Continuando...
- Sabe Doutor, quando o senhor vir uma
pessoa, vai nos perdoar e dar razão ao nosso comportamento, quando da sua
chegada. Acho que todos nós tínhamos a certeza, que Assombração tinha apenas
trocado de roupa.
Dr. Antou interrompeu bruscamente as
escusas do Dr. Justus, interrogando-o:
- Mas por que assombração?
Dr. Justus, calmamente, foi tentando
colocar o colega a par do mistério que envolvia o rapaz.
- Todos nós só o conhecemos por esse
apelido. É um mistério, a sua origem. Ninguém sabe quem ele é. Ele não sabe de
onde veio e desconhece completamente o nome dos pais.
- Mas ninguém investigou? - perguntou
o Dr. Anton.
- Não sei. Acho que não.
- Ninguém foi à delegacia? Não
procuraram na lista de pessoas desaparecidas?
- Acho que ninguém, realmente, se
interessou. Apenas perguntaram quem ele era. Mas ficou só por aí. Como o rapaz
tem boa apresentação, não se mistura com os mendigos, nem com pessoas suspeitas
e nunca foi visto usando álcool ou drogas, preferiram fazer vista grossa. O
rapaz não estava incomodando ninguém, logo era melhor deixá-lo do jeito que
estava. Tem uma coisa interessante. Uma não, tem mais do que uma. Você não vai
acreditar. Ele, sendo um morador de rua, é uma pessoa asseada. Alguém na cidade
deixa-o usar o seu banheiro. E
tem outra: mora nas árvores do passeio público. Ele agora é parte do folclore
do lugar. Uma pessoa educadíssima e da paz.
Dr. Anton ouvia atentamente o relato.
Preferiu não interrompê-lo. A enfermeira, por outro lado, aproveitou a pausa do
Dr. Justus, que propositadamente tinha parado para sentir o efeito que as suas
palavras estavam causando, e ofereceu mais uma rodada de café, que foi
prontamente aceita pelos dois. Enquanto
a enfermeira foi pegá-lo, Dr. Anton acabou fazendo um aparte:
- Doutor eu estou intrigado com isso.
Não estou nem acreditando que... Há quanto tempo ele apareceu por aqui? Tem
certeza que realmente ele se parece comigo?
Antes de responder, o Dr. Justus abriu
uma gaveta, retirou um envelope e depois falou:
- Se vocês se parecem? Meu Deus! É
impressionante a semelhança de vocês! Mesmo ele trajando roupas doadas pela
igreja local, é uma pessoa muito elegante. Está sempre limpo, de barba feita e
cabelos cortados. Soube que se alimenta muito bem. Leva uma vida regrada. Os
exames que fizemos com ele, mostraram ser ele uma pessoa de uma saúde
invejável. Ele me impressiona muito. Você perguntou sobre o tempo que circula
pela redondeza. Então, pelo que nos foi informado, deve estar por aqui, há mais
ou menos cinco anos.
O médico interrompeu o seu relato,
achando que o colega fosse falar alguma coisa, aproveitou e abriu o envelope.
Mas não foi o que aconteceu de imediato. O Dr. Anton a princípio abortou algum
comentário, entretanto, depois de mostrar uma expressão enigmática, deixando
aflorar um leve sorriso, perguntou:
- O senhor disse cinco anos?
- Sim. Pode ser mais ou menos isso.
Não tenho muita certeza. Mas o mais importante está aqui na minha mão. Esse
papel é o resultado de um exame de sangue. Exame que fizemos com ele.
- Para que foi o exame?
O Dr. Justus abriu outra gaveta da sua
mesa, retirou um cigarro e uma caixa de fósforos. Botou o cigarro na boca,
acendeu um fósforo e ficou algum tempo com o cigarro preso no canto esquerdo da
boca, mas sem acendê-lo. Depois, tirou o cigarro, apagou o fósforo com um
assopro, jogou-o na lixeira, e colocou o cigarro de volta na boca. Deu uma
tragada profunda e deixou escapar um leve sorriso de prazer. Em seguida botou a
caixa de volta, juntamente com o cigarro, na gaveta. Já estava completando seis
anos, quando acendeu um cigarro pela última vez. Olhou para o cigarro e
observou que já estava na hora de trocar por outro, pois já estava ficando
murcho. Só esse hábito ainda não tinha largado. E era como um amuleto, para
momentos em que se sentia meio sem saber o que fazer. - Era só para situações
emergenciais. – dizia. Parecia
que esse ritual, fazia com que tudo se clareasse e a solução se apresentasse
pronta, depois da fumaça imaginária. O
ato de devolver o cigarro e a caixa de fósforos para a gaveta significava -
isso a enfermeira deduziu, mas nunca disse isso para o Dr. - que ele já estava
começando a encontrar a solução para o problema. Elga, já acostumada ao ritual,
não deu importância para o fato. Já o Dr. Anton arregalou os olhos, logo que o
colega pegou o cigarro, e falou, com uma entonação, misto de surpresa e
reprovação:
- Não acredito! O senhor vai fumar
aqui?
O Dr. Justus deixou aflorar um sorriso
amistoso, não se importando com o tom ríspido que o Dr. Anton falou, e
respondeu descontraído:
- Oh! Não, meu amigo! Já parei há
muito tempo! Vou segredar: isso é só um ritual. Finjo que vou fumar, só em
situações que me sinto com dificuldade de resolver. Outro segredo: ainda tenho
muita vontade de fumar. Porém luto bravamente, todos os dias, contra esse vício
cruel. E vou lutar sempre, mas com ele por perto. Não consigo me distanciar.
Sei que continuo um viciado em tabaco, mesmo sem usá-lo. O que fazer! Mas pode
escrever aí: nunca mais voltarei a usá-lo aceso.
O Dr. Anton já mais descontraído, sem
o tom de reprimenda, falou:
- Muito bem. Mas não se arrisque
tanto. O vício tem suas manhas, suas armadilhas... Cuidado. Mas... – fez uma
pausa – e os exames?
- Então... – Dr. Justus interrompeu o
que ia falar por alguns segundos, mas depois continuou – Então... Eu te olho e
fico impressionado da sua semelhança com... Mas vamos em frente: o rapaz soube
que uma criança estava precisando de um transplante de medula. Na realidade
pensou que ela precisasse apenas de sangue. Veio e se ofereceu como doador. Mas
já chegou aqui dizendo que iria salvar a menina. Que coração tem esse menino!
Fizemos o exame de sangue e deu lá: compatível.
- A +? - perguntou o Dr. Anton,
interrompendo o Dr. Justus.
- É sim. Como sabe?
- É o mesmo sangue meu e do meu irmão.
Somos A+.
- Interessante. Dr. precisava ver a
alegria dele. Então marcamos outro dia e fizemos todos os exames necessários.
Amanhã teremos o resultado definitivo. Se der positivo, não sei como vou
colocar o nome do doador. Assombração, é muito esquisito. Amigo, ele não tem
nome.
O Dr. Anton olhou para o médico, já
com os olhos cheios d’água, e disse:
- O senhor não percebeu. Mas ele tem
nome e sobrenome. Ele é meu irmão. Não tenho dúvida. Ainda não vi, mas tenho
certeza. Pensávamos que estivesse morto. Mas graças a Deus, ele está vivo!
- Mas... Será mesmo? Pela semelhança,
realmente pode ser. Há quanto tempo ele foi dado como morto? – perguntou Dr.
Justus.
- Precisamente há quatro anos e oito
meses. – respondeu.
- Mas como foi isso?
- Nosso pai adorava pescar. O domingo
era sagrado. Nunca falhou um. Podia fazer chuva ou sol e ele estava no cais.
Mas era uma pessoa extremamente supersticiosa e não levava mais de uma pessoa
da família com ele. Nunca saímos juntos: eu, ele, minha mãe e meu
irmão. Minha mãe nunca foi mesmo. Ele não a levava de jeito nenhum. Tinha medo
que pudesse acontecer algum acidente e os dois perecerem. Dizia que não queria
dar chance ao azar. A pescaria era ele e eu, ou ele e o meu irmão. Nunca fomos
juntos. Adorávamos esses passeios. Meu velho era um bom pescador e nos ensinou
tudo que sabia. Acabamos gostando. Ficávamos ansiosos para chegar o domingo.
Era dia santo. Mas teve um domingo fatídico. E esse domingo era o meu. Mas nós
trocamos. E...
Continua semana que vem...(ano - rs.rs.rs)