segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Assombração - Parte 5

Continuando...
            Assombração a princípio, antes de responder, olhou para o teto da sala, coçou a cabeça, dirigiu o seu olhar novamente para a enfermeira, aparentemente sem vê-la, e deixou escapar um leve sorriso.  Parecia que procurava alguma coisa dentro da sua cabeça que elucidasse essas perguntas.  Sorriu de novo, agora para ela, e disse: - Seu Juca acha que eu tenho vinte e cinco anos. Eu nem sei se eu nasci! Não me lembro de nada!
          - Se preocupe não! Isso é normal! Ninguém se lembra do dia em que nasceu! O senhor tem aí algum documento?
          - Documento... Que documento?
         - Pode ser a certidão de nascimento. Carteira de identidade. Carteira de trabalho. Qualquer coisa que identifique você.
         - Mas eu não tenho nada. Eu só tenho esse nome.
           Elga não sabia o que falar para aquele rapaz de sorriso limpo. Mas sabia que ali na sua frente, tinha alguém de coração puro. Alguém que a violência, o rancor, a tristeza, o ódio e... nada, nenhum sentimento ruim  havia feito ninho naquela alma clara. Começou a ensaiar, na sua cabeça, alguma coisa que não o melindrasse. Pensou uma porção de coisas. Pensou, mas não tinha muito o quê pensar, essa era a realidade. Acabou voltando para o que tinha começado a conversa.
          - Rapaz, todos nós temos pelo menos um documento para sermos identificados. A certidão de nascimento é um deles. Ali diz tudo a nosso respeito. Tem o dia e a hora do nosso nascimento. Tem os nomes dos nossos pais. E você... não tem nada, nada que o identifique. Infelizmente sem sabermos a sua identidade, você não vai poder ser doador.
           Elga parou de falar e ficou esperando alguma reação de Assombração. Mas ele olhava para ela e não conseguia falar nada. Os seus olhos começaram a se encher de lágrimas e começou a escorrer pelo rosto. Ela estava emocionada também. Nem conseguiu interromper aquele momento. Baixou a cabeça e esperou que ele dissesse alguma coisa.  O tempo se abraçou ao silêncio doído. As lágrimas corriam dos rostos dos dois.  Elga não encontrou coragem para quebrar o silêncio. Mas Assombração acabou conseguindo forças e, depois de enxugar os olhos com as costas da mão, disse:
          - Senhora. Senhora. Tenho que salvar a menina. Alguma coisa me diz que eu vou ajudá-la a ficar boa. É só o meu sangue. Só isso. Ninguém precisa saber quem deu. Eu sei que não sou ninguém, mas tenho o sangue que vai curá-la. Bota o nome de qualquer pessoa. Sangue não tem nome.
         Elga não sabia como fazer qualquer ponderação. Passou as costas das mãos sobre olhos para enxugá-los. Não se lembrava de já ter visto alguma pessoa com tanta pureza de coração. Cada palavra que ele dizia, vinha como uma música suave e bela. - Como podia um ser tão simples, transpirar tanta grandeza! - pensava. Elga não estava conseguindo dizer que existia uma burocracia a ser cumprida. O doador tinha que existir no papel, não só fisicamente. Mais uma vez, uma cortina de silêncio envolveu os dois. A enfermeira estava penalizada. Assombração estava com a cabeça baixa, e de vez em quando tentava enxugar mais alguma lágrima que insistia em cair. O tempo também devia estar penalizado com aquela situação e resolveu parar. Mas o coração parece que é atemporal, e se lixou para que o tempo pensava. Deitou suas emoções pela pequena sala enquanto seu coração batia tudo que tinha direito. As palavras se intimidaram e ficaram congeladas na boca da enfermeira. Porém ela sabia que tinha que fazer alguma coisa, mas sem força, baixou também a sua cabeça. Mas a mão do destino sempre vem em socorro e, em momentos dificílimos alguma coisa acontece. Lá está a salvação. Um som arranhado invadiu a sala. A porta ao lado de Elga se abria lentamente. Assombração levantou a cabeça, mostrando um rosto banhado de lágrimas. Elga girou a cabeça, com a cara não menos congestionada, e esperou aparecer alguém. Um bom dia, salvador, ecoou pela sala. Era o Dr. Justus que adentrava o recinto, com o seu sorriso costumeiro. Fechou a porta atrás de si e se dirigiu a enfermeira. Conversaram durante alguns minutos. O que falaram, Assombração não ouviu ou não quis ouvir. Era mais provável a segunda opção. Tendo em vista que não era do seu feitio se meter em conversa alheia.  Alguma coisa no seu íntimo, dizia que isso era falta de educação.
          O Doutor estava aparentando preocupação. Enquanto a enfermeira falava ele passava uma das mãos pelos cabelos e, de vez em quando dirigia um olhar para o rapaz, que se mantinha novamente com a cabeça baixa. Mas quando Elga parou de falar, o doutor girou nos calcanhares e começou a caminhar pela pequena sala. Ia e vinha. Carregava no semblante o peso de interrogações que necessitavam de respostas. Estava perdido em reflexões. De vez em quando ele olhava para Assombração, mas não conseguia encontrar o que falar. E assim ficou cismando por minutos. De repente parou de frente para um quadro, de autor desconhecido, que estava pendurado na parede próximo à porta, que dava para o corredor. Olhava para a pintura, mas sem, na realidade, nada ver. Ficou ali plantado, sem se mexer. O que se passava dentro da sua cabeça, ninguém sabia. Aqueles minutos duraram uma eternidade. De repente buliu no quadro, colocando-o em outra posição. Não satisfeito, voltou para a posição inicial. Em seguida foi em direção à porta do seu consultório. Abriu-a, mas não entrou. Dava para perceber que a sua cabeça fervilhava de indecisões. Pensou em ir sentar-se em frente de Assombração. Mas ficou apenas observando-o. De repente caminhou até ele, colocou uma das mãos no seu ombro e disse:
          - Meu rapaz... – deu uma pausa, esperando que Assombração olhasse para ele. Quando isso aconteceu, sentiu um arrepio que percorreu todo o seu corpo. Foi uma sensação boa. Não foi daqueles arrepios que às vezes temos e que nos deixam incomodados. Esse não. Foi diferente. Estava com a alma leve. Nunca tinha recebido um olhar com tanta bondade. Por um momento retirou a mão do ombro do rapaz, passou a mão nos cabelos e se despiu do olhar sério. Voltou a colocar uma das mãos em cima do ombro de Assombração, deu um leve sorriso e voltou a falar:
          - Meu rapaz... Qual é mesmo o seu nome?
            Assombração, agora mais calmo, mesmo sem saber o porquê daquela súbita tranquilidade, sorriu e falou:

          - Assombração. Assombração, senhor.
       Continua semana que vem...

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