João
olhou para o amigo e teve quase a certeza de que o comunista, já não era mais
tão comunista assim. Continuaram caminhando. A vala não ia direto para a
encosta. Ela ia fazendo curva e seguia atravessando todas as celas. Em alguns
trechos saíam tubulações que despejavam esgoto no córrego. Seguiam guiados pela
fraca luminosidade. De longe viram um ponto de luz que devia ser à saída desse
riacho de esgoto. Pararam. João observou que na parede da vala tinha uma
saliência, que dava para se sentar. Antes de falar com o amigo, se dirigiu para
o local. Se sentou e ai sim, falou:
-
Olavo, vou descansar um pouco.
-
Descansar? Camarada, não podemos perder tempo! Olha lá a saída! João meu amigo,
estamos perto de abraçar o dia e você ainda quer descansar? A nossa liberdade
está logo ali! É só mais um pouquinho e pronto!
-
Ô gajo, Olavo está completamente certo. A nossa liberdade está a poucos metros
daqui. Tu não podes retardá-la!
-
Pedro você pode ir. E você também Olavo. Tenho que botar em ordem a minha
cabeça. Tem uma coisa aqui dentro que está me incomodando. Olavo, eu estudo a
energia atômica.
-
Está falando sério? Energia atômica mesmo? Camarada você mexe com isso?
-
Eu tenho um estudo muito sério sobre isso. O meu medo é isso cair em mãos
erradas. Eu falei sobre isso com uns professores do instituto de física.
-
Você pode fazer uma bomba?
-
Claro. Mas é ai que mora o perigo.
-
Camarada, quando a gente tomar o poder, vamos convocá-lo.
-
Prá quê?
-
Prá quê? Camarada, o Brasil vai entrar para o time que tem bomba atômica. Aí
vamos ser respeitados por todos.
-
Você está maluco? Isso na mão de gente errada pode causar uma catástrofe! Esse
meu estudo mostra que podemos fabricar uma ogiva nuclear com um poder de
destruição dez vezes maior que as lançadas em Hiroxima e Nagasaki. Isso já é um
atrativo. Ainda mais quando se pode construir com um valor infinitamente menor.
Percebeu o perigo?
-
Puxa cara! Você é um cientista mesmo! Por que é que você está aqui preso?
-
Sei lá! Até agora não me dei conta do motivo verdadeiro! Não me considero um
cientista e sim um estudioso. Mas pensando bem, eu acho que fui preso por causa
de um livro.
-
Um livro?
-
Sim senhor! Um livro! O livro tinha na contra capa o nome de Karl Marx.
-
Marx é o meu Deus! Qual foi o livro?
-
Você vai até rir. Por dentro... Na verdade eu só tinha a capa e a contra capa.
Por dentro tinha um livro infantil. E eu nem percebi! Sabe de uma coisa: estou
gostando de ficar aqui. Já me acostumei com o fedor. Depois de muito tempo,
estou me sentindo em paz aqui dentro. Mas estou com um medo danado de ir lá
fora, Pedro.
Pedro olhou para o amigo e contestou:
-
O que é isto, ó pá? Se não saíres, ficarei preso eternamente aqui! Se pisares
lá fora será o suficiente para que eu fique liberto! Depois podes até voltar! É
loucura ficares aqui! Vais morrer de fome! É melhor então voltares para a cela!
Pelo menos lá terás aquela lavagem para te alimentares. Pensas bem, ó gajo.
-
Mas Pedro, aqui no esgoto eu consegui refletir bastante a cerca do meu estudo.
É perigoso. É muito perigoso. Alguém lá fora já sabe do meu estudo. Eu fiz a
besteira de falar com um professor. Com certeza ele já deve ter comentado com
mais alguém.
-
Hei João! Está falando com o morto e esqueceu de mim? Escuta só: vou dar o fora
daqui! Se você quiser ficar aqui com o fantasma, que fique! Mas eu estou fora
dessa, Camarada. Vou estar esperando você lá fora. Venha e se junte à nós.
Venha lutar pela nossa causa. A foice e o martelo, sempre!
-
Olavo, escuta só: não sou comunista, nem democrata, nem coisa nenhuma. Estou
fora de qualquer ideologia. Quero a política longe de mim. É tudo uma podridão
só. Hoje você está preso, amanhã você está prendendo.
-
Não é bem assim, camarada. Nós temos um ideal. Nós somos Marxista-Leninista.
Sou do partidão!
-
João, que conversa é essa? Estás a perder tempo! A política é bonita, mas
quando entra o homem,o bolo desanda! Vamos embora enquanto é tempo!
-
Pedro escuta só: cheguei à conclusão que lá fora não tenho nada pra fazer.
Penso que ficar aqui será a melhor coisa no momento. Mas por outro lado, estou
preocupado. Tem uma coisa que está zanzando aqui dentro da minha cabeça. Antes
de me prenderem eu estive com o professor Vander. Acho que ele me pediu para ir
à sala dele. Será que devo dar
importância a esse fato ?
Enquanto
João conversava com Pedro, Olavo foi se encaminhando para a saída. Ele olhou
para trás e acenou para João. Pedro viu e comentou:
-
João, o gajo está com pressa. Peça para que nos aguarde. É perigoso ele sair
assim. Vamos acompanhá-lo? Não os deixe sair!
-
Vai você. Acho que ele já está quase saindo.
-
Mas eu não posso ficar em liberdade sem você! Vamos rápido! Ele está correndo
perigo!
-
Até que enfim você falou um português do Brasil! Sem sotaque nenhum!”
A
conversa dos dois foi interrompida por um estampido. João se assustou e falou:
-
Pedro o que foi isso?
-
Parece tiro. Mas vou ver. O comunista se precipitou.
Pedro foi rapidamente e voltou com um ar
tristonho. João perguntou-lhe:
-
E aí, o que aconteceu?
-
Muito triste João. O gajo foi alvejado com um tiro na cabeça. Neste exato
momento já deve estar sendo devorado pelos tubarões. Se ele tivesse esperado...
-
Meu Deus! Não acredito!
-
Então vamos lá fora, para você confirmar.
-
Eu acho que não. Eu já decidi que é aqui que vou ficar. Os ratos são bem
melhores que os homens. Até as cobras têm menos veneno. Esse esgoto é um
paraíso!
-
Que paraíso que nada! Como você vai se alimentar? Eles vão acabar te achando,
João. E vão acabar com você. Daqui não sai ninguém vivo. Vamos comigo. Tem
muita coisa pra você fazer lá fora. O mundo precisa dos seus conhecimentos.
-
Pedro, você está aceso! A galeria está toda iluminada!
-
Vamos João.
-
Mas como eu vou sair daqui? Você mesmo disse que daqui não sai ninguém vivo.
Eles vão atirar em mim.
-
Confia e me segue.
João
tomado por uma súbita coragem foi seguindo Pedro. Chegou até a saída, mas o
amigo pediu que esperasse um pouco, antes de sair. Pedro sumiu temporariamente.
João já estava acostumado com os desaparecimentos do amigo e sentou-se de
frente para saída da gruta.
O
sol iluminava todo o costão do precipício, que mergulhava num verde turquesa.
Não muito distante dali, alguns barcos de pesca demarcavam o seu território.
Deslizavam silenciosamente, num espelho d’água brilhante e sereno. Somente um
barco se dirigia para bem próximo das pedras. De repente, parou, e, um dos
pescadores lançou a âncora na água. Eles sabiam que não podiam passar da bóia
que limitava a área do forte. Quem se aventurasse a ultrapassar esse limite,
com certeza teria a sua embarcação crivada de balas. Atiravam primeiro para
depois perguntar. João de onde estava dava para ver todo movimento dos barcos
pesqueiros. Observou quando o pequeno barco parou bem na sua direção. Era o
único que tinha se afastado do grupo. De repente, ele foi girando até ficar de
bordo para a parede rochosa. Depois começou a balançar suavemente. João ficou
olhando e bateu uma tristeza. A preocupação começou a tomar conta dele. Não
sabia aonde Pedro tinha ido. Já estava demorando. Foi ficando ansioso e
resolveu botar a cara para fora. Como num flash Pedro entrou na sua frente e
balançou a cabeça negativamente. João estancou e sorriu aliviado para o amigo.
Ansioso perguntou:
-
Pedro, pra onde você foi? Pensei que tivesse ficado órfão de amigo! Olha só
aquele barco ali!
-
Calma. João você só vai fazer o que eu mandar. Tudo bem? Você não pode sair de
qualquer jeito. Se você botar a cara pra fora, eles atiram em você. Vamos com
calma. Pode deixar que você vai sair
daqui com total segurança.
-
Ué! Você perdeu o sotaque de português! Não entendi!
-
Isso depois você vai descobrir.
-
Espera aí. Espera aí. Descobrir o quê? Por um acaso você faz parte... Você está
junto com esses policiais que me colocaram aqui? Vão me pegar de barco e me
jogar em alto mar, não é?
-
Nada disso, João! Você só tinha que passar por uns pequenos dissabores! Você
tem muito o quê fazer por aqui! Ele assim quer!
-
Quem é ele?
-
Depois você vai descobrir tudo. Fica tranqüilo que o seu estudo não vai ser bem
entendido e não vai se transformar em bomba atômica. Agora te prepara que está
na hora de você descer esta encosta.
-
Mas como? Eu não vou conseguir! Tenho medo de altura e com certeza eles vão me
matar!
-
Fica calmo. Escuta só: quando eu mandar você sair, pode vir calmamente. Vou
indicar todo o trajeto para você descer tranquilamente. É só fazer tudo que eu
mandar. Está bem?
-Acho
que sim. Vou tentar.
-
Coragem. Nada vai acontecer a você. Confia em mim. E principalmente em você.
Pedro
mandou João sair calmamente. A saída da caverna já estava toda protegida pelo
manto invisível de Pedro. João, mesmo com um pouco de medo, foi saindo vagarosamente.
Olhou para os lados e nada viu. Então observou que estava dentro de um túnel.
Mesmo assim ele parou e esperou para ver se os vigias iriam atirar. Como nada
aconteceu, continuou andando. Respirou fundo. Chegou até a beira do precipício
e parou, obedecendo a Pedro. Os soldados que estavam nas guaritas não viram
João. Parecia que estava invisível. Seguindo as orientações de Pedro, João se
sentou e em seguida se deitou. Cautelosamente foi descendo a encosta. Ia
colocando os pés onde o amigo indicava. E assim foi até chegar à lâmina
d’água.Os pescadores também não viram a sua descida. Ele não percebeu que o
amigo segurava os seus pés para que não escorregasse. A pedra era bem lisa e,
com certeza, ele jamais iria conseguir descer sem a ajuda de uma corda. João
entrou na água sem fazer barulho. Estava bem mais seguro. E essa segurança era
Pedro quem passava para ele. Foi nadando seguindo as orientações de Pedro, que
pediu para que ele ficasse em total silêncio, e que apenas o escutasse. E assim
foi até que chegou do outro lado do barco. Ele foi tão cauteloso, que os
pescadores nem perceberam sua presença.
Os
pescadores já estavam com as linhas dentro d’água, mas nada de peixe. Um senhor
que parecia o líder, deu sinal para que recolhessem os anzóis. Os outros três
atenderam rapidamente. E um deles comentou que não sabia o porquê de terem
parado ali, tendo em vista que aquele ponto era um dos piores da região. E
estavam cansados de saber disso. Recolheram os anzóis e ligaram o motor. João
já estava começando a subir na embarcação e levou o maior susto. Gritou pedindo
socorro.
-
Socorro! Socorro! Hei! Estou aqui! Socorro!
Um
dos tripulantes viu uma das mãos de João na borda do barco e gritou para os
companheiros:
-
Olha aqui! Tem um cara pendurado aqui no barco! Olha as mãos dele!
Rapidamente João foi resgatado pelos
tripulantes. Como a água estava muito fria, eles o cobriram com uma capa de
chuva grossa. Pedro continuava dando
cobertura. Naquele momento a embarcação estava camuflada. Estavam todos
invisíveis. João conseguiu sair ileso. Pedro o orientou a não dizer que esteve
preso no forte e demonstrar que tinha passado por um grande sufoco. Assim ele
ficou num canto, com os olhos fechados, fingindo cansaço. O piloto do barco
desligou o motor e se aproximou dele. Antes de falar alguma coisa, observou-o
por alguns minutos. Depois indagou:
-
Você veio de onde?
João
não respondeu de imediato. Primeiro tentou se levantar. Mas simulou que estava
tonto. O piloto então segurou as suas mãos, puxou-o e colocou-o de pé. Enquanto
procurava alguma resposta para dar, viu algumas pessoas pescando numas pedras
não muito longe dali. Então falou, apontando na direção dos pescadores:
-
Eu estava numa daquelas pedras ali. Escorreguei e caí. Meus amigos viram quando
eu cheguei até o barco de vocês.
-
Ué! Então vamos deixar você lá!
-
Não. Não precisa. Eu quero é ir embora. Não estou a fim de dar esse gostinho a
eles não. Sabem que nado bem. Se eles perceberem que quase me afoguei, vai
ficar ruim pra mim.
Os
quatro pescadores olharam para João e depois se olharam. Com a cara que fizeram
parecia que não estavam acreditando nada, nada na sua história. Um deles
ameaçou falar alguma coisa, mas foi interrompido por João, sob a orientação de
Pedro.
-
Vocês podem fazer um favor? Passem perto que vou bater a mão pra eles. Só não
encostem muito, para não perceberem que estou meio derrubado.
Observaram
João falar, mas dava para perceber nitidamente que ainda não estavam engolindo
aquele papo. Pedro então, sentindo que a situação poderia ficar complicada para
o amigo, falou rapidamente:
-
Diz que um dos seus amigos é Jorge do cais.
-
Não sei se vocês conhecem Jorge. Jorge do cais. Ele está lá e é meu amigo do
peito.
Os
quatro deram um sorriso e responderam em coro.
-
Claro! Claro!
Depois,
ainda sorrindo, um deles acrescentou:
-
Porra cara, porque você não falou logo! Jorge é seu amigo? Então você é nosso
amigo também! É ou não é gente?
Todos
confirmaram entre sorrisos. Apertaram a mão de João e um deles acrescentou.
-
Então vamos até lá! Vamos?
-
Não. Não. Passa mais ou menos perto. Se ele me vir assim, vai ficar feio pra
mim. Meus amigos, eu não posso perder a pose.
-
Então, tudo bem! – falou o piloto. Deu um tapinha nas costas dele e voltou para
o leme. Ligou o motor e foi saindo devagarzinho.
Continua semana que vem...