sábado, 31 de dezembro de 2016

ANO NOVO - O VELHO TEMPO

ANO NOVO  -  O VELHO  TEMPO  
                                                               
 José Timotheo

        Ontem, hoje...
         Eu coçando a cabeça e olhando para o ontem, para o hoje e para o amanhã... e pensando... pensando...
         Não sei se foi sempre assim. Não me lembro se faço isso antes ou depois de uma taça de vinho, de um copo de cerveja ou de um questionamento econômico. Sei que se eu ganho dez reais, não posso gastar onze. Mas continuo sem entender... Eu sei que para contador dois mais dois, pode ser quatro ou vinte e dois. Já deu pra ver que gerou dúvida. Mas só estava pensando no ano novo: 2017!!! Mas que já está parecendo ano velho: todo mundo querendo vê-lo pelas costas. Será que devemos tremer? Quem não deve não Temer! É ou não é? Estou pensando também, que o ano novo tem que ser pra frente. Ré, não! É o senado!  E a câmara dos deputados? Deputa... É mesmo! Por isso fazem o que querem! Ali rola uma tremenda orgia! Não é à toa o que o nome sugere! Agora: o que temos a ver com isso? Eles têm é que comer uns aos outros - isso sim!  Chega de câmara, voltemos para o senado! O senador... A dor de Sena, tudo bem. Sentimos e continuamos a sentir. Mas não é mais dor. É uma saudade doída. Quando começa uma corrida e, logo na saída, nos lembramos dele. E vem logo no pensamento: se fosse o Sena, essa corrida estava no papo. Parece que estamos vendo ele preparado para a largada, na poli. A gente continua, inconscientemente (ou não), torcendo pela sua vitória. É uma pena que ele se foi. Acelerou e ultrapassou a velocidade da luz. Agora... Agora temos que conviver com uma dor pior, que acelera, acelera... E por essa dor, não conseguimos nem torcer: é o senador da república. Atualmente essa é a dor mais insuportável. Não, não é bem assim. Ela faz parte de um conjunto de dores. Ah! Acabei de me lembrar de mais uma: tem o supremo! Então... Prefiro não me aprofundar. Escolho um de frango. Agora, tem saída para a entrada no ano? Caraca! Viramos um bando – mais de 250 milhões de almas – de frouxos? Todo mundo bota na gente! E nada? Feliz ano novo. Ou ânus?

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Assombração - Parte 8

Continuando...
          - Sabe Doutor, quando o senhor vir uma pessoa, vai nos perdoar e dar razão ao nosso comportamento, quando da sua chegada. Acho que todos nós tínhamos a certeza, que Assombração tinha apenas trocado de roupa.
         Dr. Antou interrompeu bruscamente as escusas do Dr. Justus, interrogando-o:
          - Mas por que assombração?
          Dr. Justus, calmamente, foi tentando colocar o colega a par do mistério que envolvia o rapaz.
          - Todos nós só o conhecemos por esse apelido. É um mistério, a sua origem. Ninguém sabe quem ele é. Ele não sabe de onde veio e desconhece completamente o nome dos pais. 
          - Mas ninguém investigou? - perguntou o Dr. Anton.
          - Não sei. Acho que não.
          - Ninguém foi à delegacia? Não procuraram na lista de pessoas desaparecidas?
          - Acho que ninguém, realmente, se interessou. Apenas perguntaram quem ele era. Mas ficou só por aí. Como o rapaz tem boa apresentação, não se mistura com os mendigos, nem com pessoas suspeitas e nunca foi visto usando álcool ou drogas, preferiram fazer vista grossa. O rapaz não estava incomodando ninguém, logo era melhor deixá-lo do jeito que estava. Tem uma coisa interessante. Uma não, tem mais do que uma. Você não vai acreditar. Ele, sendo um morador de rua, é uma pessoa asseada. Alguém na cidade deixa-o usar o seu banheiro.  E tem outra: mora nas árvores do passeio público. Ele agora é parte do folclore do lugar. Uma pessoa educadíssima e da paz.
          Dr. Anton ouvia atentamente o relato. Preferiu não interrompê-lo. A enfermeira, por outro lado, aproveitou a pausa do Dr. Justus, que propositadamente tinha parado para sentir o efeito que as suas palavras estavam causando, e ofereceu mais uma rodada de café, que foi prontamente aceita pelos dois.  Enquanto a enfermeira foi pegá-lo, Dr. Anton acabou fazendo um aparte:
           - Doutor eu estou intrigado com isso. Não estou nem acreditando que... Há quanto tempo ele apareceu por aqui? Tem certeza que realmente ele se parece comigo?
             Antes de responder, o Dr. Justus abriu uma gaveta, retirou um envelope e depois falou:
            - Se vocês se parecem? Meu Deus! É impressionante a semelhança de vocês! Mesmo ele trajando roupas doadas pela igreja local, é uma pessoa muito elegante. Está sempre limpo, de barba feita e cabelos cortados. Soube que se alimenta muito bem. Leva uma vida regrada. Os exames que fizemos com ele, mostraram ser ele uma pessoa de uma saúde invejável. Ele me impressiona muito. Você perguntou sobre o tempo que circula pela redondeza. Então, pelo que nos foi informado, deve estar por aqui, há mais ou menos cinco anos. 
              O médico interrompeu o seu relato, achando que o colega fosse falar alguma coisa, aproveitou e abriu o envelope. Mas não foi o que aconteceu de imediato.  O Dr. Anton a princípio abortou algum comentário, entretanto, depois de mostrar uma expressão enigmática, deixando aflorar um leve sorriso, perguntou:
          - O senhor disse cinco anos?
          - Sim. Pode ser mais ou menos isso. Não tenho muita certeza. Mas o mais importante está aqui na minha mão. Esse papel é o resultado de um exame de sangue.  Exame que fizemos com ele.
          - Para que foi o exame?
          O Dr. Justus abriu outra gaveta da sua mesa, retirou um cigarro e uma caixa de fósforos. Botou o cigarro na boca, acendeu um fósforo e ficou algum tempo com o cigarro preso no canto esquerdo da boca, mas sem acendê-lo. Depois, tirou o cigarro, apagou o fósforo com um assopro, jogou-o na lixeira, e colocou o cigarro de volta na boca. Deu uma tragada profunda e deixou escapar um leve sorriso de prazer. Em seguida botou a caixa de volta, juntamente com o cigarro, na gaveta. Já estava completando seis anos, quando acendeu um cigarro pela última vez. Olhou para o cigarro e observou que já estava na hora de trocar por outro, pois já estava ficando murcho. Só esse hábito ainda não tinha largado. E era como um amuleto, para momentos em que se sentia meio sem saber o que fazer. - Era só para situações emergenciais. – dizia.  Parecia que esse ritual, fazia com que tudo se clareasse e a solução se apresentasse pronta, depois da fumaça imaginária.  O ato de devolver o cigarro e a caixa de fósforos para a gaveta significava - isso a enfermeira deduziu, mas nunca disse isso para o Dr. - que ele já estava começando a encontrar a solução para o problema. Elga, já acostumada ao ritual, não deu importância para o fato. Já o Dr. Anton arregalou os olhos, logo que o colega pegou o cigarro, e falou, com uma entonação, misto de surpresa e reprovação:
          - Não acredito! O senhor vai fumar aqui?
            O Dr. Justus deixou aflorar um sorriso amistoso, não se importando com o tom ríspido que o Dr. Anton falou, e respondeu descontraído:
          - Oh! Não, meu amigo! Já parei há muito tempo! Vou segredar: isso é só um ritual. Finjo que vou fumar, só em situações que me sinto com dificuldade de resolver. Outro segredo: ainda tenho muita vontade de fumar. Porém luto bravamente, todos os dias, contra esse vício cruel. E vou lutar sempre, mas com ele por perto. Não consigo me distanciar. Sei que continuo um viciado em tabaco, mesmo sem usá-lo. O que fazer! Mas pode escrever aí: nunca mais voltarei a usá-lo aceso.
              O Dr. Anton já mais descontraído, sem o tom de reprimenda, falou:
          - Muito bem. Mas não se arrisque tanto. O vício tem suas manhas, suas armadilhas... Cuidado. Mas... – fez uma pausa – e os exames?
          - Então... – Dr. Justus interrompeu o que ia falar por alguns segundos, mas depois continuou – Então... Eu te olho e fico impressionado da sua semelhança com... Mas vamos em frente: o rapaz soube que uma criança estava precisando de um transplante de medula. Na realidade pensou que ela precisasse apenas de sangue. Veio e se ofereceu como doador. Mas já chegou aqui dizendo que iria salvar a menina. Que coração tem esse menino! Fizemos o exame de sangue e deu lá: compatível.
          - A +? - perguntou o Dr. Anton, interrompendo o Dr. Justus.
          - É sim. Como sabe?
          - É o mesmo sangue meu e do meu irmão. Somos A+.
        - Interessante. Dr. precisava ver a alegria dele. Então marcamos outro dia e fizemos todos os exames necessários. Amanhã teremos o resultado definitivo. Se der positivo, não sei como vou colocar o nome do doador. Assombração, é muito esquisito. Amigo, ele não tem nome.
          O Dr. Anton olhou para o médico, já com os olhos cheios d’água, e disse:
          - O senhor não percebeu. Mas ele tem nome e sobrenome. Ele é meu irmão. Não tenho dúvida. Ainda não vi, mas tenho certeza. Pensávamos que estivesse morto. Mas graças a Deus, ele está vivo!
          - Mas... Será mesmo? Pela semelhança, realmente pode ser. Há quanto tempo ele foi dado como morto? – perguntou Dr. Justus.
         - Precisamente há quatro anos e oito meses. – respondeu.
         - Mas como foi isso?

         - Nosso pai adorava pescar. O domingo era sagrado. Nunca falhou um. Podia fazer chuva ou sol e ele estava no cais. Mas era uma pessoa extremamente supersticiosa e não levava mais de uma pessoa da família com ele.  Nunca saímos juntos: eu, ele, minha mãe e meu irmão. Minha mãe nunca foi mesmo. Ele não a levava de jeito nenhum. Tinha medo que pudesse acontecer algum acidente e os dois perecerem. Dizia que não queria dar chance ao azar. A pescaria era ele e eu, ou ele e o meu irmão. Nunca fomos juntos. Adorávamos esses passeios. Meu velho era um bom pescador e nos ensinou tudo que sabia. Acabamos gostando. Ficávamos ansiosos para chegar o domingo. Era dia santo. Mas teve um domingo fatídico. E esse domingo era o meu. Mas nós trocamos. E...
        Continua semana que vem...(ano - rs.rs.rs)

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Assombração - Parte 7

Continuando...
          Nisso já tinha parado vários funcionários no hall de entrada do hospital. O médico observou um movimento atrás de si e percebeu que as pessoas faziam comentários entre dentes, olhando na sua direção. Virou a cabeça e mirou um por um, fazendo com que as pessoas se dispersassem. Depois retornou para a posição que estava anteriormente, deu um sorriso amarelo para a recepcionista e indagou:
          - O que é isso? Que está acontecendo alguma coisa, está! Por que essas pessoas estavam de cochicho atrás de mim? Preciso de uma explicação!
           Angélica não respondeu, mas saiu detrás do balcão e pediu para que o médico a acompanhasse. Levou-o até o consultório do Dr. Justus, médico responsável pelo setor de pediatria. Esse, quando o viu, fez um ar de espanto, mas comentou sorrindo:
          - Menino! Aonde você arranjou essa roupa alinhada? Está parecendo outra pessoa! Assombração! Você está elegante!
          O Dr. Anton olhou o Dr. Justus e falou com azedume:
           - O que é que está havendo aqui? Que brincadeira é essa? Estão querendo fazer troça com a minha cara? Agora é o senhor que me chama de assombração! É muita brincadeira para o meu primeiro dia! É um trote?
          A princípio um silêncio constrangedor se instalou no recinto. Só os olhos tentavam dizer alguma coisa. O Dr. Justus parecia que estava entalado. A recepcionista tentava disfarçar, mas acabou saindo de fininho, deixando os dois sozinhos. Nisso a enfermeira Elga que ia chegando, quase se choca com ela. E ao entrar no consultório, levou o maior susto. Ficou  parada olhando para o Dr. Anton, que não se conteve e falou bruscamente:
          - A senhora também? Acha que sou outra pessoa, não é? Eu mereço uma explicação! O que é isso? Meu primeiro dia... e começando mal!
           O Dr. Justus custou a sair do estado que se encontrava. Pigarreou e passou a mão na testa, deu um sorriso sem graça para a enfermeira, mas finalmente convidou o colega para se sentar. Ofereceu a sua cadeira, com o intuito de, de alguma forma, acalmar o Dr. Anton, que recusou, mas sentou-se numa outra cadeira, que normalmente é destinada aos pacientes ou visitantes. Já a enfermeira Elga, ainda espantada com a semelhança do Dr. Anton com Assombração, acomodou-se numa cadeira do outro lado da sala, sem, no entanto, desgrudar os olhos dos médicos. O mal estar estava instalado. O Dr. Justus, que ainda continuava em pé, depois de alguns minutos sem saber o que fazer, optou por sentar-se, mas sentou-se de lado na cadeira. Estava realmente se sentindo muito embaraçado. Era uma situação que nunca tinha passado. Algo constrangedor. Cruzou as pernas e fingiu amarrar o cadarço do sapato. Em seguida girou na cadeira e ficou de frente para o Dr. Anton.  Olhou para o colega, que estava de cabeça baixa e repentinamente esticou o braço e se apresentou:
          - Meu nome é Justus. Sou médico oncologista.
            Dr. Anton levantou a cabeça e encontrou o braço esticado do colega. Em sinal de educação, mesmo estando chateado, apertou-lhe a mão com vigor, e também se apresentou:
          - Prazer. Anton. Sou também oncologista.  Trabalhei na capital, no setor de pediatria. 
            Antes de falar alguma coisa a mais, o Dr. Justus engoliu em seco e falou timidamente:
          - Então... É... Então é o senhor que veio substituir o Dr. Carlos Antunes?
             Dessa vez ele respondeu prontamente:
          - Sim. Mas com a recepção que tive, acho que não vou ser aceito. Tenho quase certeza. Um conceituado hospital, que é esse, não contrataria uma alma de outro mundo, não é?
          A enfermeira Elga não conseguiu conter-se e soltou uma estridente gargalhada, que deve ter sido ouvida por todo o hospital. O Dr. Justus tentou ao máximo prender o riso, já estava ficando corado, mas acabou entrando no clima da enfermeira e desandou a rir. Dr. Anton, a princípio fez uma cara de desagrado, entretanto, vendo que os dois não paravam de rir, foi aos poucos se descontraindo e acabou aderindo ao riso frouxo, mas procurou ser mais comedido. Aquilo serviu para que os três pudessem finalmente conversar amigavelmente.

         O ambiente foi aos poucos ficando mais leve. A enfermeira Elga levantou-se, já conseguindo controlar a explosão de riso, respirou fundo, mas não conseguiu afastar completamente o sorriso, que teimava em ficar nos seus carnudos lábios. Ajeitou o uniforme e gentilmente ofereceu café para os médicos. Eles aceitaram e ela foi pegá-lo na cafeteira elétrica, num espaço improvisado em cozinha, escondido atrás de um biombo. Depois de servidos, é que finalmente a conversa pode rolar descontraída. Com a curiosidade estampada nas faces, o Dr. Anton quis logo saber o porquê de se dirigirem a ele naqueles termos. Dr. Justus se desculpou e procurou esclarecer o mal entendido.
       Continua semana (ano) que vem...rs.rs.rs.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Feliz Natal e um 2017 Próspero


FELIZ NATAL E UM 2017 PRÓSPERO    


            Tenho que manter otimista o meu otimismo. Tem momentos que, mesmo torcendo para que tudo dê certo, a certeza não se apresenta esperançosa. Mas coloquei dentro da minha cachola que vou lutar até onde houver um ponto de luz, e tentar vislumbra-lo como um farol. Cheguei à conclusão de que não podemos engrossar a fila dos abandonados da alegria. Temos que erguer as nossas árvores de natal nos quintais da vida e acendê-las de sóis. A luz tem que ofuscar a escuridão. O bem tem que se fazer o ídolo máximo. Temos que nos orgulhar do bem. O mal, já era. Vamos aproveitar e “trocar de bem”, com quem trocamos equívocos. Quem não sentiu um bem estar depois de alguma boa ação? Bem me quer, mal... ninguém merece.
Boas festas para todos.
                                               José Timotheo

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Assombração - Parte 6

Continuando...

        O doutor ficou por algum tempo sem responder. Falar o quê? Ninguém poderia ter um nome assim. A enfermeira já tinha até comentado sobre o apelido, mas mesmo assim estava surpreso. Tirou a mão de cima do ombro de Assombração, puxou uma cadeira e sentou-se de frente para ele. Ficaram os dois conversando por alguns minutos. O doutor perguntou tudo que podia para tentar desvendar, ou encontrar alguma pista que o levasse à sua identificação, mas nada conseguiu. Ele repetiu tudo que já havia falado para enfermeira. Ou seja: muito pouco. Simplesmente disse mais uma vez, que abriu os olhos ao amanhecer e estava ali no bairro.  O seu aparecimento na região sempre foi um mistério. Nem o Seu Juca e nem Dona Verona, as únicas pessoas mais próximas, conseguiram descobrir de onde ele tinha vindo. Entretanto nunca foram até a uma delegacia investigar de verdade. Só tentaram mesmo conversando com Assombração. Aí se passaram quase cinco anos.   
           O Dr. Justus se levantou, deu um sorriso meio sem graça e disse:
          - Venha comigo, rapaz.
           Assombração devolveu o sorriso e acompanhou-o. A enfermeira tentou falar alguma coisa, mas o doutor desconversou e pediu para que ela o acompanhasse também. Dentro do consultório do Dr. Justus, acertaram que iam coletar o sangue de Assombração, apenas constando esse apelido. Depois veriam o que fazer. E assim foi feito. O exame foi marcado para o dia seguinte. Assombração chegou na hora marcada, confirmando que era uma pessoa pontual. Rapidamente o Dr. Justus já estava com o resultado na mão, que confirmava a compatibilidade com o sangue da menina. Tinha o mesmo tipo sanguíneo: A +. Mas ele sabia que isso não era tudo, já que alguns familiares tinham o sangue compatível, entretanto, não confirmavam a compatibilidade tecidual, que é determinada por um conjunto de genes, localizado no cromossomo 6. Tinha que fazer o exame de histocompatibilidade. Só com a análise das células do doador e do receptor é que se poderia determinar a compatibilidade.
          Assombração quando soube que tinha o mesmo tipo sanguíneo da menina, falou emocionado para a enfermeira:
          - Não disse! Meu sangue serve para a menina do nº 18! Ela vai ficar boa! Vai mesmo!
          Elga sorriu, mas preferiu não jogar água fria na sua felicidade. Com cuidado tentou explicar que teriam que ser realizados outros exames. E que só depois é que poderia ser confirmada a sua compatibilidade. Assim mesmo ele saiu do hospital explodindo de tanto contentamento. Foi mostrar a sua alegria para o Seu Juca e Dona Verona, que acabaram embarcando na sua euforia. Acharam até que estava tudo resolvido. Mas antes de se retirar, Assombração comentou que teria que voltar ao hospital para fazer mais alguns testes, porém deixou claro que o seu coração dizia que estava tudo certo, independente desses exames. A sua certeza era tanta, que os dois amigos entraram de corpo e alma no seu clima. Dali para frente o pensamento positivo já tinha tomado conta de ambos.  Assombração deixou-os curtindo aquele momento de paz e saiu para escolher qual árvore ia ser o seu lar naquela noite, pois a tarde já estava quase se despedindo. Procurou andar rápido para tentar chegar antes que os pássaros se recolhessem. Não queria causar nenhum incômodo aos moradores de direito. Chegava e ficava em silêncio até adormecer. De manhãzinha, despertava com a passarada.
           O sol chegou sem modéstia. Veio e cobriu com a sua luz a cidade. O hospital já estava no seu corre-corre costumeiro: um entra e sai frenético, de funcionários chegando para o setor burocrático; outros, do corpo médico, para iniciarem o plantão de 12 horas e mais alguns médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, deixando o plantão noturno, de luta e dedicação. A recepcionista Angélica já estava sentada na sua cadeira, distribuindo um bom dia para quem chegava e para quem saía, sem deixar, entretanto, o seu sorriso costumeiro, descolar dos lábios.  De repente ao olhar na direção da porta de entrada do hospital, emoldurou um sorriso de surpresa, que fora até notado pela amiga da recepção. Só descongelou-o quando uma pessoa chegou até o balcão. Nesse momento teceu um comentário:
          - Quê qui é isso? Não estou acreditando no que estou vendo! É você mesmo? Vestido assim, tá parecendo outra pessoa! Irado! Assombração, quem te arrumou assim? 
           O rapaz olhava para a recepcionista, com o rosto corado,  aparentando surpresa com o comentário e custou a respondê-la. Mas falou baixinho:
          - Senhorita. Não entendi bem essa intimidade comigo.  Assombração? O que é isso? A senhorita me conhece?
         - Claro! Claro! E quem não te conhece? Aqui no bairro não tem uma pessoa que não te conheça!
        - Desculpe, mas eu não moro na redondeza. Moro na capital.
          A recepcionista não falou de pronto, antes deixou que um sorriso descontraído viesse aos lábios. Olhou-o bem nos olhos e perguntou:
         - Não mora? Como não mora! Eu só não sei em que árvore você está habitando hoje!  Só isso!
         - Não estou entendendo nada. O que é que está acontecendo aqui? Senhorita, cheguei ontem de Vitória, onde moro desde que nasci. Estou chegando para ocupar o meu posto de trabalho, na ala de pediatria.
            Antes de falar alguma coisa, a recepcionista arregalou o par de olhos para o rapaz. Num misto de surpresa e incredulidade, falou, gaguejando:
           - Nã... nã... não! É o que estou pensado? Então o senhor... É... O senhor é médico! Médico mesmo? Não! Não pode mesmo! Não pode ser!

          - Sim. Doutor Anton. Vim ocupar a vaga do Dr. Carlos Antunes. A senhorita deve estar me confundindo com outra pessoa.
             Semana que vem continua...

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Assombração - Parte 5

Continuando...
            Assombração a princípio, antes de responder, olhou para o teto da sala, coçou a cabeça, dirigiu o seu olhar novamente para a enfermeira, aparentemente sem vê-la, e deixou escapar um leve sorriso.  Parecia que procurava alguma coisa dentro da sua cabeça que elucidasse essas perguntas.  Sorriu de novo, agora para ela, e disse: - Seu Juca acha que eu tenho vinte e cinco anos. Eu nem sei se eu nasci! Não me lembro de nada!
          - Se preocupe não! Isso é normal! Ninguém se lembra do dia em que nasceu! O senhor tem aí algum documento?
          - Documento... Que documento?
         - Pode ser a certidão de nascimento. Carteira de identidade. Carteira de trabalho. Qualquer coisa que identifique você.
         - Mas eu não tenho nada. Eu só tenho esse nome.
           Elga não sabia o que falar para aquele rapaz de sorriso limpo. Mas sabia que ali na sua frente, tinha alguém de coração puro. Alguém que a violência, o rancor, a tristeza, o ódio e... nada, nenhum sentimento ruim  havia feito ninho naquela alma clara. Começou a ensaiar, na sua cabeça, alguma coisa que não o melindrasse. Pensou uma porção de coisas. Pensou, mas não tinha muito o quê pensar, essa era a realidade. Acabou voltando para o que tinha começado a conversa.
          - Rapaz, todos nós temos pelo menos um documento para sermos identificados. A certidão de nascimento é um deles. Ali diz tudo a nosso respeito. Tem o dia e a hora do nosso nascimento. Tem os nomes dos nossos pais. E você... não tem nada, nada que o identifique. Infelizmente sem sabermos a sua identidade, você não vai poder ser doador.
           Elga parou de falar e ficou esperando alguma reação de Assombração. Mas ele olhava para ela e não conseguia falar nada. Os seus olhos começaram a se encher de lágrimas e começou a escorrer pelo rosto. Ela estava emocionada também. Nem conseguiu interromper aquele momento. Baixou a cabeça e esperou que ele dissesse alguma coisa.  O tempo se abraçou ao silêncio doído. As lágrimas corriam dos rostos dos dois.  Elga não encontrou coragem para quebrar o silêncio. Mas Assombração acabou conseguindo forças e, depois de enxugar os olhos com as costas da mão, disse:
          - Senhora. Senhora. Tenho que salvar a menina. Alguma coisa me diz que eu vou ajudá-la a ficar boa. É só o meu sangue. Só isso. Ninguém precisa saber quem deu. Eu sei que não sou ninguém, mas tenho o sangue que vai curá-la. Bota o nome de qualquer pessoa. Sangue não tem nome.
         Elga não sabia como fazer qualquer ponderação. Passou as costas das mãos sobre olhos para enxugá-los. Não se lembrava de já ter visto alguma pessoa com tanta pureza de coração. Cada palavra que ele dizia, vinha como uma música suave e bela. - Como podia um ser tão simples, transpirar tanta grandeza! - pensava. Elga não estava conseguindo dizer que existia uma burocracia a ser cumprida. O doador tinha que existir no papel, não só fisicamente. Mais uma vez, uma cortina de silêncio envolveu os dois. A enfermeira estava penalizada. Assombração estava com a cabeça baixa, e de vez em quando tentava enxugar mais alguma lágrima que insistia em cair. O tempo também devia estar penalizado com aquela situação e resolveu parar. Mas o coração parece que é atemporal, e se lixou para que o tempo pensava. Deitou suas emoções pela pequena sala enquanto seu coração batia tudo que tinha direito. As palavras se intimidaram e ficaram congeladas na boca da enfermeira. Porém ela sabia que tinha que fazer alguma coisa, mas sem força, baixou também a sua cabeça. Mas a mão do destino sempre vem em socorro e, em momentos dificílimos alguma coisa acontece. Lá está a salvação. Um som arranhado invadiu a sala. A porta ao lado de Elga se abria lentamente. Assombração levantou a cabeça, mostrando um rosto banhado de lágrimas. Elga girou a cabeça, com a cara não menos congestionada, e esperou aparecer alguém. Um bom dia, salvador, ecoou pela sala. Era o Dr. Justus que adentrava o recinto, com o seu sorriso costumeiro. Fechou a porta atrás de si e se dirigiu a enfermeira. Conversaram durante alguns minutos. O que falaram, Assombração não ouviu ou não quis ouvir. Era mais provável a segunda opção. Tendo em vista que não era do seu feitio se meter em conversa alheia.  Alguma coisa no seu íntimo, dizia que isso era falta de educação.
          O Doutor estava aparentando preocupação. Enquanto a enfermeira falava ele passava uma das mãos pelos cabelos e, de vez em quando dirigia um olhar para o rapaz, que se mantinha novamente com a cabeça baixa. Mas quando Elga parou de falar, o doutor girou nos calcanhares e começou a caminhar pela pequena sala. Ia e vinha. Carregava no semblante o peso de interrogações que necessitavam de respostas. Estava perdido em reflexões. De vez em quando ele olhava para Assombração, mas não conseguia encontrar o que falar. E assim ficou cismando por minutos. De repente parou de frente para um quadro, de autor desconhecido, que estava pendurado na parede próximo à porta, que dava para o corredor. Olhava para a pintura, mas sem, na realidade, nada ver. Ficou ali plantado, sem se mexer. O que se passava dentro da sua cabeça, ninguém sabia. Aqueles minutos duraram uma eternidade. De repente buliu no quadro, colocando-o em outra posição. Não satisfeito, voltou para a posição inicial. Em seguida foi em direção à porta do seu consultório. Abriu-a, mas não entrou. Dava para perceber que a sua cabeça fervilhava de indecisões. Pensou em ir sentar-se em frente de Assombração. Mas ficou apenas observando-o. De repente caminhou até ele, colocou uma das mãos no seu ombro e disse:
          - Meu rapaz... – deu uma pausa, esperando que Assombração olhasse para ele. Quando isso aconteceu, sentiu um arrepio que percorreu todo o seu corpo. Foi uma sensação boa. Não foi daqueles arrepios que às vezes temos e que nos deixam incomodados. Esse não. Foi diferente. Estava com a alma leve. Nunca tinha recebido um olhar com tanta bondade. Por um momento retirou a mão do ombro do rapaz, passou a mão nos cabelos e se despiu do olhar sério. Voltou a colocar uma das mãos em cima do ombro de Assombração, deu um leve sorriso e voltou a falar:
          - Meu rapaz... Qual é mesmo o seu nome?
            Assombração, agora mais calmo, mesmo sem saber o porquê daquela súbita tranquilidade, sorriu e falou:

          - Assombração. Assombração, senhor.
       Continua semana que vem...

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Assombração - Parte 4

Continuando...
             A recepcionista não conseguiu falar nada. Estava completamente emocionada. Olhava para Assombração e pensava: - Um homem tão pobre, vivendo da cata de lixo, mas carrega um coração tão grande. Homem bom taí! Esse é um bom sinal! Mostra que devemos acreditar na humanidade! Que o mundo tem jeito! - se levantou, falou alguma coisa com a colega ao lado, pegou Assombração pela mão e se dirigiu para o interior do hospital.  Aquele era um mundo desconhecido para ele. Observava, sem a recepcionista perceber, cada pedaço de corredor que passavam. Ficou admirado que ao cruzar com algumas pessoas, era por elas cumprimentado e que ainda deixavam um sorriso. Algumas até o chamavam pelo nome. Realmente estava surpreso. Não sabia que outras pessoas o conheciam, além de Dona Verona e Seu Juca. Já ele, não fazia a menor ideia de quem eram aquelas pessoas. Dava um oi, meio sem jeito, mas não parava, e continuava em frente, rebocado por Angélica, a recepcionista.
            O corredor parecia que não tinha fim. Mesmo sendo uma pessoa acostumada a longas caminhadas, já estava se sentindo cansado. Talvez a exaustão fosse fruto da ansiedade. Quando pensou em reclamar com a menina, ela parou em frente a uma porta, deu uma pequena pancada e entrou. Era uma pequena sala bem iluminada, toda pintada de branco e bem aconchegante. Pelo cheiro, parecia que tinha sido pintada recentemente. Mas tinha outro perfume no ambiente que não conseguiu identificar, porém causou-lhe um tremendo bem estar. Com certeza era o melhor cheiro que tinha sentido nos últimos tempos. Ficou olhando tudo em volta. Estava extasiado. Aquilo tudo fazia bem a ele. O cheiro do hospital fazia se sentir à vontade. Não saberia explicar o que estava acontecendo, mas aquele ambiente era por demais familiar. Estava se sentido em casa. No meio daquele devaneio todo, acabou se assustando quando a recepcionista mandou-o sentar-se. Sorriu e sentou-se numa pequena poltrona. Não acreditava no que estava acontecendo. Tirou e colocou o traseiro, pelo menos três vezes. Estava se sentindo confortável. Não sabe o porquê, mas se lembrou do Seu Juca. Era ele quem o deixava tomar o seu banho diário. Deixava também lavar a sua roupa. Nunca gostou de andar sujo. Era uma pessoa asseada. Viver em contato com lixo, não quer dizer que vá se tornar um. Fazia questão de comprar o seu sabonete, o mais cheiroso, na tenda do Seu Onofre. Sujeito emburrado, mas que parecia boa gente.
          Enquanto Angélica conversava com a enfermeira, ele continuou vasculhando a memória e deixou escapar um sorriso, quando se lembrou da menina do nº 18, batendo com a mão para ele e mandando um beijo estalado. Acordou das suas lembranças quando a recepcionista tocou no seu ombro. Assustou-se, mas mesmo assim não deixou de sorrir. Ela carinhosamente passou a mão na sua cabeça e disse: - Vou deixar você com a enfermeira Elga. Ela vai explicar tudinho a respeito de doação. Passo a passo. Todos os procedimentos. Tudo, tudo. Está bem? – Assombração balançou afirmativamente a cabeça e beijou as costas da mão dela.  Ela sorriu, deu um tchau para os dois e saiu da sala.
          A enfermeira com a cabeça baixa parecia que escrevia alguma coisa. Isso foi o que ele deduziu. Mas ela também pegava alguns papeis na gaveta, arrumava num canto da mesa e guardava outros, em silêncio. Ele se cansou de ficar observando os movimentos de Elga, desviou sua atenção para alguns cartazes que estavam afixados num quadro de avisos. Lia um por um. Lia, mas não sabia como tinha aprendido. Escrevia também. Quando tinha vontade, copiava alguma coisa de alguma revista e escrevia em um caderno, encontrado numa lixeira. Nunca soube dizer onde tinha aprendido a ler e escrever. Tentou bastante, mas depois desistiu, já que a sua lembrança não passava do dia em que tinha acordado naquela cidade.
            Um dos cartazes, do quadro de avisos, chamou a sua atenção. Estava escrito: - “Seja um doador. Salve uma vida”.  Com os olhos fixos na frase, pensou: - Vou doar alguma coisa minha, pra salvar a menina do nº 18. – Assombração despencou dos pensamentos e voltou à realidade, quando a enfermeira Elga o chamou. – Senhor, senhor, pode vir até aqui? – ele olhou para Elga - nunca tinha sido chamado de senhor - abriu um sorriso, talvez o maior da sua vida, e quase deu uma gargalhada. Não com o tamanho da do Seu Juca, mas não ia deixar de ser uma gargalhada. Mas conseguiu conter-se.  Levantou-se e foi até a mesa da enfermeira. Ficou em pé defronte dela. Só se sentou quando ela indicou-lhe uma cadeira. Sentou-se meio sem jeito, mas olhou-a na cara. Parecia que já fazia isso, há muito tempo. Percebeu que era uma coisa normal. Concluiu que tinha que ter feito isso sempre, pois só assim ele reconheceria todas as pessoas que o chamaram pelo nome. Esperou, com um sorriso grudado nos lábios, a enfermeira voltar a falar com ele. Elga então levantou o olhar para ele e falou: - Você sabe o que veio fazer aqui, não sabe?
          - Sei sim. Eu vim até aqui para salvar a vida da menina do nº 18.
          Elga deu um sorriso e disse: - Essa menina que você fala, é Vera. Verinha.
         - Agora, sei sim. Antes, eu não sabia não.
         - Então vamos lá. Mas antes de qualquer procedimento, temos que conversar um pouco. Primeiro vamos preencher uma ficha. – A enfermeira  pegou uma caneta e abriu uma folha. Olhou para ele e perguntou: - Qual o seu nome.
         - Meu nome... Meu nome... Só sei que me chamam de Assombração.
         - Mas... Assombração?
         - É. É isso mesmo.
         - Mas assombração não é nome, é apelido.
         - Eu só sei isso. Foi Seu Juca que me chamou assim. Ele que me deu esse nome. Então esse é o meu nome. Eu gosto dele.
            A enfermeira Elga ficou olhando para ele sem saber direito o que fazer. Como poderia colocar uma pessoa a candidato a doador, que não  tinha nome? Mas arriscou perguntar mais alguma coisa.

         - Quantos anos você tem? Qual a data do seu nascimento?
     Continua semana que vem...

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Assombração - Parte 3

Continuando...
Assombração caminhou bastante. Chegou cansado, parecendo que tinha participado de alguma maratona. Humildemente foi entrando porta adentro. Parou há alguns metros da recepção. Olhou, mas se sentiu um pouco envergonhado. Mirou duas recepcionistas, tentou falar alguma coisa, mas a voz resolveu não sair. Aquilo estava difícil para ele.  Uma das recepcionistas percebendo que ele não estava nada, nada confortável, se dirigiu a ele e falou sorrindo: - E aí, Assombração! O quê que você deseja? Tudo bem? – Ele acabou deixando um sorriso tímido escapulir e até conseguiu falar alguma coisa: - Tô! Estou bem! Você me conhece? – a recepcionista sorriu novamente. Com uma voz doce e batendo levemente na sua mão, disse: - Claro. E quem não te conhece? Posso te ajudar? – aí que Assombração ficou com a cara de quem tinha visto assombração. Depois o seu rosto foi ficando avermelhado, parecendo um tomate quase maduro. Custou a sair daquele estado. Antes de falar alguma coisa, esperou o coração voltar a um ritmo que pudesse respirar com mais tranquilidade. Estava envergonhado. Com isso, ficou nervoso pra cacete. Baixou a cabeça e respirou fundo várias vezes. Isso dava certo. Já tinha feito antes. Mas nunca soube como aprendeu. Entretanto, naquele momento, não fazia a menor diferença saber.  Ele tinha é que voltar a se equilibrar, serenar o seu coração. E foi aos poucos conseguindo que os batimentos cardíacos voltassem a um patamar tolerável. O coração tinha respondido ao seu apelo mudo. Acabou encontrando coragem para falar com a recepcionista, mas sem ainda conseguir olhar cara a cara. – Todo mundo me conhece? Conhece mesmo? – A menina antes de responder, bateu levemente na sua mão de novo: - Claro! Acho que todo mundo gosta de você! - Assombração com um pouquinho mais de segurança, disse: - Pensei que só Dona Verona e Seu Juca me conheciam. – deu uma pausa e continuou: - A senhora pode me ajudar? – a recepcionista deu um sorriso e brincou com ele: - Senhora, Assombração? Sou muito nova pra isso! Sou quase da sua idade! – ele sorriu mais descontraído, mas se guardou de novo dentro do silêncio. Ela se calou e esperou para ver se ele dizia alguma coisa. Já que ele emudeceu, ela voltou a falar. – Vamos ver se posso te ajudar. Fica tranquilo e fala o que você deseja. Mas olha pra mim, viu! – Brigando contra a sua timidez, finalmente ele conseguiu olhá-la. Quando os olhos se cruzaram, Assombração se sentiu nas alturas.  O olhar da menina era tão meigo, de uma ternura tal, que naquele momento percebeu que a sua timidez tinha saído correndo. Instantaneamente abriu um sorriso de orelha a orelha, tão conhecido da vizinhança, para Angelina, a recepcionista, uma cabocla de cabelo escorrido e olhar amendoado. De repente sentiu que os seus olhos estavam molhados. Passou as costas das mãos tentando secar a pequena poça lacrimal. Pela primeira vez teve a sensação de que podia realmente encarar uma pessoa e dizer o que ia dentro do seu coração, sem vergonha nenhuma. Percebeu que do outro lado tinha um ser humano igualzinho a ele, que sorria, chorava, que podia ser feliz, mas que também sentia dor. E não importava se era branco, preto, amarelo, vermelho ou de qualquer outro tingimento. Era gente igual a ele. E gente é tudo igual, mesmo tentando ser diferente. Tem muita gente fora de foco, isso tem! Preconceituosa, vaidosa, vaidosa até ao extremo, ladra em demasia e... mesmo assim, são seres humanos e como tal, podem ser consertados. Não sei bem como fazer isso agora, mas tenho esperança. De repente numa próxima volta?! Assombração engoliu o sorriso escancarado, mas deixou escorregar um sorriso de canto de boca, e falou: - Oi. Eu fiquei sabendo que a menina do nº 18... Verinha. O nome dela é Verinha. Eu... – de repente interrompeu o que estava falando e ficou olhando para a recepcionista. Ela retribuiu o sorriso, passou carinhosamente a sua mão nas costas da mão dele. Ele sorriu novamente, mas não conseguiu falar nada. Angelina quebrou o gelo, dizendo: - Deve ser a paciente do quarto 233. Acho que é Vera. Deixa que vou confirmar. É isso mesmo. Mas ela não pode receber visitas. Recomendações médicas.
          - Mas eu não quero fazer nenhuma visita não. – ele retrucou.
            Angelina olhou-o com ternura e disse: - Você quer saber como ela está passando? Acho que continua mais ou menos. Está na mesma. Continuam procurando um doador de...
          Assombração não deixou que a recepcionista concluísse a frase.
         - É isso! É isso! Eu quero dar o meu sangue pra ela! Ela vai ficar boa!
         - Então você quer ser doador?
         - É isso! É isso sim!
         - Mas não é só doar o sangue.

         - Tudo bem! Eu dou até o meu coração! Eu só quero que ela fique boa! Só isso!
                 Continua semana que vem...

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Assombração - Parte 2

              Continuando,,,
            Uma claridade meio embaçada pegou Assombração com a cabeça já descoberta. Os seus amigos vizinhos de “quarto”, já tinham debandado. Ele continuou assim, com medo de espantar algum retardatário. Antes de confirmar que estava sozinho, não saiu debaixo do plástico negro. Algum tempo depois, com a certeza de ser o último morador a se levantar, é que desceu da árvore. A rua ainda se espreguiçava. Mas ele tinha certeza que Dona Verona já estava de pé. Ia tomar o seu café antes de começar o seu trabalho, a sua garimpagem. Encontrou, como sempre, uma xícara de café e um pedaço de pão, arrumados no cantinho do balcão. Dona Verona sabia de cor o horário de ele chegar e já deixava tudo arrumadinho. Tentou por várias vezes não cobrar pelo desjejum, mas ele nunca aceitou. E assim os dias foram passando no mesmo ritmo. Todo dia era o mesmo ritual, só que o sorriso de Assombração começava a escassear. O calendário já havia pulado para outro mês e ele só tinha as gargalhadas do Seu Juca, o “Vai com Deus, meu filho”, de Dona Verona, mas o sorriso da menina tinha sumido. Alguma coisa estava errada. Estava errada, porque o deixou triste. E ele nunca ficava triste. Por que agora o sorriso fugiu da sua boca?
          Novas manhãs surgiram. Mas os dias continuaram se arrastando feito animal peçonhento. A verdade é que a sua alegria tinha entristecido. Nunca foi de parar em frente das casas da redondeza, mas resolveu ficar em frente ao nº 18, esperando para ver se a menina aparecia. E foi ficando. E foi ficando até o sol dar sinal que ia se esconder. E nada da menina. Antes de sair, observou que a casa estava completamente fechada. Pelo quintal, as folhas secas das árvores se amontoavam. Dava a impressão de total abandono. Sentiu um aperto no coração. Se sentiu como aquelas folhas, amarelas e envelhecidas. Parecia que a vida estava fugindo. Não se lembrava de em algum momento da vida ter chorado. Emocionado, ficou várias vezes. Ficando até com os olhos rasos d’água. Mas sem perceber, já estava com o rosto banhado de lágrimas.  Botou pra fora toda a sua tristeza. Chorou o que pode, até não ter mais lágrimas a derramar.
          Assombração caminhou pra lá e pra cá, em frente ao portão. De repente a sua barriga roncou. Aí captou a mensagem de que ainda não tinha comido nada até àquela hora. O alarme tinha disparado. A princípio não deu muita importância, tendo em vista que não estava com vontade de comer, mesmo estando com fome. Mas achou esquisito aquilo que estava sentindo pela primeira vez. Tinha fome, mas não estava com vontade de comer. Mas alguma coisa o arrastou para casa de Dona Verona. Chegou, mas achando que não encontraria mais comida. A amiga olhou pra ele, deu um sorriso, mas não perguntou o porquê dele ter chegado tão tarde. Pegou a quentinha que tinha guardado, e o entregou. Ele, sem levantar a cabeça, apanhou a vasilha de comida e se sentou numa caixa de refrigerantes que estava ao lado da porta. Deve ter sido o hábito que fez com que ele pegasse no bolso, o garfo que guardava enrolado com um pedaço de atadura elástica, encontrado em algum lixo. Mexeu na comida de um lado para o outro. Mas nada de levá-la à boca. A barriga roncou mais uma vez, alertando-o da necessidade de comer. Porém continuou resistindo. – E a menina do nº 18? – continuava se perguntando. E ali ficou sentando bastante tempo sem arriscar levar o garfo à boca. Dona Verona observa o amigo. Uma pessoa que tinha chegado e angariado a sua simpatia.  Gostava dele. Quando o via, lembrava-se do filho, que um dia, havia muito tempo, tinha metido os pés pelas estradas do mundo. Enxugou discretamente os cantos dos olhos. Ia perguntar alguma coisa, mas desistiu. Nunca tinha visto Assombração com a cara tão preocupada. Não tinha lembrança da falta de sorriso naquela cara redonda. Esboçou um ar de preocupação, mas depois balançou a cabeça, achando que não devia ser nada demais. Achou que era normal, já que todo mundo tem o seu dia ruim. E como não gostava que perguntassem o porquê de estar triste, preferiu não se intrometer na vida do amigo. Entrou e foi fazer o que sempre fazia: cozinhar.

          Alguém chegou vagarosamente e se postou ao lado de Assombração, dando o maior susto no rapaz, que quase caiu da caixa. Era o Seu Juca, que soltou a sua gargalhada costumeira e em seguida comentou: - E aí! Se assustou? Sou também uma assombração!  Sou ou não sou? – Assombração acabou esboçando um sorriso, mas voltou a ficar de cabeça baixa. Seu Juca não notou o estado de tristeza do seu amigo e foi procurar Dona Verona. Se chegou ao balcão e chamou pela a amiga. Rapidamente foi atendido. Pediu uma média e um misto quente. E aproveitou para jogar conversa fora. Dona Verona aproveitou o papo e comentou sobre o estado estranho de Assombração. Seu Juca olhou na direção dele e disse: - Será que ele sabe o que aconteceu com a menina do nº 18? – E o que é que aconteceu com ela? – perguntou Dona Verona secamente. – Seu Juca abriu um ar de espanto, não acreditando que ela não soubesse do que estava acontecendo, fato que quase toda a vizinhança já sabia, e custou a responder. Fez um esforço para romper o silêncio. – Coitada da menina. A senhora não sabe nada mesmo? – Dona Verona balançou a cabeça negativamente. Estava com os olhos arregalados e pareceu que estava com alguma coisa presa na garganta. A voz não saiu. Seu Juca então continuou a falar: - Coitadinha. Não é que apareceu uma doença no sangue dela! Coitadinha da menina do nº 18! – Assombração, que aparentemente estava alheio à conversa dos dois, levantou-se num pulo. Não tinha escutado tudo, mas bastou o final da conversa para puxá-lo para a realidade. E rapidamente já estava de pé, do lado do Seu Juca. E já com a ansiedade à mostra, indagou: - Ela quem? Quem é que tá com doença no sangue? – Seu Juca olhou para Assombração e falou, demonstrando surpresa. – Ué! Pelo jeito você também tá por fora? Relaxa garoto! Relaxa! Você não sabe mesmo? – Assombração engoliu um pouco de saliva e respondeu perguntando: - Não sabe o quê? Eu não sei de nada! Fala Seu Juca! Fala! – Seu Juca tentando demonstrar tranquilidade, diminuiu o tom de voz e atendeu a curiosidade do amigo, mas com a alma assustada. – É a filha do Aquino. Sabe quem é? A Verinha está... – Quem é Seu Aquino? Quem é Verinha? Não sei Seu Juca! Me diz Seu Juca! Só não pode ser... – Assombração sentia o coração apertado. Alguma coisa apontava numa direção que, no fundo, não queria aceitar, mas que quase tinha certeza. Olhou para dentro dos olhos do Seu Juca, coisa que nunca fazia, e deixou escapulir uma lágrima. Seu Juca tentou tranquilizá-lo, dizendo: - Calma. Calma. Eu não sei em quem você está pensando, mas se for à mesma pessoa, fica calmo. Pode não ser coisa grave. Você não sabe mesmo quem é Verinha? – Assombração balançou a cabeça negando. Seu Juca continuou. – É a menina do nº 18. Sabe quem é? – Assombração não respondeu, mas caiu num pranto de dar dó. Dona Verona saiu detrás do balcão e foi tentar consolar o seu melhor freguês, a quem já considerava como um filho. – Meu filho. Calma meu filho. Não chora não. Fica calminho. Vem cá. Senta aqui nessa caixa de refrigerante. Vou pegar um pouco d’água com açúcar pra você. – alisou a cabeça dele e foi pegar a água com açúcar. Não demorou muito e lá estava ela com o seu “calmante” caseiro. Assombração tomou-o todo, num só gole. Respirou fundo e indagou dos amigos sobre o paradeiro da menina. Seu Juca que ainda não tinha saído totalmente do choque da explosão de dor do rapaz, antes de falar alguma coisa, respirou fundo, pigarreou e tentou passar para ele tudo que sabia do caso. – Calma. Eu vou te informar de tudo que sei. Fiquei sabendo que ela tem chance de ficar boa. Dizem que já estão procurando algum doador. – Assombração interrompeu o amigo num repente, indagando-o: - Doador de quê? Eu posso doar qualquer coisa de mim pra salvar ela? Eu dou! Eu dou! – Seu Juca e Dona Verona se miraram e cada um tinha uma interrogação no olhar. Não estavam entendendo tanto abatimento do rapaz. Pelo que sabiam, ele só trocava algumas palavras com eles dois.  Seu Juca, antes de responder alguma coisa, alisou o bigode grisalho e perguntou: - Você conhece a menina? Por acaso ela é sua amiguinha? – Assombração enxugou o rosto, que já estava todo banhado de lágrimas, deixou escapar um brilho de alegria e disse: - Sabe... Todo dia ela bate a mão pra mim e manda um beijo estalado! Ela é minha amiga sim. - Dona Verona olhou para o Seu Juca e o olhar dos dois pareciam se abraçar, cheios de emoção. Seu Juca disfarçou e enxugou os olhos com as costas da mão. Dona Verona, como toda mulher, deixou a emoção aflorar espontaneamente. O silêncio entrou no meio dos três e isso foi o bastante para equilibrar aquelas almas amigas. O Seu Juca conseguiu abortar o pranto, que não ia tardar a desabar, e falou calmamente: - Assombração escuta só: a menina pode ficar boa. É uma questão de sorte, lá isso é. Mas ela vai ter sorte e achar um doador. Eu não sei bem como isso funciona, mas lá no hospital eles podem explicar direitinho. Só uma coisa eu sei: tiram o sangue da gente e depois eu não sei mais. – Assombração olhou para os dois e deixou aquele sorriso de todo o dia aparecer. Deu um tchau, virou nos calcanhares e foi embora. Mas alguma coisa fez com que parasse a alguns metros à frente. Deslizou nos calcanhares novamente, voltou e falou cheio de emoção: - Vocês podem ter certeza! Vou até o hospital e vou dar alguma coisa do meu corpo e vou salvar a menininha do nº 18! A minha amiguinha vai ficar boa! – Deu às costas rapidamente e saiu em direção ao hospital da cidade.
       Semana que vem continua...

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Assombração - Parte 1

Assombração
- José Timotheo -

          A rua era o seu lar. E ele fazia dessas ruas do bairro o seu mundo. Num percurso diário, praticamente circulava por quase todas. Se perguntado, não saberia dizer quantas vezes fazia aquele trajeto. Aparentemente nunca parou para pensar nisso. Era um ir e vir várias vezes ao dia, pegando uma latinha aqui, outra ali. E alguma coisa a mais, que fosse garantia para mais uma quentinha.  Raramente levantava a cabeça. Os seus olhos andavam pregados em cada pedaço do caminho. Uma vez ou outra, olhava para alguma casa, mas normalmente enterrava a cara nas lixeiras pelas calçadas, procurando o seu sustento. O misterioso andarilho, de poucos caminhos, parecia que não era muito percebido pela vizinhança, mesmo circulando por ali, há mais de quatro anos. Ninguém falava com ele. Parecia que era transparente. Mas ele também não falava com ninguém. Como falar, se a sua cabeça estava sempre enterrada em alguma lixeira! Entretanto isso parecia que não o incomodava muito. Preferia a solidão como companheira?  Aparentemente sim, pois era uma pessoa extremamente tímida. Era um recluso dentro da sua liberdade. Não fazia amigos. Entretanto não se poderia afirmar que fosse uma pessoa infeliz. E o sorriso nos lábios?  Mesmo com a cabeça baixa, procurava  não deixar o sorriso fugir. Pelo menos, uma vez ao dia sorria.  Mas procurava sorrir mais vezes, pois se sentia bem com isso. Observava outros amigos de infortúnio, que nunca sorriam. Pareciam carrancas. O que via no habitat deles, deixava-o triste.  Era uma convivência sem respeito mútuo, onde a animosidade predominava. A exceção era quando passava de mão em mão, uma garrafa de pinga. Ou quando enterravam as caras dentro de latas e se embriagavam, também, cheirando cola. Depois saiam zanzando, feito zumbis. Mas na maioria das vezes, essa “convivência pacífica” acabava em briga. E ele vendo isso, ficava com receio de se aproximar e não ser bem vindo. Mas a palavra certa seria medo. Essa é que era a verdade. Era só topar com algum deles e rapidamente mudava de calçada, indo se esconder na distância. Escolhia lugares diferentes para se abrigar para não ser importunado. Nunca dormia no mesmo lugar e jamais no chão. Normalmente procurava árvores com a copa bem fechada. E escalar esses arvoredos era uma tarefa que não tinha a menor dificuldade de realizar.  As mais altas, eram as suas preferidas. Ali ficava abrigado dos indesejáveis. Só dividia o espaço com os pássaros. Mas devia ter alguns cuidados nessas empreitadas. Principalmente se cobrir bem, para evitar surpresas noturnas, tais como uma cagada de um pássaro, chuva e frio.
           Antes de escalar as árvores, no final da tarde, olhava a cidade que já começava a se vestir de luz. Parece que era o único momento que levantava a cabeça. E isso ele fazia diariamente. Não falhava um dia sequer. Era sagrado aquele momento, antes de escalar qualquer arvoredo. Parecia uma oração. Quando o pisca pisca dos painéis comerciais eram ligados, ficava fascinado. Olhava antes de subir e depois, já em cima, bebia mais um pouco daquela visão privilegiada. Porém não demorava muito, para não incomodar os outros moradores. Após esse ritual, se encaixava no seu já conhecido tronco, se amarrava para não cair e se cobria dos pés à cabeça. Alguns dos moradores pareciam que já o conheciam, pois não voavam e nem se agitavam em meio às folhagens. Acho que o encaravam como um pássaro grande, mas inofensivo. No início a coisa não era bem assim. O mundo ali na copa da árvore parecia que ia cair. Virava o maior inferno. Muitos pássaros, que não estavam acostumados a voar à noite, saiam em debandada, tentando encontrar outros lugares para se abrigarem. Com a confusão instalada, ele se encolhia e procurava ficar em silêncio, até tudo voltar ao normal. Mas pela manhã ao descer, ficava triste ao encontrar algum pássaro morto pelo caminho. Pegava o bichinho, pedia desculpas e depois arranjava algum lugar para enterrá-lo.  Com o tempo, as coisas foram se arrumando, até que não houve mais acidentes.
          Debaixo do plástico, antes de dormir, tentava se lembrar de como foi parar ali. Tentava, tentava, mas não conseguia. Parecia que tinha surgido do nada por aquelas bandas. Pai, mãe... Será que teve? Não sabia responder. Dentro da sua cabeça não aparecia o rosto de ninguém. Tinha momentos que pensava na hipótese de ter vindo do espaço. De ter sido colocado ali por algum extraterreno. Às vezes cismava com isso. Quem sabe não era um alienígena? Não tinha nome. Alguém um dia o chamou de assombração. Ficou se lembrando do Seu Juca, do “Caco, Velho Caco”, onde ele vendia os seus achados. Foi exatamente ele quem o batizou com esse nome. Recordou das suas gargalhadas, quando dizia que ele aparecia tão de repente, que parecia uma assombração. Acabou rindo da risada do Seu Juca. Não sabia o que ele queria dizer com assombração, mas isso não tinha muita importância. Achou o nome bonito e isso era o que importava. Esse era o seu nome. Depois se lembrou, também, de Dona Verona, aquela senhora que sempre o tratou com carinho. Era com ela que comprava a sua quentinha. Mas ele só olhava pra ela, quando ela não estava olhando pra ele. Pensou algumas vezes que Dona Verona podia ser a sua mãe. Ia gostar muito. Ficava emocionado quando ela o chamava de “meu filho”. Depois, quando ia saindo, um “vai com Deus, meu filho". Aí quase chegava às lágrimas. Saía com a cabeça mais baixa ainda, para esconder toda a emoção que aquelas palavras lhes causavam. Ia satisfeito e bem feliz, indo procurar algum lugar para se alimentar sossegado. Ele não sabia o porquê de não aceitar o oferecimento dela para almoçar num cantinho da sua cozinha. Só sabia que ficava com a cara vermelha, não respondia nada e saía vazado.  Isso se repetiu algumas vezes, até ela desistir do oferecimento. 

          Bocejou. Tentou se espreguiçar debaixo do plástico, mas não conseguiu. Sentiu que o sono se aproximava. Estava tão escuro ali embaixo, que não teve certeza se estava com os olhos abertos. Piscou para confirmar. Acabou sorrindo com essa dúvida. De repente apareceu na sua cabeça a menininha do nº 18, que mandava pra ele um aceno e um beijo estalado na mão. Se lembrou que era a única casa que olhava. E foi por um acaso. A lixeira tinha quebrado e o saco de lixo tinha sido pendurado na grade. Quando olhou para o saco de lixo, viu a menininha que estava brincando no quintal. Foi olhar no olhar. A menina sorriu e acenou pra ele. A sua felicidade foi tanta, que o coração teve que ser empurrado goela abaixo. O sorriso dela ficou tatuado para sempre no seu coração. Assombração sorriu com a lembrança, mas depois fez uma expressão preocupada. Tinha passado ontem e não a tinha visto. Depois passou hoje e também não a viu. Dois dias que não ganhava o seu sorriso. Acabou dormindo abraçado às suas lembranças e preocupações. Mas sonhou bastante. Ao acordar na manhã seguinte não conseguiu se lembrar de nada. Parecia sonho bom, pois tinha despertado tranquilo.
                ...Continua semana que vem...