Continuando...
Num piscar de olhos, sem ninguém
ouvir seus movimentos, Helô já estava do lado de fora a caminho do refeitório.
O corredor ainda estava com pouco
movimento. Eram pouquíssimas crianças circulando, mas onde passava Helô
arrebanhava quem estivesse pelo caminho e assim sempre foi. A sua liderança era
inconteste. Naquele momento era a mais velha que estava de pé, mas mesmo se as
de sua idade estivessem por ali, com certeza estariam do seu lado.
Helô com seus dezessete anos já era uma
mulher feita. Quando caminhava, pisava doce. Parecia que não queria machucar o
chão. A sua meiguice cativava a todos, só não tinha cem por cento de simpatia
porque a Madre Joana de Maria era a única nota dissonante. A aprovação era
quase cem por cento.
A
porta de entrada do refeitório estava com algumas crianças. Com certeza
esperavam Helô para entrarem junto com ela, que antes de tomar o seu café ainda
tinha que dar o seu bom dia especial que consistia em ter que beijar todo
mundo, inclusive as irmãs que tomavam conta da cozinha. Isso era feito
diariamente, porém ela jamais se chateava. A única incomodada era a Madre Joana
de Maria que, entretanto, com o tempo, preferiu engolir a liderança da “menina
Helô”, como ela a chamava. Na verdade foi uma estratégia. Achou melhor cozinhá-la
em banho-maria. Parecia que não se incomodava com aquilo, mas punia a menina
quando maltratava a irmã Amélia. A Madre tinha uma frustração: nunca tinha
conseguido punir Helô diretamente. Muitas vezes até arquitetou algum tipo de
maldade, entretanto não conseguia concretizar o seu plano doentio. Sempre, na hora
H, sentia-se impotente para executar o tal castigo. Depois de alguns dias,
quando pensava que tinha falhado, ficava revoltada, porém jamais entendeu
porque nunca concretizara o seu intento. Depois de muito pensar, decidiu que ia
esperar Helô completar dezoito anos, pois aí sim ninguém atrapalharia o destino que tinha reservado para ela. – Nem Deus! –
dizia.
Por trás dos fracassos da Madre Joana
estava a Madre Maria de Lourdes. Como tinha permissão para intervir, fazia
perfeitamente a Madre Joana recuar dos seus planos doentios e assim Helô
conseguia passar por tempestades e sair ilesa. Já a irmã Amélia não tinha essa
mesma proteção, pois a entidade não podia fazer quase nada por ela. O socorro
imediato consistia em envolvê-la em fluidos positivos e deixá-la mais forte
para suportar as tribulações do dia a dia e, ainda, colocar uma almofadinha no
ombro para aliviar o peso da cruz. A injeção de ânimo, na maioria das vezes,
era feita na hora que estava dormindo. Nesse
horário a Madre Maria de Lourdes podia conversar com Amélia, momento esse que o
espírito pode até se afastar do corpo. Normalmente,
na manhã seguinte, ela acordava pronta para os embates diários.
Helô tomou o seu café matinal um
pouco mais rápido do que o de costume. Procurou sair calmamente para não
levantar qualquer suspeita. Chegou ao alojamento, abriu a porta o mais
silenciosamente possível e entrou pé ante pé para não acordar as suas amigas.
Parou no meio do alojamento e olhou rapidamente para as camas para ver se tinha
alguém acordando. Percebeu que todas as meninas ressonavam. Dirigiu-se ao
banheiro, escovou os dentes e saiu novamente. Já do lado de fora, antes de se
dirigir ao pomar, deu uma olhada geral para ver se tinha alguém nas imediações.
Viu que vinha alguém. Rapidamente identificou que era a irmã Gertrudes e, como
sempre, caminhava morosamente. Já próxima, Helô percebeu que não fora notada
por ela, mesmo assim resolveu esperá-la. Procurou postar-se bem no meio do
corredor e aguardou, mas, para sua surpresa, a irmã passou pelo seu lado e não
deu a mínima para ela. Com um sorriso nos lábios, ainda a acompanhou até que
sumisse no final do corredor. Era um sorriso de incredulidade, com certeza. Deu
um muxoxo e pensou:
- Ih! Como pode a irmã Gertrudes não
me ver? Passou do meu lado e me ignorou! Nunca a vi tão desligada assim, meu
Deus! O que deu nela?
Acabou de quase externar seu pensamento, virou-se com a intenção de ir
para o pomar, mas deu de cara com a Madre Maria de Lourdes. Assustou-se, mas
assim mesmo sorriu. A Madre então retribuiu o sorriso e num gesto rápido
recolheu a capa que a envolvia. Aí é que Helô entendeu porque não foi vista
pela irmã e falou em pensamento:
- Puxa, irmã! Tinha-me esquecido por
completo que a senhora podia me deixar invisível! Se eu contar isso por aí,
ninguém vai acreditar!
- E não vai mesmo! Onde já se viu alguém
ficar invisível! Para quem você contar, vai correr o risco de ele chegar mais à
frente e comentar: coitada da Helô, ela não está batendo bem da cabeça! Acho
que está lelé!
- Sem exagero, Madre, sem exagero! A
senhora pensa que vou arriscar comentar isso? De jeito nenhum! Eu sei que o que
acontece é real, mas as pessoas estão longe de entender esses efeitos! Eu hein!
Eu falo e cai nos ouvidos da Madre! Ela manda me internar na hora! Falo nada!
- Acho melhor. E agora vamos ao trabalho?
Está pronta?
- Sim. Prontíssima!
Em frações de segundos, as duas já
estão na entrada da gruta. Helô olhou para o interior e já viu tudo iluminado. Algumas
entidades socorristas movimentam-se no ambiente. Ela vai entrando como se
tivesse na sala de casa, passa por elas e consegue até se comunicar
mentalmente. O medo já tinha ido embora.
A Madre observa aquilo tudo satisfeita com o avanço da sua pupila.
As duas pararam em frente da rosa
vermelha. Helô executou os mesmo procedimentos de antes. Com a porta já
escancarada, ela entrou na sala cautelosamente, olhou de um lado para o outro,
aí suspirou aliviada ao confirmar que o ambiente estava livre de entidades
pouco esclarecidas. A Madre para em frente da porta que dá para o outro cômodo
e pede para Helô esperar. Entra, faz uma limpeza no ambiente e em poucos
segundos já está de volta. Com tudo em ordem, sinaliza para Helô abrir a porta.
Ela então gira a maçaneta, mas sempre com algum grau de precaução, e deixa que
a porta se abra sozinha. A Madre mentalmente pede que ela a siga:
- Venha, Helô. Quando eu penso que o
medo ficou no passado, ele volta! Venha! Deixe o medo aí nessa sala. Quando
voltarmos, se você quiser, pegue-o de volta, mas agora venha.
Helô foi entrando lentamente, mas
logo depois do segundo passo parou. Colocou a mão no nariz porque não conseguia
respirar. O ar que tomava conta daquela sala estava irrespirável e, mesmo com a
mão cobrindo o nariz, não houve nenhum resultado. A Madre que estava à sua
frente iluminava a sala. Helô não estava com muita coragem de dar um passo
sequer. De onde se encontrava rodou o olhar em torno e viu que dos dois lados
tinham várias camas enfileiradas. Tentou dar mais um passo, mas no mesmo
instante sentiu um mal-estar. Aquele cheiro de mofo misturado com medicamento
entrava pelas suas narinas deixando-a com vontade de vomitar. A Madre Maria de
Lourdes percebeu e num gesto de mão conseguiu tirar aquele ar pesado, trazendo
um ar puro que entrou pelo nariz de Helô devolvendo-lhe a harmonia física e
espiritual. Era um bálsamo, parecia que estava respirando um medicamento e
estava mesmo. Ela percebeu isso logo que os batimentos cardíacos voltaram ao
normal e, também, quando subitamente a pontinha de medo, que pensou ser receio,
evaporou, tanto que descolou os pés do
chão e foi caminhando livremente ao lado das camas vazias.
................Continua semana que vem!