já que
nunca fora visto com um. O cara não agüentou de tanta curiosidade e perguntou
que livro era. Respondeu secamente que tinha achado e não sabia de quem era. E
nem do que se tratava. Ia deixá-lo na biblioteca. O amigo abriu-o. Não viu o
título, mas viu o nome do autor: Karl Marx.Ficou surpreso, pois sabia que João
Paulo não se ligava em política, e deu um toque nele:
- Cara. Some com esse livro.
Vão acabar achando que você é subversivo. Joga essa porra no lixo. Vai por mim.
João olhou para o amigo,
parecendo que estava a milhares de quilômetros dali, e balbuciou.
- Subversivo?
- É! Subversivo! Ou
comunista! - respondeu André.
João balbuciou alguma coisa, que
André não conseguiu entender, mas nem se mexeu. Até o final da aula continuou
mudo e na mesma posição. No término, se levantou, não falou nada com o amigo, e
foi em direção à biblioteca. Mostrou o livro a uma atendente, mas ela se
recusou a receber, dizendo que não era da biblioteca. Mesmo assim ele largou o
livro em cima do balcão, mas a menina disse que se ele não quisesse que o
jogasse no lixo. A contra gosto, pegou o livro e colocou debaixo do braço e deu
um sorriso meio sem graça. Como era do seu caráter, não contestou. E também não
conseguiu jogar na lata de lixo. Nunca brigava. Estava muito acima dessas
coisas. A atendente olhou-o de frente e sorriu pra ele. Entretanto, não foi pra
retribuir o seu sorriso, mas sim pela expressão engraçada que fazia, por detrás
de um par de óculos imensos, que cobria quase todo seurosto. E ele sorriu de
novo. Insistiu mais uma vez, colocando o livro em cima do balcão. E começou a
conversar com a moça.
Num canto da biblioteca um rapaz
folheava um livro despretensiosamente. Os seus olhos, por trás de um par de
óculos escuros, miravam mais o ambiente, do que as páginas do livro. Na
realidade ele não lia nada. Ele estava ali para observar a tudo e a todos.
Estava fantasiado de estudante. Carregava uma bolsa à tira colo, que não tinha
nem livros e nem cadernos, somente uma arma calibre 38. Desde a chegada de João
ele não desgrudou os olhos de
cima dele. Observou quando colocou um livro vermelho em cima do balcão. Não
sabia do que se tratava, mas de antemão sabia que não fazia o seu gênero. Na
verdadelivro algum era do seu agrado, ainda mais com a cor vermelha estampada
na capa. Pra ele só podia ser comunista. Discretamente se levantou, caminhou
até próximo do balcão, deu uma olhada por cima do ombro da atendente, enquanto
continuava folheando o livro de química, e procurou ver o nome do autor da
obra. Não conseguiu, mas mesmo assim a suspeita tomou conta dele. Só podia ser
de subversivo. Ficou ali esperando um pouco, até que João abriu o livro e deu
para ele ver o nome do autor. Ficou emocionado, mas não deixou transparecer
qualquer tipo de emoção. Ali estava a sua chance de mostrar serviço. Colocou o
livro em cima da mesa e saiu discretamente. Do lado de fora procurou um local
que pudesse ficar sem chamar muito a atenção. Achou uma árvore, com uns galhos
quase arrastando no chão, que dava para esconder uma pessoa. Mas antes
sinalizou para alguém que, aparentemente, não estava à vista. E pacientemente
ficou esperando.
João deu um tchau pra menina e saiu
da biblioteca. Colocou o livro debaixo do braço e foi descendo uma ladeira,
tranquilamente, com aquele seu jeito peculiar: sem pressa e conversando consigo
mesmo. De vez em quando parava, falava alguma coisa e voltava a caminhar.
Naquele período tenebroso da ditadura
militar, onde todos eram suspeitos, desde que não provassem o contrário, quem
visse a cena de longe - ainda não existia o telefone celular-, poderia achar
que o cara estava se comunicando com alguém, por algum tipo de rádio. Alguma
coisa nova trazida pelos comunistas. Só viam o que interessava a eles. E João
continuava descendo vagarosamente. O cara que estava atrás da árvore, não viu a
cena, mas próximo dali, dentro de um fusca caindo aos pedaços, dois caras
acompanhavam todo o trajeto de João. Um deles falou: -“Ali vem um subversivo!”
O outro já estava ficando nervoso com a lentidão de João e tentou sair do
carro, mas foi impedido pelo colega.
Nessa época alguns policiais saiam
nesses carros velhos para não levantarem suspeitas. Mas como não levantar
suspeitas? Faziam questão de aparecer, demonstrar que estavam mandando e que
todo mundo tinha que obedecer. Alguns estudantes sabiam desses carros que
circulavam pelas proximidades da universidade. Procuravam ficar atentos, mas de
vez em quando um bobeava e era jogado pra dentro desses micros presídios
ambulantes. Quem ali caía, podia estar com os dias contados.
Os dois saíram do carro, acertaram os
óculos escuros na cara, e encostaram-se numa árvore, esperando João descer. Ele
vinha sem pressa. Ele parou e ameaçou voltar. Os dois caras demonstraram
impaciência. O que estava escondido atrás da outra árvore gesticulou, tentando
saber o que estava acontecendo. Eles responderam com gesto, pedindo para ele
ficar onde estava. Nisso João resolveu continuar a descer a rampa. Essa rampa
devia ter aproximadamente uns vinte metros de extensão, mas parecia que tinha
esticado, tendo em vista a morosidade de João. O cara que estava
escondido resolveu dar uma
olhada e viu que João, muito desligado, se aproximava. Mal João passou, ele
saiu e caminhou atrás. A sua cara demonstrava a ansiedade que se apoderava
dele. Não se sabe como conseguiu se controlar e passar por João sem nada fazer.
Passou também pelos amigos e entrou no carro. João parou novamente. Falou
alguma coisa e voltou a andar, mas daquele jeito que só ele fazia. Irritava
qualquer cristão. Ou não. Porque aquelescaras não deviam ter religião alguma.
Um deles mascava um palito. De vez em quando sugava os dentes, fazendo um
barulhinho que irritou o companheiro. Entre dentes, mandou-o parar com aquela
nojeira. Ele, a contra gosto, jogou o palitofora, limpou os dedos na camisa e
cuspiu alguma coisa no chão.
Finalmente João desceu toda a rampa.
Mal passou perto da árvore, os dois caíram sem cima dele. Um jogou um capuz na
sua cabeça e o outro torceu um dos seus braços para trás. Com o susto João ficou sem ação. Não conseguiu esboçar
qualquer reação. Queria falar alguma coisa, mas não conseguiu. Eles nem
precisaram agir com violência, tal a docilidade da vítima.
O fusquinha velho já estava com as
portas abertas. João foi jogado para dentro. O livro continuava debaixo de uma
das axilas. Um dos policiais enterrou mais o capuz na sua cabeça. Do jeito que
ele foi atirado, ficou. Não esboçou qualquer reação. Os caras ficaram surpresos
com isso, pois nunca tinha acontecido isso antes. As suas vítimas sempre
ficavam desesperadas. E eles riam a vontade com o sofrimento alheio. Mas com
João estava sendo diferente. Os três ficaram olhando, a espera de alguma
reação. Ele permanecia imóvel e em total silêncio. Um dos policiais que estava
atrás fez sinal para o motorista dar partida no carro. Ele ligou o veículo e
saiu devagar. Isso também nunca tinha acontecido. Foram se afastando da cidade
em total silêncio. O carro parecia que já sabia para onde iria. Como eles
sempre faziam, quando prendiam alguém, se dirigiam para uma praia deserta. De
vez em quando o motorista virava para trás e fazia alguma careta, como se
estivesse cobrando alguma coisa dos colegas. Eles respondiam também com trejeitos,
mas continuavam em silêncio. E assim foi até chegarem ao destino: praia de
Itaipuaçu, no município de Maricá. Nessa época era quase deserta. Eram poucos
os moradores. Um sítio ou outro pipocava pela orla. Pararam o carro numa rua
sem nenhuma habitação. O mato crescia dos dois lados. Saíram e ficaram olhando
para João, que continuava imóvel. Depois de algum tempo, o que estava
dirigindo, mandou-o sair. Como João não se mexeu, ele agarrou-o por um dos
braços e puxou-o para fora. Ele bateu violentamente no chão, mas não reclamou.
O outro policial pegou-o pelo pulso e colocou-o de pé. Os três ficaram olhando,
sem saber o que fazer. Com outros estudantes tinhasido fácil. O pavor deles
estimulava-os. A adrenalina ficava a mil. Aí era só torturá-los. Mas com João
estava sendo diferente. O prazer não estava acontecendo. Um deles resolveu
tirar o capuz dele. João estava com uma cara tranqüila. Parecia que não estava
ali. Os três ficaram se olhando, sem entender nada do que estava acontecendo.
Aquela calma irritou um deles.
- Porra! Cara o que é isso?
Tá zombando da gente? Me dá essa porra de livro aí!
Continua semana que vem...
Estou adorando ler virtualmente esse romance em partes...É bem os tempos modernos que vivemos. O tempo é fracionado e a leitura também. Porém o conteúdo é deveras interessante. Aguardarei a próxima semana.
ResponderExcluirQue legal saber que vc. tem curtido o livro. Abraços,
Excluir