Ele pegou o livro que ainda
estava debaixo do braço de João e começou a folhear sem muito cuidado, quase
arrancando as páginas. Olhou pra João, deu um sorriso e perguntou, mas
respondendo também.
- Então! Lendo Marx?
Comunistazinho safado! Com essa cara de sonso aí, deve está escondendo “um
puta” de um terrorista! Mas não me engana não! Diz aí qual é o grupo que você
pertence! MR8? Você tem cara que deve ser do MR8! Não entendi o que você falou!
Pode repetir garoto?
João resmungava alguma coisa. Mas
parecia que estava em estado de choque. Era uma falsa calma que ele aparentava.
Parecia que a voz não saía. Engoliu em seco e repetiu.
- Eu falei Newton. Isaac
Newton.
Policial deu um sorriso de desdém e
falou.
-Ah! Olha só! O menino resolveu
falar! Então esse é o nome do seu chefe? Bertoldo, revista ele! Vê se tem
alguma coisa escondida! Um panfleto, microfone... Qualquer coisa!
- Deixa comigo! Deixa comigo!
Agora é que vai começar a ficar bom!
O policial Bertoldo foi tirando a
roupa de João à procura de qualquer coisa que, além do livro, o incriminasse
mais. Mas nada foi encontrado. João ficou só de cueca. E um vento frio começou a
incomodá-lo. Ele tremia. O policial gritou para o outro.
-Aí Guto! Nada! Nada! O que é que a
gente faz com ele?
- Vamos dá umas porradas
nele, até ele falar! Vamos ver se ele dá ou não o endereço desse Isaac
rapidinho.
João Paulo de repente pareceu
ligado na conversa dos dois. Calmamente, mas com uma ponta de ironia, se
dirigiu a eles.
- Tem certeza que vocês
querem mesmo o endereço de Sir Isaac Newton?
-Mas é claro, garoto! Fala logo,
antes que a gente encha você de porrada! -falou Guto rispidamente.
-Eu acho que vai ser
impossível eu fornecer essa informação pra vocês.
-Como impossível? Qual é cara! – Guto
foi falando e empurrando João, que se desequilibrou e se esborrachou no chão.
Mesmo caído protestou.
- O que é isso cara? Assim
vocês vão me machucar! Me deixa explicar!
João tentou se levantar, mas
um dos policiais empurrou-o com o pé. Dessa vez bateu com a cabeça no chão.
Ficou atordoado, mas mesmo assim começou a falar.
-Gente. Sir Isaac Newton é Inglês.
Ele já morreu há muitos anos.É meu amigo de cabeceira. E têm outros
também.Tenho vários amigos gênios, que já pousaram aqui entre nós, que me
acompanham diariamente.
-Viu isso? Aí Guto,Cabedelo, vocês
tão vendo isso? O cara tá mais enrolado do que a gente imaginava! A rede de subversão
é grande! Cara! Vamos lá! Passa os nomes e endereços dessa cambada toda aí!
-Gente! Eu não tenho como passar
endereço de ninguém! Esses cientistas, estão todos mortos!
-Cabedelo! Dá um corretivo nele!
Esse subversivo, filho de uma puta, tá querendo enrolar a gente! Enche ele de
porrada!
Até o motorista, que parecia menos violento,
bateu no pobre do João. Mas como João não esboçava qualquer tipo de reação, as pancadas
foram perdendo a intensidade. Nem um leve gemido João deixou escapar. Com isso
eles frearam a sede de sangue. Perdeu a graça o plano de tortura.Ficaram
impressionados com a resistência que viam nele.O prazer estava, quando
as vítimas se cagavam de tanto medo. João jogou um balde de água fria neles.
Perderam o prazer. Era visível a desilusão nos seus olhos. O gosto de ver o
sofrimento alheio não aconteceu dessa vez. Pegaram João e jogaram-no dentro do
carro. Eles nem se incomodaram quando o capuz caiu. Olharam com desdém, mas
ficaram mais surpresos, pois João falava com alguém. Cabedelo vendo isso se
dirigiu para Bertoldo e questionou o comportamento do preso.
- Bertoldo. Será que esse
cara não é maluco? Será que Guto não se enganou? Esse cara é pirado. Vai por
mim.
- Porra Cabedelo! Fala pra
mim! Qual é? Se é maluco, o problema é dele! Agora tá ferrado! Tem culpa de
qualquer jeito! Quem mandou botar Marx debaixo do braço! É comunista sim! E
burro! Já perdi até a vontade de dar umas
porradas nele! Vamos deixar esse cara no forte? Perdi o tesão!
- Olha só! Vamos soltar o
cara! Vai por mim!Esse cara fala com uma porrada de gente!Até um tal de
Arquimedes ele já falou! Olha só. Tá falando com outra pessoa agora.Escuta.
Agora é com uma mulher: madame Curió. Esse cara é maluco mesmo! Curió é nome de
passarinho!
-Cabedelo, para com isso! Tá
ficando mole agora? O cara caiu no nosso carro e já era!
-Mas Guto... Está bem. Então
vamos largar ele lá no forte e depois damos no pé. Isso está me cheirando a
azar. Vai por mim. O que é que você acha disso?
-Realmente eu nunca vi um
cara assim! De repente você está certo. Eu sei que a gente pode apagar ele por
aqui mesmo, mas isso pode trazer azar pra gente... Ele já levou umas boas
porradas, então a gente larga ele lá no forte e os caras lá decidem o destino
dele. Já fizemos a nossa parte, para o bem da revolução.
Chegaram num acordo e botaram João
sentado no banco como um saco de batatas. Mas dessa vez ele soltou um
gemido.Mas não deram nenhuma importância. De repente nem o ouviram gemer.
Esqueceram até de colocar nele, o capuz. Também naquela altura, não ia fazer
qualquer diferença. João já estava em outro lugar.
Depois de algum tempo de viagem,
ele perguntou pelo livro. Os caras se olharam e riram. Deram boas gargalhadas.
João acabou rindo também. Riu, mas sem saber o porquê do riso. Quando voltou o
silêncio ele falou novamente.
-Senhores, aquele livro eu
achei na cantina da faculdade. Eu só estava procurando o dono.
-Aí Cabedelo! Olha só o cara!
Diz pra ele que o dono é um tal de Karl Marx!
-Mas o Karl Marx é o autor. E
já morreu há muito tempo.
-Guto vamos devolver o livro
pro cara. Não vai ter utilidade nenhuma pra gente. Eu dei um folheada nele e vi
que só tem a capa e a contra capa do livro do comunista. O que está por dentro
é outra coisa. Ele é muito babaca, que nem percebeu isso. Só pode ser maluco
mesmo.
-Senhor, eu não leio livro
nenhum. Sabe de uma coisa: não preciso ler nada. Gosto muito de ciências e sei
bastante. Mas também não leio nada a respeito. Já está tudo dentro da minha
cabeça.
-Viu só gente! O cara é um
gênio! Olha só! Estamos com um gênio do nosso lado! Isso não é bacana? Guto
aproveita e dá uma cotovelada nesse cara aí, dá! Ele tá chamando a gente de
burro! Dá uma porrada nele, dá! Cabedelo, rasga a capa dessa merda de livro!
Mas deixa o conteúdo! Sabe de uma coisa:
pra lá aonde ele vai, vai ter todo tempo do mundo pra ler essa bosta. Vou falar
com o pessoal de lá, pra dar uma colher de chá pra ele. Ele não disse que não
lê nada? Então vai ser obrigado a ler essa droga!
João preferiu não falar mais nada.
Dessa vez a cotovelada pegou de jeito. Até a respiração estava dificultosa.
Passou a mão no local, como se isso fosse aliviar a dor. Com dificuldade tentou
respirar fundo. Conseguiu, mas foi doloroso. Nisso o capuz foi empurrado
novamente na sua cabeça.
Eles rodaram bastante tempo
com João. Circularam por mais de duas horas. A maior parte do tempo era por
ruas esburacadas. João não tinha nenhuma noção do lugar que estava. Só tinha
uma certeza: os lugares que estava passando eram desertos. Somente em um lugar
ele percebeu que tinha movimento de carros. E foi o único trecho que devia ser
de asfalto. Quando pararam, já estava anoitecendo. Mas ele ainda não sabia que
era noite. João só foi descobrir, quando foi retirado do carro e ficar sem o
capuz. Ficou um tempo encostado no carro, enquanto Guto conversava com um
sargento. Eles falavam baixo. João tentava ouvir, mas não conseguia entender
nada do assunto. Nem mesmo os seus colegas sabiam o que estava sendo
conversado. Só deu para perceber que ali era um forte. Ouvia nitidamente as
ondas se chocarem contra a parede da construção. E sentiu uma “poeira” de
gotículas de água salgada bater no seu rosto. Estava fria, mas foi agradável.
Não demorou muito e dois soldados vieram e o levaram para o interior. Nada
falaram, simplesmente jogaram-no dentro de uma cela escura e suja. A escuridão
era total e o lugar fedia a mofo. Se encostou numa das paredes de pedras
irregulares e, naquele momento, mesmo estando encarcerado, se sentiu livre. E
as pedras pareciam acolchoadas. Eram frias e úmidas, tomadas pelo limo, mas
mesmo assim sentiu uma sensação gostosa. Respirou fundo e se interrogou do
porque daquela situação. Era um cara que nunca se interessou por política. Mas
não era nenhum alienado, mesmo muita gente pensando o contrário. Sabia o que
estava acontecendo a sua volta.Não tinha certeza, mas desconfiava, porque
muita gente desaparecia do nada. Uns até voltavam, mas se mantinham calados, enquanto
outros evaporavam e ninguém nunca mais colocava os olhos em cima deles
novamente. Entretanto,aquela coisa de política, não interessava nada, nada a
ele. O que importava realmente eram as suas teorias e os seus inventos. –“Mas o
que iria adiantar os seus inventos ali?” – pensava com um aperto no coração.
Porém a esperança de que iria sair dali gritava mais alto. Iam perceber que
tinha havido um engano. Um grande equívoco. E respirou fundo novamente.
Tinha perdido a noção do tempo. Mas
já era uma pequena eternidade. Sem perceber já estava sentado. Os seus olhos já
começavam a se acostumar com aquele breu. Começou a identificar o ambiente.
Achou um colchão embolado num canto. Se levantou e foi olhar a sua descoberta.
Ele estava úmido e fedia muito. Ali estava faltando o sol. –“Como posso trazer
o sol aqui pra dentro? – pensou com os seus botões. Depois achou melhor não só
pensar, mas também falar. Falar em voz alta. Conversar com alguém. Mesmo que
esse alguém fosse ele mesmo. Não ia ter ninguém ali para julgar a sua sanidade
mental mesmo!
Naquele primeiro dia... Ou noite?
Não sabia, já tinha perdido completamente a noção do tempo que estivera com os
policiais. Não tinha certeza também se tinha chegado ali à noite. Não lembrava
se o sol tinha batido na sua pele, ou se a noite tinha jogado estrelas dentro
dos seus olhos. Estava tudo confuso. Deitou mas não conseguiu pregar olhos.
Pensou no silêncio que o envolvia. Mas sabia que não existia o silêncio
absoluto. No fundo todo silêncio é barulhento. A “engrenagem” que move os
planetas faz barulho. A Terra faz o seu barulho passeando no espaço. Todo o
universo faz barulho. Perdeu um tempão pensando nisso. –“Ou será que não faz?”
– falou alto. Só voltou a pisar no chão, quando alguém abriu uma pequena
portinhola e passou alguma coisa, parecido com um pedaço de pão, e uma coisa
esbranquiçada parecendo com leite. Tomou coragem e comeu o pão, constatou que o
leite estava misturado com café. – Isso é coisa de hotel! – falou alto e depois
esboçou um sorriso. Após se fartar de quase nada, resolveu conversar consigo
mesmo.
-Então é manhã. Amanheceu
mesmo. Vamos ver se vão me trazer o almoço. Quem sabe um bife acebolado. Depois
vão me levar para pegar sol. Toda prisão faz isso. O que você acha? Estou perguntando
pra você que está aí dentro de mim. Vamos dialogar? Precisamos manter uma
conversação alegre e sadia, para isso aqui não ficar monótono. Ou pior ainda,
uma situação desesperadora. Eu não posso perder o controle da situação. – Que
lugar é esse?–até que enfim você falou. Que lugar é esse? Boa pergunta. E eu
sei? – Você não é fera em física, matemática e etc? Dá um jeito pra gente sair
daqui! - Eu já pensei nisso. Juro por Deus. Me diz uma coisa: nesse lugar para
que servem as minhas teorias? Os meus inventos, pra que servem? Se pelo menos
tivesse um ponto de luz. A única claridade que surgiu, foi quando eles deixaram
o café. Deve ser de manhã. Acho. Temos que ficar atentos quando trouxerem o
almoço. Se realmente trouxerem a bendita comida, vamos aproveitar para, mesmo
com a pouca claridade que adentrar esse cubículo, fazermos uma observação
rápida.
João parou de falar. Tateou pelas paredes até
localizar a porta, já que tinha tentado fazer um reconhecimento, mesmo no
escuro. Colocou-se ao lado e ali ficou, pacientemente, até que abrissem
novamente a portinhola. A espera estava dando nos nervos. Ele procurava não
ficar tenso. Para isso começou a se lembrar das suas teorias, dos seus
projetos. Lembrou-se do motor movido a água. Quando ele comentou com algumas
pessoas, ninguém deu a mínima importância para o seu invento. Se recordou
também de como deu trabalho o projeto de um gerador de energia elétrica, a
partir da ação da gravidade. E a vestimenta para deficientes se locomoverem
normalmente! Era só a pessoa vestir e pensar que podia andar e rapidamente a
roupa se moldava ao corpo e respondia ao comando do cérebro. Mas era só teoria.
Faltava dinheiro para tocar o projeto. Entretanto, garantia que funcionaria.
Procurou patrocínio, mas ninguém acreditou na sua criação. Os projetos estavam
repousando numa velha estante. Estavam juntos com alguns livros de poesia.
Parecia que era a única coisa que lia. Entretanto chegou ler alguns romances.
Mas isso era raridade, tendo em vista que o seu tempo era precioso demais. Ele
achava que o tempo que iria perder lendo um romance, deixaria de criar alguma
teoria ou inventar alguma coisa.
Continua semana que vem...