Assombração a princípio, antes de
responder, olhou para o teto da sala, coçou a cabeça, dirigiu o seu olhar
novamente para a enfermeira, aparentemente sem vê-la, e deixou escapar um leve
sorriso. Parecia que
procurava alguma coisa dentro da sua cabeça que elucidasse essas
perguntas. Sorriu de novo,
agora para ela, e disse: - Seu Juca acha que eu tenho vinte e cinco anos. Eu
nem sei se eu nasci! Não me lembro de nada!
- Se preocupe não! Isso é normal!
Ninguém se lembra do dia em que nasceu! O senhor tem aí algum documento?
- Documento... Que documento?
- Pode ser a certidão de nascimento.
Carteira de identidade. Carteira de trabalho. Qualquer coisa que identifique
você.
- Mas eu não tenho nada. Eu só tenho
esse nome.
Elga não sabia o que falar para aquele
rapaz de sorriso limpo. Mas sabia que ali na sua frente, tinha alguém de
coração puro. Alguém que a violência, o rancor, a tristeza, o ódio e... nada,
nenhum sentimento ruim havia
feito ninho naquela alma clara. Começou a ensaiar, na sua cabeça, alguma coisa
que não o melindrasse. Pensou uma porção de coisas. Pensou, mas não tinha muito
o quê pensar, essa era a realidade. Acabou voltando para o que tinha começado a
conversa.
- Rapaz, todos nós temos pelo menos um
documento para sermos identificados. A certidão de nascimento é um deles. Ali
diz tudo a nosso respeito. Tem o dia e a hora do nosso nascimento. Tem os nomes
dos nossos pais. E você... não tem nada, nada que o identifique. Infelizmente
sem sabermos a sua identidade, você não vai poder ser doador.
Elga parou de falar e ficou esperando
alguma reação de Assombração. Mas ele olhava para ela e não conseguia falar
nada. Os seus olhos começaram a se encher de lágrimas e começou a escorrer pelo
rosto. Ela estava emocionada também. Nem conseguiu interromper aquele momento.
Baixou a cabeça e esperou que ele dissesse alguma coisa. O tempo se abraçou ao silêncio doído.
As lágrimas corriam dos rostos dos dois. Elga não encontrou coragem para
quebrar o silêncio. Mas Assombração acabou conseguindo forças e, depois de
enxugar os olhos com as costas da mão, disse:
- Senhora. Senhora. Tenho que salvar a
menina. Alguma coisa me diz que eu vou ajudá-la a ficar boa. É só o meu sangue.
Só isso. Ninguém precisa saber quem deu. Eu sei que não sou ninguém, mas tenho
o sangue que vai curá-la. Bota o nome de qualquer pessoa. Sangue não tem nome.
Elga não sabia como fazer qualquer
ponderação. Passou as costas das mãos sobre olhos para enxugá-los. Não se
lembrava de já ter visto alguma pessoa com tanta pureza de coração. Cada
palavra que ele dizia, vinha como uma música suave e bela. - Como podia um ser tão
simples, transpirar tanta grandeza! - pensava. Elga não estava conseguindo
dizer que existia uma burocracia a ser cumprida. O doador tinha que existir no
papel, não só fisicamente. Mais uma vez, uma cortina de silêncio envolveu os
dois. A enfermeira estava penalizada. Assombração estava com a cabeça baixa, e
de vez em quando tentava enxugar mais alguma lágrima que insistia em cair. O tempo também devia
estar penalizado com aquela situação e resolveu parar. Mas o coração parece que
é atemporal, e se lixou para que o tempo pensava. Deitou suas emoções pela
pequena sala enquanto seu coração batia tudo que tinha direito. As palavras se
intimidaram e ficaram congeladas na boca da enfermeira. Porém ela sabia que
tinha que fazer alguma coisa, mas sem força, baixou também a sua cabeça. Mas a
mão do destino sempre vem em socorro e, em momentos dificílimos alguma coisa
acontece. Lá está a salvação. Um som arranhado invadiu a sala. A porta ao lado
de Elga se abria lentamente. Assombração levantou a cabeça, mostrando um rosto
banhado de lágrimas. Elga girou a cabeça, com a cara não menos congestionada, e
esperou aparecer alguém. Um bom dia, salvador, ecoou pela sala. Era o Dr.
Justus que adentrava o recinto, com o seu sorriso costumeiro. Fechou a porta
atrás de si e se dirigiu a enfermeira. Conversaram durante alguns minutos. O
que falaram, Assombração não ouviu ou não quis ouvir. Era mais provável a
segunda opção. Tendo em vista que não era do seu feitio se meter em conversa
alheia. Alguma coisa no seu
íntimo, dizia que isso era falta de educação.
O Doutor estava aparentando
preocupação. Enquanto a enfermeira falava ele passava uma das mãos pelos
cabelos e, de vez em quando dirigia um olhar para o rapaz, que se mantinha
novamente com a cabeça baixa. Mas quando Elga parou de falar, o doutor girou
nos calcanhares e começou a caminhar pela pequena sala. Ia e vinha. Carregava
no semblante o peso de interrogações que necessitavam de respostas. Estava
perdido em reflexões. De
vez em quando ele olhava para Assombração, mas não conseguia encontrar o que
falar. E assim ficou cismando por minutos. De repente parou de frente para um
quadro, de autor desconhecido, que estava pendurado na parede próximo à porta,
que dava para o corredor. Olhava para a pintura, mas sem, na realidade, nada
ver. Ficou ali plantado, sem se mexer. O que se passava dentro da sua cabeça,
ninguém sabia. Aqueles minutos duraram uma eternidade. De repente buliu no
quadro, colocando-o em outra posição. Não satisfeito, voltou para a posição
inicial. Em seguida foi em direção à porta do seu consultório. Abriu-a, mas não
entrou. Dava para perceber que a sua cabeça fervilhava de indecisões. Pensou em
ir sentar-se em frente de Assombração. Mas ficou apenas observando-o. De
repente caminhou até ele, colocou uma das mãos no seu ombro e disse:
- Meu rapaz... – deu uma pausa,
esperando que Assombração olhasse para ele. Quando isso aconteceu, sentiu um
arrepio que percorreu todo o seu corpo. Foi uma sensação boa. Não foi daqueles
arrepios que às vezes temos e que nos deixam incomodados. Esse não. Foi
diferente. Estava com a alma leve. Nunca tinha recebido um olhar com tanta
bondade. Por um momento retirou a mão do ombro do rapaz, passou a mão nos
cabelos e se despiu do olhar sério. Voltou a colocar uma das mãos em cima do
ombro de Assombração, deu um leve sorriso e voltou a falar:
- Meu rapaz... Qual é mesmo o seu
nome?
Assombração, agora mais calmo, mesmo
sem saber o porquê daquela súbita tranquilidade, sorriu e falou:
- Assombração. Assombração, senhor.
Continua semana que vem...
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