terça-feira, 5 de outubro de 2021

Coisas da Pandemia - Parte Final

 


 Continuando...

 

             Numa bela manhã de uma terça feira ensolarada, combinamos dar uma volta de carro pela orla. Saímos de Icaraí e fomos de praia em praia até chegarmos em Piratininga. Tinha meia dúzia de gatos pingados espalhados pela areia, na maioria pescadores. Ficamos algum tempo deixando que o ar marinho lambesse nossos corpos e alma, muito necessitada de ser acarinhada. Saímos dali e passamos em frente de um shopping. Como já tinha algumas lojas funcionando, imaginamos que ali, como a circulação de pessoas ainda estava pequena, pudesse estar quase vazio. – tomar um café! – falou minha mulher, logo que o avistou. Então resolvemos entrar. Aproveitar a ocasião, já que tinha sido liberado naquela semana. 

             Como previsto, estava com pouca gente circulando. Avistamos uma cafeteria e ocupamos uma mesa com duas cadeiras. Fizemos o pedido. Café para minha mulher e capuccino para mim, acompanhado de empadas. Devíamos estar por ali, mais ou menos meia hora. Me sentia bem à vontade. Estava alegre por voltar a andar mais livremente. De repente, quando levei a xícara aos lábios, percebi que tinha duas pessoas nos olhando. Um homem e uma mulher, ambos jovens, e um menino que estava enroscado nas pernas do rapaz, provavelmente seu filho.

             Alertei a minha esposa e perguntei se ela conhecia o casal. Ela balançou a cabeça negando. Eu também não identifiquei os dois. O homem falava alguma coisa para a mulher e depois olhava para mim. E assim ficou por algum tempo, até que resolveu se aproximar. Chegou bem próximo e perguntou se podia tocar no meu braço. Achei estranho, mas permiti. Ele então, parecia receoso, cutucou-me o braço. Em seguida abriu um sorriso de orelha a orelha. Não entendi o fato. E perguntei o que estava acontecendo.

          - Perguntei a minha mulher se estava vendo o senhor. Ela disse que sim. Mas assim mesmo fiquei na dúvida. Insisti se realmente estava vendo. Ela afirmou sem pestanejar. Achou até estranho a minha pergunta. Mas antes de explicar tudo a ela, preferi conversar com o senhor primeiro.

         - Sim. E do que se trata?

         - Não foi o senhor que conversou comigo uns meses atrás, quando eu estava naquela ponte em cima daquele rio sujo, depois de um dia de chuva, tentando...

         Ele parou antes de terminar a frase, parecia engasgado. Aí veio a minha mente a imagem daquele homem querendo se jogar naquele rio imundo, prestes a dar cabo da vida.  Fiquei engasgado também. - ele não se matou. – pensei já com os olhos cheios d’água. Sem perguntar nada botei o dedo no braço dele e sorri. Estava realmente vivo. Com o meu sorriso ele voltou a falar.

          - Tentando... O senhor sabe.

         Balancei a cabeça afirmativamente. Ele então continuou.

            - Fui para casa. A família já dormia. Deitei-me e pedi a deus para me mandar o senhor, depois que eu dormisse, para me levar ao tal lugar terrível, como o senhor falou.

          - Chamam de “vale dos suicidas”.

          - Então, eu dormi. Mas só que o senhor não apareceu. Mas apareceu outra pessoa. Se chegou, me pegou pela mão e saímos voando. Isso mesmo, eu voei com ele! Eu não quero nem falar o que vi. Era só dor. Gente gemendo por todos os lados. Parecia que aquelas pessoas, nem sei se eram pessoas, eram devoradas por vermes. E gritavam de dor. Pedi para voltar para casa. Depois desse dia, mudei completamente o meu pensamento. Acho que fiquei mais corajoso.

            Ele esticou a mão e eu apertei-a com força. Sorriu e, em tom baixo, me agradeceu pelo socorro providencial. Mas antes de se afastar, com um sorriso enigmático, perguntou-me:

            - Fiquei curioso. Como o senhor se identificou como sendo um fantasma? O senhor disse que era um morto, não foi?

           Fiquei em silêncio alguns segundos, procurando alguma resposta, mas não achei. De repente, fugindo ao meu controle, falei de supetão:

           - Foi Deus! Foi Deus! Acho que era a única forma de convencê-lo a desistir.

           - Mas o senhor falou que ia aparecer no meu sono, com tanta firmeza que acreditei. Como apareceu outra pessoa?

           - Não sei responder. Isso é coisa de Deus. E só ele sabe.

          Esticou novamente a mão, eu apertei, deu-me às costas e foi se afastando. Após alguns passos, virou-se, olhou para o céu e disse:

          - Só Deus. Só Deus.

            Depois seguiu o seu caminho, abraçado da esposa e ao filho. Entretanto ainda consegui perceber o seus olhos encharcados de lágrimas de agradecimento.

FIM

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