terça-feira, 24 de março de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 2

CONTINUANDO...

A primavera já apontava. O inverno pendurava o agasalho no guarda roupa. A temperatura estava agradável. Cinco alunos subiam o morro a caminho do Instituto de Física. João Paulo ia à frente, acelerado. Isso era raridade. Ninguém conseguia entender a sua pressa. A sua preocupação em não chegar atrasado era um fardo que carregava no lugar da mochila. Todos sabiam que ele não perderia nada, mesmo chegando atrasado ou até não indo à aula. A física que ele vestia, estava muito mais à frente da de qualquer professor. Se um problema era apresentado na aula, automaticamente ele já tinha a resposta. A solução para qualquer tipo de questão estava dentro da sua cabeça. Ninguém nunca viu o cara portando livro, caderno, lápis, caneta... Era só a sua cabeça mesmo. Nesse dia a aula não apresentou nenhuma novidade. Os colegas que não conseguiram tirar as suas dúvidas com o professor, foram acudidos por João. Segundo alguns colegas era muito mais fácil tirar dúvidas com ele, do que com o professor. Depois da aula encerrada, foi para a cantina tomar um café, como fazia habitualmente. Para a segunda aula, teria que esperar uma hora. Pegou um café e foi para o seu canto favorito, que ficava escondido atrás de um pilar e cercado de caixas de refrigerantes. Era ali que ficava viajando. Às vezes refazendo algumas de suas teorias ou criando outras. Isso ele segredou a um amigo, que tinha se preocupado com a sua solidão. –“Que solidão?” – perguntou ele. E antes que o outro falasse mais alguma coisa, disse que era impossível ser sozinho, com tanta coisa na cabeça. Eram tantas perguntas para serem respondidas e outros tantos questionamentos, que enchiam suas manhãs, tardes e noites. Até pelas madrugadas ele tinha companhia, pois dormia muito pouco.
Não era do seu feitio, ficar observando o que se passava a sua volta, jogar conversa fora, discutir política, futebol... O que não fosse útil estava fora de questão. Por isso ele sentava ali, tomava toda a xícara de café e fechava os olhos, atrás de um par de lentes imensas, e fazia a sua viagem. Mas nesse dia foi diferente. Pediu para colocarem o seu café no copo. Tomou apenas um gole e não fez o seu mergulho interior. Depois colocou o copo numa mesinha baixa a sua frente. Deu uma espreguiçada. Quando foi pegar o copo, a sua atenção foi despertada por um livro de capa vermelha. Retirou uma garrafa de refrigerante que estava em cima dele. Não tinha nenhum nome a vista. Abriu na primeira página. Aí sim viu o nome do autor, mas fechou-o. O autor era Karl Marx. Ficou olhando para o livro e depois cerrou os olhos e foi bater um papo com a sua cabeça. O teor da conversa não dá pra saber. Algum tempo depois, abriu os olhos e foi para a sala de aula. Como era de costume, não falou com ninguém. Sentou e colocou o livro em cima da carteira. Um amigo ficou surpreso ao vê-lo com um livro, já que nunca fora visto com um. O cara não agüentou de tanta curiosidade e perguntou que livro era. Respondeu secamente que tinha achado e não sabia de quem era. E nem do que se tratava. Ia deixá-lo na biblioteca. O amigo abriu-o. Não viu o título, mas viu o nome do autor: Karl Marx.Ficou surpreso, pois sabia que João Paulo não se ligava em política, e deu um toque nele:
- Cara. Some com esse livro. Vão acabar achando que você é subversivo. Joga essa porra no lixo. Vai por mim.
João olhou para o amigo, parecendo que estava a milhares de quilômetros dali, e balbuciou.
- Subversivo?
- É! Subversivo! Ou comunista! - respondeu André.
          João balbuciou alguma coisa, que André não conseguiu entender, mas nem se mexeu. Até o final da aula continuou mudo e na mesma posição. No término, se levantou, não falou nada com o amigo, e foi em direção à biblioteca. Mostrou o livro a uma atendente, mas ela se recusou a receber, dizendo que não era da biblioteca. Mesmo assim ele largou o livro em cima do balcão, mas a menina disse que se ele não quisesse que o jogasse no lixo. A contra gosto, pegou o livro e colocou debaixo do braço e deu um sorriso meio sem graça. Como era do seu caráter, não contestou. E também não conseguiu jogar na lata de lixo. Nunca brigava. Estava muito acima dessas coisas. A atendente olhou-o de frente e sorriu pra ele. Entretanto, não foi pra retribuir o seu sorriso, mas sim pela expressão engraçada que fazia, por detrás de um par de óculos imensos, que cobria quase todo seurosto. E ele sorriu de novo. Insistiu mais uma vez, colocando o livro em cima do balcão. E começou a conversar com a moça.
          Num canto da biblioteca um rapaz folheava um livro despretensiosamente. Os seus olhos, por trás de um par de óculos escuros, miravam mais o ambiente, do que as páginas do livro. Na realidade ele não lia nada. Ele estava ali para observar a tudo e a todos. Estava fantasiado de estudante. Carregava uma bolsa à tira colo, que não tinha nem livros e nem cadernos, somente uma arma calibre 38. Desde a chegada de João
ele não desgrudou os olhos de cima dele. Observou quando colocou um livro vermelho em cima do balcão. Não sabia do que se tratava, mas de antemão sabia que não fazia o seu gênero. Na verdadelivro algum era do seu agrado, ainda mais com a cor vermelha estampada na capa. Pra ele só podia ser comunista. Discretamente se levantou, caminhou até próximo do balcão, deu uma olhada por cima do ombro da atendente, enquanto continuava folheando o livro de química, e procurou ver o nome do autor da obra. Não conseguiu, mas mesmo assim a suspeita tomou conta dele. Só podia ser de subversivo. Ficou ali esperando um pouco, até que João abriu o livro e deu para ele ver o nome do autor. Ficou emocionado, mas não deixou transparecer qualquer tipo de emoção. Ali estava a sua chance de mostrar serviço. Colocou o livro em cima da mesa e saiu discretamente. Do lado de fora procurou um local que pudesse ficar sem chamar muito a atenção. Achou uma árvore, com uns galhos quase arrastando no chão, que dava para esconder uma pessoa. Mas antes sinalizou para alguém que, aparentemente, não estava à vista. E pacientemente ficou esperando.
          João deu um tchau pra menina e saiu da biblioteca. Colocou o livro debaixo do braço e foi descendo uma ladeira, tranquilamente, com aquele seu jeito peculiar: sem pressa e conversando consigo mesmo. De vez em quando parava, falava alguma coisa e voltava a caminhar.
          Naquele período tenebroso da ditadura militar, onde todos eram suspeitos, desde que não provassem o contrário, quem visse a cena de longe - ainda não existia o telefone celular-, poderia achar que o cara estava se comunicando com alguém, por algum tipo de rádio. Alguma coisa nova trazida pelos comunistas. Só viam o que interessava a eles. E João continuava descendo vagarosamente. O cara que estava atrás da árvore, não viu a cena, mas próximo dali, dentro de um fusca caindo aos pedaços, dois caras acompanhavam todo o trajeto de João. Um deles falou: -“Ali vem um subversivo!” O outro já estava ficando nervoso com a lentidão de João e tentou sair do carro, mas foi impedido pelo colega.
         Nessa época alguns policiais saiam nesses carros velhos para não levantarem suspeitas. Mas como não levantar suspeitas? Faziam questão de aparecer, demonstrar que estavam mandando e que todo mundo tinha que obedecer. Alguns estudantes sabiam desses carros que circulavam pelas proximidades da universidade. Procuravam ficar atentos, mas de vez em quando um bobeava e era jogado pra dentro desses micros presídios ambulantes. Quem ali caía, podia estar com os dias contados.
         Os dois saíram do carro, acertaram os óculos escuros na cara, e encostaram-se numa árvore, esperando João descer. Ele vinha sem pressa. Ele parou e ameaçou voltar. Os dois caras demonstraram impaciência. O que estava escondido atrás da outra árvore gesticulou, tentando saber o que estava acontecendo. Eles responderam com gesto, pedindo para ele ficar onde estava. Nisso João resolveu continuar a descer a rampa. Essa rampa devia ter aproximadamente uns vinte metros de extensão, mas parecia que tinha esticado, tendo em vista a morosidade de João. O cara que estava
escondido resolveu dar uma olhada e viu que João, muito desligado, se aproximava. Mal João passou, ele saiu e caminhou atrás. A sua cara demonstrava a ansiedade que se apoderava dele. Não se sabe como conseguiu se controlar e passar por João sem nada fazer. Passou também pelos amigos e entrou no carro. João parou novamente. Falou alguma coisa e voltou a andar, mas daquele jeito que só ele fazia. Irritava qualquer cristão. Ou não. Porque aquelescaras não deviam ter religião alguma. Um deles mascava um palito. De vez em quando sugava os dentes, fazendo um barulhinho que irritou o companheiro. Entre dentes, mandou-o parar com aquela nojeira. Ele, a contra gosto, jogou o palitofora, limpou os dedos na camisa e cuspiu alguma coisa no chão.
          Finalmente João desceu toda a rampa. Mal passou perto da árvore, os dois caíram sem cima dele. Um jogou um capuz na sua cabeça e o outro torceu um dos seus braços para trás. Com o susto João ficou sem ação. Não conseguiu esboçar qualquer reação. Queria falar alguma coisa, mas não conseguiu. Eles nem precisaram agir com violência, tal a docilidade da vítima.
          O fusquinha velho já estava com as portas abertas. João foi jogado para dentro. O livro continuava debaixo de uma das axilas. Um dos policiais enterrou mais o capuz na sua cabeça. Do jeito que ele foi atirado, ficou. Não esboçou qualquer reação. Os caras ficaram surpresos com isso, pois nunca tinha acontecido isso antes. As suas vítimas sempre ficavam desesperadas. E eles riam a vontade com o sofrimento alheio. Mas com João estava sendo diferente. Os três ficaram olhando, a espera de alguma reação. Ele permanecia imóvel e em total silêncio. Um dos policiais que estava atrás fez sinal para o motorista dar partida no carro. Ele ligou o veículo e saiu devagar. Isso também nunca tinha acontecido. Foram se afastando da cidade em total silêncio. O carro parecia que já sabia para onde iria. Como eles sempre faziam, quando prendiam alguém, se dirigiam para uma praia deserta. De vez em quando o motorista virava para trás e fazia alguma careta, como se estivesse cobrando alguma coisa dos colegas. Eles respondiam também com trejeitos, mas continuavam em silêncio. E assim foi até chegarem ao destino: praia de Itaipuaçu, no município de Maricá. Nessa época era quase deserta. Eram poucos os moradores. Um sítio ou outro pipocava pela orla. Pararam o carro numa rua sem nenhuma habitação. O mato crescia dos dois lados. Saíram e ficaram olhando para João, que continuava imóvel. Depois de algum tempo, o que estava dirigindo, mandou-o sair. Como João não se mexeu, ele agarrou-o por um dos braços e puxou-o para fora. Ele bateu violentamente no chão, mas não reclamou. O outro policial pegou-o pelo pulso e colocou-o de pé. Os três ficaram olhando, sem saber o que fazer. Com outros estudantes tinhasido fácil. O pavor deles estimulava-os. A adrenalina ficava a mil. Aí era só torturá-los. Mas com João estava sendo diferente. O prazer não estava acontecendo. Um deles resolveu tirar o capuz dele. João estava com uma cara tranqüila. Parecia que não estava ali. Os três ficaram se olhando, sem entender nada do que estava acontecendo. Aquela calma irritou um deles.

- Porra! Cara o que é isso? Tá zombando da gente? Me dá essa porra de livro aí!

                   Continua semana que vem...                                           

2 comentários:

  1. Estou adorando ler virtualmente esse romance em partes...É bem os tempos modernos que vivemos. O tempo é fracionado e a leitura também. Porém o conteúdo é deveras interessante. Aguardarei a próxima semana.

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    1. Que legal saber que vc. tem curtido o livro. Abraços,

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