- Tá legal. Relaxa. Não tem nada de
caldeirão, não. Vamos lá. Rui Barbosa resolveu fazer uma viagem para o
Amazonas. Se não me engano, na época ele era Ministro, não sei do quê. Mas era
Ministro. Era um cara viajado. Sabia que ele foi professor de inglês na
Inglaterra?
- Não tô sabendo
nada disso.
- Também não tenho
certeza não, mas é o que eu soube por aí. Mesmo sendo um cara viajado, não
conhecia o Amazonas. Queria ver de perto o Rio Amazonas e os seus afluentes.
Queria se inteirar dos costumes da população ribeirinha. Se pudesse iria
conhecer também, algumas tribos indígenas da região. De preferência as já
pacificadas. Era pequeno, mas não era bobo. Não queria se arriscar a virar
petisco de algum índio antropófago. E lá foi ele. Chegou em algum afluente do
rio Amazonas. Queria ir para o outro lado. Mesmo sendo um afluente, não era
nada pequeno.
- Ele era pequeno?
Mas ele podia encontrar uma índia antropófaga pequenininha. Não seria melhor?
- Porra cara! Você
está confundindo as coisas! Que diferença faz o cara ter um metro e meio ou
dois metros? A tribo com esse tipo de costume, gosta de comer carne
humana! Você confundiu o comer! Não é o que você pensou! Posso continuar?
- Eu sabia lá da altura
dele! Nunca vi! E a índia... Já comeram tantas por aí!
- Omar! Se liga!
Com essas índias, não devia sair nem um beijinho sequer! Você podia perder a
língua! Você era melhor quando ficava calado! Continuando. Rui procurou
algum morador ribeirinho e se informou da possibilidade de algum barqueiro
prestar-lhes serviço. Esse senhor levou-o até um casebre próximo, onde o
morador tinha uma pequena canoa. A mulher do barqueiro disse onde poderiam
encontrá-lo. Lá foi Rui com o senhor. Não andaram muito e lá avistaram o barco
ancorado. O barqueiro, um caboclo troncudo, de estatura mediana, foi
apresentado a “águia de Haia”. Imediatamente ele se dirigiu ao barqueiro nestes
termos:
- Oh, da África!
Quanto queres em remuneração pecuniária, para transportar-me deste polo, até
aquele outro hemisfério?
O caboclo
assustado, sem nada entender, respondeu perguntando:
- O quê sinhô,
cimitério?
Rui meio indignado partiu para a ofensa.
- Oh bucéfalo! Como
ousas menoscabar a minha alta prosopopeia! Dar-te-ei um soco no alto da sua
sinagoga, transformando as suas massas cefálicas em simples substâncias oxidas
cadavéricas!
O
caboclo, meio que estatelado, sem entender patavina do que ouvia, falou, com os
olhos esbugalhados:
- O sinhô não me
leva a mar não! Mais isso tudo num cabe dentro da minha canoa, não! A gente vai
prufundu!
- Gostou Omar?
Pensei que fosse rir um pouco.
- Rir? Rir de quê?
Que graça tem essa piada? Estou igual a esse caboclo aí da estória: não entendi
nada! Como é que você pensou que eu fosse, na altura do campeonato, achar
engraçada qualquer piada, ainda mais essa que não tem graça nenhuma?
- Porra Omar!
Estou tentando descontrair um pouco! Posso?
- Descontrair?
Porra cara! Estamos aqui parados no ar! A garota olhando pra gente! E a gente
sem saber o que ela está pensando! De repente pode até estar maquinando uma
forma de nos aniquilar! E você aí tentando fazer gracinha! Não percebeu ainda
que estamos fritos? Se liga! Essa não é hora pra piada!
- Vai se ferrar
Omar! Você é uma caveira sem senso de humor! Caveirinha marrenta! Se aquela
menina fosse fazer mal a gente, já tinha feito há muito tempo! Arquitetando o
quê? Não precisa nem pensar, é só derrubar a gente!
- E se ela for
sádica! Já pensou nisso? Acho que ela só está dando um tempinho pra água ferver
e depois jogar a gente dentro do caldeirão!
- Que drama! Tem
água fervendo coisa nenhuma! Que mente criativa a sua! Pior disso tudo, é que
nem mente você tem mais! Sabe de uma coisa: não sei como você continua falando
e pensando!
- Não vem com essa
não! Você sabe que essa pergunta é muito difícil de responder! Pode ser que eu
nem esteja falando! Já se perguntou se eu não sou criação da sua cabeça? Eu
estava lá deitadinho! Você chegou e começou a falar comigo! Eu nem tinha ainda
dado conta que tinha passado dessa pra melhor! Você é um cara muito doido!
- Vamos deixar
isso pra lá? Você não consegue uma explicação pra você e eu não encontro
explicação convincente pra mim! Então devemos ser dois malucos! Não acha?
Ele não respondeu. Está completamente calado. Esse silêncio
repentino me incomoda. Será que essa caveira não existe? Se não existe eu
pirei. Será isso tudo uma grande fantasia? Mas como eu estaria fantasiando? Eu
estava no bar, com uma cabocla linda! E depois? Isso é que está me deixando
encucado. Já me belisquei e senti dor. Isso é um grande indício de lucidez. Ou
não? Não me lembro de ter sonhado alguma vez e ter sentido dor. Acho que estou
vivendo uma coisa real. Onde está a fantasia? E aquela menina? Se bem que subi
aquele paredão vertical de granito, sem escada. É uma coisa a pensar. Pensando
na menina e lá está ela fazendo sinal pra mim.
- Omar! Omar!
- O que foi?
- A menina está
sinalizando pra gente. Ih! A asa começou a se movimentar! Viu só? É ela
realmente que comanda tudo!
- Aí é que mora o
perigo! Cara, e se ela resolver derrubar a asa? Está pensando nisso?
- Não. Até que
não. Isso não me preocupa. Se ela quisesse, já tinha acabado com a gente há
muito tempo. Já te falei isso. Mas... De qualquer jeito temos que rezar! Temos
que rezar! Por precaução! Só por precaução! Já estamos chegando. Começamos a
descer na vertical. Já viu disso? Fica quieto aí. Não fala nada. Vamos ver o
que ela quer com a gente.
- Falar pra quê? E
eu vou conseguir?
Caramba. Estamos descendo bem devagar. Parece que vamos
pousar pertinho dela. Paramos. Ainda estamos no ar. Ela está sorrindo pra
mim. Está vindo na nossa direção. Acho que vai segurar a asa. Segurou. E agora?
- Você está
tremendo? Por quê? Continua com medo? Eu comandei todo o movimento da asa
delta, porque você deixou!
- Como assim? Ela
é que não respeitava os movimentos! Eu sei que nunca tinha voado...
- Falta
determinação! Falta o que querer! Falta fé! E o seu medo atrapalha muito!
Quando você resolve decidir por alguma coisa, ainda decide fora de hora! Aí
entra a ambição. Ela fala mais alto. Ainda vem na garupa a vaidade.
- Mas eu não sou
vaidoso e nem ambicioso!
- Tem certeza?
- Claro! Absoluta!
- Se é assim, está
na hora de seguir o seu caminho. O comando da sua vida é todo seu. Mas pode
ficar tranquilo que vou continuar dando uma ajudinha. Principalmente no que diz
respeito à instabilidade da asa delta. Você vai chegar com segurança até a
praia. Vai pousar com tranquilidade. Mas para isso acontecer, vai ter que
manter o pensamento positivo, se não alguma coisa pode dar errada.
- Como assim!
Posso morrer?
- Viu só! Já está
com medo! Toma muito cuidado com as suas fantasias. Às vezes as suas criações
fantasiosas podem levá-lo para o buraco.
- Mas as nossas
fantasias não nos ajudam a viver?
- O sonho ajuda,
mas a fantasia não. A esperança ajuda, mas a ambição não. Vai com Deus. Vai,
mas acho que você devia desistir do que veio buscar. Nunca precisou do que veio
atrás. O melhor pra você é abrir mão de tudo.
- Não estou
entendendo nada. Sonho, fantasia, esperança, ambição... O que isso quer dizer?
Eu não vim buscar nada! Só vim curtir Porto Seguro! Eu sei que alguma coisa
saiu errada! Eu estava naquele bar...
- Isso eu já sei.
Se precisar de mim é só me chamar.
- Está legal! Vou falar
com Omar e vamos embora.
- Mais uma
fantasia? Isso pode levá-lo a loucura.
- Não! Omar é real!
Ele está em cima da asa!
- Está dando asas a
sua imaginação? Desculpe a brincadeira. Voa. Vai. Voa. Mas não se esqueça do
que falei.
- Viu cara! Ela
ignorou a minha presença!
- Ela não te
ignorou, ela não te viu. Mas pode ter certeza que sabia que você estava aqui
comigo. Vamos embora?
- Vamos nessa!
- Omar, olha só! Estamos
voando numa boa! Na maior tranquilidade! Lá vamos nós! Estamos saindo de cima
dessas ilhotas! Olha que mar aberto! Que vista maravilhosa! Estava precisando
ver uma coisa assim! Vamos para o lado da praia. Veja só! A asa obedeceu ao meu
comando! Mas preciso ter certeza de que estou realmente comandando!
- O que é que você
vai fazer?
- Pode ficar calmo.
Não vou fazer nada demais. Vou apenas sair um pouquinho do litoral e ir para o
alto mar. Tenho que saber se realmente ela vai me obedecer.
- Cara, não se
arrisca! E se der alguma coisa errada e você não conseguir voltar?
- Deixa de
pessimismo! Já cheguei à conclusão que nasci pra isso! Eu sou bom! Vamos lá!
Viu? Obedeceu numa boa! Vamos passear um pouquinho. Agora é só prazer.
- Acho que você
está se arriscando. Olha só a distância que já estamos da praia. Estamos nos
afastando muito rápido! Vamos voltar cara!
- Está se borrando
todo! Não foi você mesmo que me mandou ir para alto mar? Controla esse medo!
Está bem, vamos voltar. Viu! Obedeceu de novo!
- Graças a Deus!
Estamos voltando rápido! Vamos descer logo!
- Fica frio! Não
vai acontecer nada com a gente! Tudo bem. Vamos descer.
Continua semana que vem...
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