SE FOI MILAGRE, QUEM FEZ?
- José Timotheo -
Caminhava sem compromisso sério. Ia com um amigo assistir a um torneio de futsal. Pegamos a Rua Dr. March, no bairro do Barreto, Niterói. Esse caminho não era o habitual e não sei até hoje porque fomos por ali. Mas para quê saber? Me lembro bem que era um sábado. A manhã estava bonita e uma brisa penteava nossos cabelos. A temperatura estava amena. Já tínhamos entrado na primavera. Sempre gostei dessa estação: é o início do sorrir do sol. As flores abundam, os pássaros se enroscam na alegria, cantam tudo que podem para nos fazer cantar. Às vezes até que conseguem, mas a primavera me traz conforto para o espírito. O ar primaveril é mais cheiroso e também gostoso. Parece que tem um sabor que adoça a alma.
Íamos andando em total silêncio, o que para mim, é uma raridade. Ficar calado é um martírio. Mas realmente eu estava mudo, parecia que estava adivinhando o que me esperava a alguns metros à frente. A rua naquele momento parecia que fazia coro com a gente. Estava vazia de gente e veículos. Como disse, era sábado e não devia passar das 10 horas da manhã. O amigo cortou o silêncio, falando quase sussurrando.
-“Cara! Me arrepiei todo! Olha só! Que coisa estranha...”
-“Que coisa estranha? – perguntei curioso.
-“Sei lá! Me senti estranho! O arrepio foi estranho. “
Olhei pra ele e ele estava com uma cara assustada e eu me arrepiei também. Depois de algum tempo em silêncio, comentei.
-“Cara, esse não é o caminho que fazemos sempre. Deve ser esse o motivo dessa sensação estranha.“
Ele me olhou meio esquisito. Deu de ombros. Sabia que não tinha concordado com a minha justificativa. Eu também não tinha encontrado justificativa lógica para a minha análise. Achei melhor não falar mais nada. Ficar calado era a coisa mais sensata a fazer.
Logo à frente, duas meninas nos chamaram a atenção. Estavam com os rostos colados num velho gradil que murava a casa de uma antiga professora nossa. Mesmo chamando a nossa atenção, eu não dei muita importância para o caso. Fui em frente. Mas ele parou. Andei mais um bocado, pensando que fosse me acompanhar, mas, como ele não me seguiu, parei e fiquei observando. Ele estava de frente para as duas. Não demorou muito e começou logo um diálogo. Engraçado que esse não era o seu perfil. Ele conseguia ser mais tímido do que eu. Mas lá estava ele batendo um papo animado e eu continuava parado observando. Parecia que estava com os pés colados no chão. Como eu não me mexia, gesticulou me chamando. Tentei me mover, entretanto, as pernas não obedeceram ao meu comando. Forcei a barra e fui meio que me arrastando. Mas fui. A menina me olhava. Um par de olhos negros, como ímã, me arrastou até a grade. Estava hipnotizado.
O amigo continuava papeando animadamente com a outra menina. O portão já estava aberto. Ele não ousou entrar. Até hoje não sei o papo que eles levavam. Eles riam bastante. Isso ficou registrado. Parecia que existiam dois mundos. Um ensolarado e o outro completamente fechado, anunciando temporal. Eu estava nesse mundo. Continuava olhando pra menina. Estiquei a mão e cumprimentei-a, sem falar nada. Parecia que estava pegando uma pedra de gelo. O arrepio que senti anteriormente veio com maior intensidade. Esse eriçou até os “cabelos da alma”. A minha vontade era de sair correndo. Era fugir daquele mundo, antes que a tempestade me pegasse. Porém não sei o por quê de ter ficado com o corpo grudado àquela grade. Os meus movimentos foram subtraídos. Não conseguia de jeito nenhum abrir a mão que segurava a grade e a outra, não conseguia desgrudar da mão da menina. Fiquei só olhando. Não sabia o que fazer. De repente disse um oi. Ela não respondeu, mas jogou um olhar mais gelado do que a sua mão. Aí congelei. Continuamos em total silêncio. Eu tinha vontade de quebrar aquele gelo. Mas como? Arrisquei falar alguma coisa, que não me lembro. Só me recordo que deve ter sido alguma coisa engraçada, pois ela fez um arremedo de sorriso. Depois continuei falando, só que também não sei o que foi. Só sei mesmo é que voltei a mim, com ela apertando a minha mão e me agradecendo. A mão já não estava gelada. E aquele par de olhos negros, estava verde. Fiquei assustado. Eu não entendia nada do que estava acontecendo. Ela deu um tchau e foi se desgrudando da grade. Mas antes de entrar na casa, ela me segredou, entre agradecimentos, que o objetivo dela, quando veio de Campos, onde morava, era dar cabo da vida. Eu a olhava atônito. Agora eu percebia como ela era bonita. Era uma menina. Não devia ter mais de quinze anos. Eu estava com a voz embargada. Nem um som saia da minha garganta. Ela pegou a minha mão e beijou-a. Depois disse que nunca mais pensaria em tirar a própria vida. Largou a minha mão e chamou a outra menina. Enquanto ela entrava fiquei pensando no que tinha acontecido naquele pequeno espaço de tempo. Até hoje eu não sei. O que falei pra ela, deve estar escondido em algum lugar. Nesses anos todo que me lembro desse fato, tento encontrar a ponta do fio, mas não consigo localizá-lo. Eu sei que ele deve estar ali, em qualquer fração do tempo. Mas aonde?
Elas deram tchau pra gente e entraram em casa. O meu amigo olhou pra mim, sem entender nada, e me perguntou.
-“Cara, o que houve? Não saquei nada! Meu papo estava indo tão bem com a gata e de repente ela entrou com a outra! Você falou alguma besteira pra menina?”
-“Claro que não! Sei lá! Acho que não! Ela sorriu e me agradeceu. Então eu não falei nenhuma sacanagem! Me diz uma coisa: ela tinha olhos negros ou verdes?”
Antes que ele me respondesse, chamei-o pra ir embora. Mas pelo jeito ele não tinha entendido a minha pergunta. Continuamos o nosso caminho. Não me lembro se chegamos a tempo de ver o jogo.
Eu nunca mais vi a menina. Mas os seus olhos negros (ou verdes), de vez enquanto, ainda se esbarram na minha saudade.
fim