terça-feira, 30 de junho de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 15

Continuando...
João olhou para o amigo e teve quase a certeza de que o comunista, já não era mais tão comunista assim. Continuaram caminhando. A vala não ia direto para a encosta. Ela ia fazendo curva e seguia atravessando todas as celas. Em alguns trechos saíam tubulações que despejavam esgoto no córrego. Seguiam guiados pela fraca luminosidade. De longe viram um ponto de luz que devia ser à saída desse riacho de esgoto. Pararam. João observou que na parede da vala tinha uma saliência, que dava para se sentar. Antes de falar com o amigo, se dirigiu para o local. Se sentou e ai sim, falou:
- Olavo, vou descansar um pouco.
- Descansar? Camarada, não podemos perder tempo! Olha lá a saída! João meu amigo, estamos perto de abraçar o dia e você ainda quer descansar? A nossa liberdade está logo ali! É só mais um pouquinho e pronto!
- Ô gajo, Olavo está completamente certo. A nossa liberdade está a poucos metros daqui. Tu não podes retardá-la!
- Pedro você pode ir. E você também Olavo. Tenho que botar em ordem a minha cabeça. Tem uma coisa aqui dentro que está me incomodando. Olavo, eu estudo a energia atômica.
- Está falando sério? Energia atômica mesmo? Camarada você mexe com isso?
- Eu tenho um estudo muito sério sobre isso. O meu medo é isso cair em mãos erradas. Eu falei sobre isso com uns professores do instituto de física.
- Você pode fazer uma bomba?
- Claro. Mas é ai que mora o perigo.
- Camarada, quando a gente tomar o poder, vamos convocá-lo.
- Prá quê?
- Prá quê? Camarada, o Brasil vai entrar para o time que tem bomba atômica. Aí vamos ser respeitados por todos.
- Você está maluco? Isso na mão de gente errada pode causar uma catástrofe! Esse meu estudo mostra que podemos fabricar uma ogiva nuclear com um poder de destruição dez vezes maior que as lançadas em Hiroxima e Nagasaki. Isso já é um atrativo. Ainda mais quando se pode construir com um valor infinitamente menor. Percebeu o perigo?
- Puxa cara! Você é um cientista mesmo! Por que é que você está aqui preso?
- Sei lá! Até agora não me dei conta do motivo verdadeiro! Não me considero um cientista e sim um estudioso. Mas pensando bem, eu acho que fui preso por causa de um livro.
- Um livro?
- Sim senhor! Um livro! O livro tinha na contra capa o nome de Karl Marx.
- Marx é o meu Deus! Qual foi o livro?
- Você vai até rir. Por dentro... Na verdade eu só tinha a capa e a contra capa. Por dentro tinha um livro infantil. E eu nem percebi! Sabe de uma coisa: estou gostando de ficar aqui. Já me acostumei com o fedor. Depois de muito tempo, estou me sentindo em paz aqui dentro. Mas estou com um medo danado de ir lá fora, Pedro.
   Pedro olhou para o amigo e contestou:
- O que é isto, ó pá? Se não saíres, ficarei preso eternamente aqui! Se pisares lá fora será o suficiente para que eu fique liberto! Depois podes até voltar! É loucura ficares aqui! Vais morrer de fome! É melhor então voltares para a cela! Pelo menos lá terás aquela lavagem para te alimentares. Pensas bem, ó gajo.
- Mas Pedro, aqui no esgoto eu consegui refletir bastante a cerca do meu estudo. É perigoso. É muito perigoso. Alguém lá fora já sabe do meu estudo. Eu fiz a besteira de falar com um professor. Com certeza ele já deve ter comentado com mais alguém.
- Hei João! Está falando com o morto e esqueceu de mim? Escuta só: vou dar o fora daqui! Se você quiser ficar aqui com o fantasma, que fique! Mas eu estou fora dessa, Camarada. Vou estar esperando você lá fora. Venha e se junte à nós. Venha lutar pela nossa causa. A foice e o martelo, sempre!
- Olavo, escuta só: não sou comunista, nem democrata, nem coisa nenhuma. Estou fora de qualquer ideologia. Quero a política longe de mim. É tudo uma podridão só. Hoje você está preso, amanhã você está prendendo.
- Não é bem assim, camarada. Nós temos um ideal. Nós somos Marxista-Leninista. Sou do partidão!
- João, que conversa é essa? Estás a perder tempo! A política é bonita, mas quando entra o homem,o bolo desanda! Vamos embora enquanto é tempo!
- Pedro escuta só: cheguei à conclusão que lá fora não tenho nada pra fazer. Penso que ficar aqui será a melhor coisa no momento. Mas por outro lado, estou preocupado. Tem uma coisa que está zanzando aqui dentro da minha cabeça. Antes de me prenderem eu estive com o professor Vander. Acho que ele me pediu para ir à sala dele. Será  que devo dar importância a esse fato ?
Enquanto João conversava com Pedro, Olavo foi se encaminhando para a saída. Ele olhou para trás e acenou para João. Pedro viu e comentou:
- João, o gajo está com pressa. Peça para que nos aguarde. É perigoso ele sair assim. Vamos acompanhá-lo? Não os deixe sair!
- Vai você. Acho que ele já está quase saindo.
- Mas eu não posso ficar em liberdade sem você! Vamos rápido! Ele está correndo perigo!
- Até que enfim você falou um português do Brasil! Sem sotaque nenhum!”
A conversa dos dois foi interrompida por um estampido. João se assustou e falou:
- Pedro o que foi isso?
- Parece tiro. Mas vou ver. O comunista se precipitou.
  Pedro foi rapidamente e voltou com um ar tristonho. João perguntou-lhe:
- E aí, o que aconteceu?
- Muito triste João. O gajo foi alvejado com um tiro na cabeça. Neste exato momento já deve estar sendo devorado pelos tubarões. Se ele tivesse esperado...
- Meu Deus! Não acredito!
- Então vamos lá fora, para você confirmar.
- Eu acho que não. Eu já decidi que é aqui que vou ficar. Os ratos são bem melhores que os homens. Até as cobras têm menos veneno. Esse esgoto é um paraíso!
- Que paraíso que nada! Como você vai se alimentar? Eles vão acabar te achando, João. E vão acabar com você. Daqui não sai ninguém vivo. Vamos comigo. Tem muita coisa pra você fazer lá fora. O mundo precisa dos seus conhecimentos.
- Pedro, você está aceso! A galeria está toda iluminada!
- Vamos João.
- Mas como eu vou sair daqui? Você mesmo disse que daqui não sai ninguém vivo. Eles vão atirar em mim.
- Confia e me segue.
João tomado por uma súbita coragem foi seguindo Pedro. Chegou até a saída, mas o amigo pediu que esperasse um pouco, antes de sair. Pedro sumiu temporariamente. João já estava acostumado com os desaparecimentos do amigo e sentou-se de frente para saída da gruta.
O sol iluminava todo o costão do precipício, que mergulhava num verde turquesa. Não muito distante dali, alguns barcos de pesca demarcavam o seu território. Deslizavam silenciosamente, num espelho d’água brilhante e sereno. Somente um barco se dirigia para bem próximo das pedras. De repente, parou, e, um dos pescadores lançou a âncora na água. Eles sabiam que não podiam passar da bóia que limitava a área do forte. Quem se aventurasse a ultrapassar esse limite, com certeza teria a sua embarcação crivada de balas. Atiravam primeiro para depois perguntar. João de onde estava dava para ver todo movimento dos barcos pesqueiros. Observou quando o pequeno barco parou bem na sua direção. Era o único que tinha se afastado do grupo. De repente, ele foi girando até ficar de bordo para a parede rochosa. Depois começou a balançar suavemente. João ficou olhando e bateu uma tristeza. A preocupação começou a tomar conta dele. Não sabia aonde Pedro tinha ido. Já estava demorando. Foi ficando ansioso e resolveu botar a cara para fora. Como num flash Pedro entrou na sua frente e balançou a cabeça negativamente. João estancou e sorriu aliviado para o amigo. Ansioso perguntou:
- Pedro, pra onde você foi? Pensei que tivesse ficado órfão de amigo! Olha só aquele barco ali!
- Calma. João você só vai fazer o que eu mandar. Tudo bem? Você não pode sair de qualquer jeito. Se você botar a cara pra fora, eles atiram em você. Vamos com calma. Pode deixar que  você vai sair daqui com total segurança.
- Ué! Você perdeu o sotaque de português! Não entendi!
- Isso depois você vai descobrir. 
- Espera aí. Espera aí. Descobrir o quê? Por um acaso você faz parte... Você está junto com esses policiais que me colocaram aqui? Vão me pegar de barco e me jogar em alto mar, não é?
- Nada disso, João! Você só tinha que passar por uns pequenos dissabores! Você tem muito o quê fazer por aqui! Ele assim quer!
- Quem é ele?
- Depois você vai descobrir tudo. Fica tranqüilo que o seu estudo não vai ser bem entendido e não vai se transformar em bomba atômica. Agora te prepara que está na hora de você descer esta encosta.
- Mas como? Eu não vou conseguir! Tenho medo de altura e com certeza eles vão me matar!
- Fica calmo. Escuta só: quando eu mandar você sair, pode vir calmamente. Vou indicar todo o trajeto para você descer tranquilamente. É só fazer tudo que eu mandar. Está bem?
-Acho que sim. Vou tentar.
- Coragem. Nada vai acontecer a você. Confia em mim. E principalmente em você.
Pedro mandou João sair calmamente. A saída da caverna já estava toda protegida pelo manto invisível de Pedro. João, mesmo com um pouco de medo, foi saindo vagarosamente. Olhou para os lados e nada viu. Então observou que estava dentro de um túnel. Mesmo assim ele parou e esperou para ver se os vigias iriam atirar. Como nada aconteceu, continuou andando. Respirou fundo. Chegou até a beira do precipício e parou, obedecendo a Pedro. Os soldados que estavam nas guaritas não viram João. Parecia que estava invisível. Seguindo as orientações de Pedro, João se sentou e em seguida se deitou. Cautelosamente foi descendo a encosta. Ia colocando os pés onde o amigo indicava. E assim foi até chegar à lâmina d’água.Os pescadores também não viram a sua descida. Ele não percebeu que o amigo segurava os seus pés para que não escorregasse. A pedra era bem lisa e, com certeza, ele jamais iria conseguir descer sem a ajuda de uma corda. João entrou na água sem fazer barulho. Estava bem mais seguro. E essa segurança era Pedro quem passava para ele. Foi nadando seguindo as orientações de Pedro, que pediu para que ele ficasse em total silêncio, e que apenas o escutasse. E assim foi até que chegou do outro lado do barco. Ele foi tão cauteloso, que os pescadores nem perceberam sua presença.
Os pescadores já estavam com as linhas dentro d’água, mas nada de peixe. Um senhor que parecia o líder, deu sinal para que recolhessem os anzóis. Os outros três atenderam rapidamente. E um deles comentou que não sabia o porquê de terem parado ali, tendo em vista que aquele ponto era um dos piores da região. E estavam cansados de saber disso. Recolheram os anzóis e ligaram o motor. João já estava começando a subir na embarcação e levou o maior susto. Gritou pedindo socorro.
- Socorro! Socorro! Hei! Estou aqui! Socorro!
Um dos tripulantes viu uma das mãos de João na borda do barco e gritou para os companheiros:
- Olha aqui! Tem um cara pendurado aqui no barco! Olha as mãos dele!
 Rapidamente João foi resgatado pelos tripulantes. Como a água estava muito fria, eles o cobriram com uma capa de chuva grossa.  Pedro continuava dando cobertura. Naquele momento a embarcação estava camuflada. Estavam todos invisíveis. João conseguiu sair ileso. Pedro o orientou a não dizer que esteve preso no forte e demonstrar que tinha passado por um grande sufoco. Assim ele ficou num canto, com os olhos fechados, fingindo cansaço. O piloto do barco desligou o motor e se aproximou dele. Antes de falar alguma coisa, observou-o por alguns minutos. Depois indagou:
- Você veio de onde?
João não respondeu de imediato. Primeiro tentou se levantar. Mas simulou que estava tonto. O piloto então segurou as suas mãos, puxou-o e colocou-o de pé. Enquanto procurava alguma resposta para dar, viu algumas pessoas pescando numas pedras não muito longe dali. Então falou, apontando na direção dos pescadores:
- Eu estava numa daquelas pedras ali. Escorreguei e caí. Meus amigos viram quando eu cheguei até o barco de vocês.
- Ué! Então vamos deixar você lá!
- Não. Não precisa. Eu quero é ir embora. Não estou a fim de dar esse gostinho a eles não. Sabem que nado bem. Se eles perceberem que quase me afoguei, vai ficar ruim pra mim.
Os quatro pescadores olharam para João e depois se olharam. Com a cara que fizeram parecia que não estavam acreditando nada, nada na sua história. Um deles ameaçou falar alguma coisa, mas foi interrompido por João, sob a orientação de Pedro.
- Vocês podem fazer um favor? Passem perto que vou bater a mão pra eles. Só não encostem muito, para não perceberem que estou meio derrubado.
Observaram João falar, mas dava para perceber nitidamente que ainda não estavam engolindo aquele papo. Pedro então, sentindo que a situação poderia ficar complicada para o amigo, falou rapidamente:
- Diz que um dos seus amigos é Jorge do cais.
- Não sei se vocês conhecem Jorge. Jorge do cais. Ele está lá e é meu amigo do peito.
Os quatro deram um sorriso e responderam em coro.
- Claro! Claro!
Depois, ainda sorrindo, um deles acrescentou:
- Porra cara, porque você não falou logo! Jorge é seu amigo? Então você é nosso amigo também! É ou não é gente?
Todos confirmaram entre sorrisos. Apertaram a mão de João e um deles acrescentou.
- Então vamos até lá! Vamos?
- Não. Não. Passa mais ou menos perto. Se ele me vir assim, vai ficar feio pra mim. Meus amigos, eu não posso perder a pose.
- Então, tudo bem! – falou o piloto. Deu um tapinha nas costas dele e voltou para o leme. Ligou o motor e foi saindo devagarzinho.

                               Continua semana que vem...

terça-feira, 23 de junho de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 14

Continua...
Pedro voltou e deu ok para João pegar as vasilhas. Ele acariciou-as emocionado. Já ia começar a preparar as ferramentas, quando Pedro advertiu-o.
 - Ô gajo! Não vais te alimentar? Tu não podes adoecer!
João acenou com a cabeça, mas antes retirou a pedra da parede para abrir a janela e deixar passar a claridade. Pegou o prato e pela primeira vez comeu com prazer. Naquele momento aquela lavagem parecia um manjar dos deuses. Comia deixando escapar um sorriso de satisfação.
  Do outro lado Olavo observava o amigo. Sorriu e comentou:
- É camarada! Ou você é adivinho, ou realmente fala com os mortos. Acho que vou acreditar em você e abraçar a segunda hipótese. Seria bom se o seu amigo defunto me deixasse vê-lo.
- Quem sabe! Quem sabe!
- Não é só querer ver e pronto. É preciso ter olhos para ver. Avisa a ele, João.
João preferiu não comentar a colocação de Pedro e voltou a comer. Olavo por sua vez também pegou o seu prato e sentou-se num canto e procurou almoçar. Ou jantar, tendo em vista que era apenas uma refeição ao dia. Depois de se alimentarem, começaram a preparar as ferramentas. João gostou do entusiasmo do amigo e Pedro começou a sentir simpatia por Olavo. Comentou baixinho, pensando que ele pudesse ouvi-lo:
- João, o gajo parece-me melhor... Uma pessoa melhor. Aquele jeito de jumento mudou. Você não acha?
- Pode falar alto que ele não vai te escutar não! Nunca percebi que ele parecesse com um jumento, mas eu concordo que ele está melhor sim!
- Que jumento é esse? Fala pro seu amigo aí que jumento é ele e que eu estou realmente ótimo! E estou pronto para outra rebordosa! Fala pra ele!
- João responda por mim. Diga ao gajo que ouço tudo que ele diz. E que em hipótese alguma eu quis ofender o jumento.
- Está bom Pedro. Olavo, ele mandou te falar, que o... Não é Pedro? Ele pode falar à vontade que você escuta tudo.
- Não quiseste falar do jumento...
- Não, melhor assim. Então, Olavo, pode falar o que você quiser.
- Assim está bom. Mas ele falou mais alguma coisa?
- Sem importância.
- Já estou eu acreditando no fantasma. Só assim nós dois vamos ficar pirados juntos!
Olavo falou e em seguida deu uma risada. Com a piadinha até Pedro riu. João aproveitou e fez um comentário:
- Olavo, Pedro gostou da sua piada e riu também.
- Foi mesmo? Já estou começando a gostar desse fantasma. Um camarada fantasma! Aonde já se viu uma coisa dessas! Quando sair daqui, com certeza, eu vou falar sobre isso. Os camaradas vão rir na minha cara.
- O gajo é engraçadinho! João, é melhor acelerar o trabalho. Este gajo gosta muito de jogar conversa fora. Está na cara que ele gosta de brincar.
- Está bem Pedro. Vamos ao trabalho, Olavo?
Olavo sorriu e entregou a João um pedaço do prato que ele tinha preparado para servir de ferramenta. Os dois se entregaram de corpo e alma ao trabalho. Foi mais de um mês raspando as juntas do chão. Um trabalho de pura paciência. Com medo, não raspavam com muita força, para não gastar as ferramentas. Só que por incrível que pareça elas não apresentavam praticamente nenhum desgaste. Olavo ficou meio intrigado com aquilo, já que com certeza as ferramentas deveriam ter acabado há muito tempo, mas acabou não comentando nada com João. Ele até tentou, mas não conseguiu. Alguma coisa tirou-o do foco. As suas mãos estavam bem machucadas e no momento em que ia fazer o comentário, doeu muito. Parece que tinha passado uma borracha na sua cabeça. Esqueceu completamente o fato. Pedro sorriu e colocou a cabeça mais uma vez pela parede. Observava todo o movimento que acontecia do lado de fora. Ia algumas vezes até o pátio e voltava e ficava com a metade do corpo dentro da parede e a outra para dentro da cela. Quando os guardas se aproximavam,  ele avisava. João corria para o seu lado e fechava a janela. E assim foi o mês todo e mais um pouquinho. Dava para se perceber nitidamente o desânimo se apoderando dos dois. Mas Pedro dava uma cutucada em João e esse falava com Olavo. Não tinha como, naquela altura, abandonar o projeto de fuga. Não tinham coisa melhor para fazer mesmo, então o negócio era continuar. Então no trigésimo terceiro dia veio a grande surpresa. Olavo estava sentado comendo. E João tinha atravessado para a sua cela para pegar a sua refeição. De repente alguma coisa estalou. Deu o segundo e em seguida um som oco se espalhou pelas duas celas. O bloco de pedra se soltou e caiu no fundo da vala. Olavo imediatamente chamou por João, mas ele já estava com a cara enfiada na passagem de uma cela para a outra.
-João! João! A pedra desceu! Camarada! Graças a Deus a nossa saída está pronta!
Pedro olhou para Olavo e depois para João, que estava mudo e surpreso, parecendo que não estava acreditando no que estava acontecendo, e falou sorrindo:
- Olha isto, João! O gajo falou em Deus! Ele não é ateu? Sabes de uma coisa: não se fazem mais ateus como antigamente!
- Pedro deixa pra lá. Eu nem sei se é verdade. Será que é real o que estou vendo? Será que vou sair daqui mesmo? O que você falou mesmo? O negócio agora é sair daqui!
Mal terminou de falar e já estava pulando para o outro lado. Se aproximou do buraco aberto no chão e comentou, com os dedos comprimindo as narinas:
- Meu Deus, isso fede muito! Pedro que história é essa de riacho! Isso aqui é esgoto puro!
- Mas era um córrego de águas cristalinas. Deve ser esses buracos que usam para fazerem as suas necessidades fisiológicas, que acabaram comprometendo a pureza deste córrego. Nunca vi um povo para cagar tanto! Eles querem se livrar da merda e acabam jogando em qualquer lugar! Mas isso agora não vem ao caso. Estas preocupações, neste momento, não têm importância. O que importa realmente, é fugirmos daqui. Vou entrar para fazer o reconhecimento do terreno. Isto é, do buraco.
 - Mas Pedro, você não ajudou a fazer estes buracos para que pudéssemos fazer as nossas necessidades fisiológicas?
-“É. Mas... nós fizemos uns buraquinhos. Comíamos pouco, logicamente cagávamos pouco. Estou entrando.
 Olavo olhava para João, sem entender a conversa dele com o fantasma.
- Ô camarada! Que papo é esse? Já está conversando com a alma do outro mundo de novo? Vamos entrar no buraco?
- Pedro vai entrar primeiro. Vai dar uma olhada e depois a gente entra.
Pedro entrou e a poucos metros depois botou a cabeça por entre um bloco de pedra e comentou:
- João, podes entrar que aqui dá para um homem caminhar em pé. Ou quase. É só fazeres uma pequena curvatura no pescoço. Sem problema. Venham os dois. Mas antes feches a janelinha. Coloques a pedra no lugar.
 João atravessou o vão entre as celas rapidamente. Voltou e comentou com Olavo:
- Acho que você nem entendeu a minha saída. Pedro falou pra gente descer, mas antes tinha que fechar o buraco na parede. Parece que tem alguma claridade lá embaixo. Pedro está muito escuro aí?
- Podes descer! Não é como estar debaixo do sol, mas dá para se enxergar! Está praticamente igual aí em cima! Então venham! A liberdade é um sol de primeira grandeza! Não tem escuridão alguma que possa ofuscar este brilho! Venham!”
João desceu primeiro. O mau cheiro era tanto, que fez ânsia de vômito. Depois tentou se equilibrar. A situação era aquela e tinha que encarar. Mas se tremeu dos pés à cabeça quando se lembrou de ratos e cobras. Olavo já estava do seu lado. Colocou a mão no ombro do amigo e comentou:
- Amigo será que tem rato aqui? E cobra? Tenho um medo danado dos dois!
- Camarada, não tem ratos e cobras piores do que esses que nos colocaram aqui. Se não incomodarmos esses “ilustres” moradores, vamos sair bem. Vou à frente. Está bem assim?
João apenas confirmou com a cabeça e assim foi feito. Olavo tomou à dianteira e foi rebocando João. Foram caminhando devagar e cuidadosamente até chegarem próximos de Pedro. A iluminação não era das melhores, mas dava para se enxergar alguma coisa. Olavo ficou encucado com aquilo e comentou com João.
- Companheiro. De onde será que vem essa claridade? Não está um dia ensolarado, mas está uma maravilha! Mas que eu estou achando isso estranho, eu estou!
- Não encuca não! Lembra que as ferramentas também não acabavam? Isso só pode ser coisa de Pedro!
- Será que a alma do outro mundo está mexendo com a natureza?
-Sei lá! Não quero nem pensar nisso! Tem hora que até duvido se estou vivo mesmo! Ele sempre disse que o único morto aqui era eu. E você também, ô camarada! Você já está acreditando mesmo que Pedro é um fantasma? Agora já está acreditando até em Deus!
- Calma camarada. Isso vai contra tudo que acredito de verdade. E que é a única verdade. Mas...
- Mas...
- É o seguinte. Camarada, estou realmente confuso. Se não estou morto, devo estar muito doente. Aonde já se viu um comunista convicto acreditar nessas coisas! Como disse anteriormente a você, é melhor ter um amigo imaginário. As crianças não arranjam sempre um amigo desses? Então vou acreditar até sair daqui. Depois volto a ser um comunista com as verdades absolutas do partidão.


                                 Continua semana que vem...

terça-feira, 16 de junho de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 13

continuando...
Dessa vez Olavo não fez nenhum comentário. Parecia que já estava começando a aceitar o amigo de João. Pedro ficou parado achando que ele fosse falar alguma coisa, mas como nada foi dito, ele foi marcar o lugar da passagem da água. Ficava exatamente no centro da cela. Era uma pedra um pouco maior. Pedro já estava com a cabeça enterrada no granito. Depois desceu completamente o corpo. Voltou e informou ao amigo que o córrego dava para uma pessoa, do tamanho dele, quase ficar de pé. Olavo ouvia João falar sozinho, não interrompeu em momento algum, mas ficava sorrindo baixinho. O seu olhar demonstrava o que ia no seu coração. Ria e pensava:
- Coitado. Esse tempo todo no cárcere, já fez uma ferida no seu cérebro. Está ficando doidinho. Será que vou ficar assim também?
João observou que Olavo não tirava o olho dele. Não sentiu que o sorriso dele fosse de zombaria, pelo contrário parecia que vinha com uma carga de pesar. Disse:
- Ô cara! Ainda está achando que estou ficando maluco? Escuta só! Pedro vai tirar a gente daqui! Você acha que estou falando sozinho, não é? Quando eu conseguir tirar essa laje aqui, você vai me dar razão. Vou achar o córrego que ele me indicou. Vê se melhora logo pra me ajudar.
- Tudo bem. Se tivesse uma vodka aqui, até que eu ia me recuperar muito mais rápido. Uma pequena dose e já estaria em pé.
- Você é alcoólatra?
- Não. Claro que não. Sou comunista. Mas só bebo de vez em quando. E tem que ser vodka, pois eu me sinto dentro da Rússia. E você, bebe?
- Não. Nunca botei uma gota sequer na boca. Tenho um irmão alcoólatra. É bem mais velho do que eu. Eu cresci vendo ele sempre bêbado. Acho que nunca percebeu que eu cresci do lado dele. É muito triste você ver uma pessoa se acabar lentamente. É um suicídio gota a gota. É horrível conviver com um viciado. Acho que por isso eu nunca quis beber. Quando sair daqui, vou tentar salvá-lo.
- Como? O pé de cana só pára quando ele quer!
- Mas no caso do meu irmão, ele vai parar quando eu quiser. Pode escrever aí.
- Como assim?
- Se não tivesse sido preso, neste momento o meu irmão já estaria bem. Eu e um amigo, químico, inventamos uma forma de frear o efeito devastador do álcool. Vamos chamar de dosador de álcool. A pessoa vai poder beber o quanto quiser de bebida alcoólica. E não vai ficar embriagado. O organismo vai absorver só o necessário. E ele vai ter a sensação de saciedade, mas nunca vai ficar bêbado. A bebida quando chegar ao estômago, em contato com a substância, que vou chamar de elidal, vai evaporar. Estranho não é? Vai sair em forma de gases, antes de entrar na circulação sangüínea. Somente o álcool vai evaporar. A água e outras substâncias benéficas, vão ficar. Na fórmula tem um componente que vai dar a sensação de alegria, mas sem embriagar. Quem tomar, só vai ficar com a parte “boa”, sem passar pelo excesso etílico, que faz chegar até a depressão. A pessoa vai chegar num ponto, que não vai ter mais vontade de continuar bebendo. Além de ter todos os órgãos protegidos. Adeus à cirrose hepática, causada pelo álcool.
- Que coisa de doido! Cara, você é muito doido mesmo! Isso é um sonho!
- Ô gajo! Por que não me contaste isto?
- Pedro, não tive tempo.
- Meu irmão! Agora eu saquei o seu estado mental! Cara, você está pirando! “Porra”, cara! Aonde já se viu beber um, dois, três litros de cana e não ficar bêbado! Por isso você fica falando com fantasma... Cara, você tem que ter os pés no chão. Eu custei a acreditar no seu amigo do outro mundo, mas já estava até aceitando. Mas agora estou percebendo que isso aqui está mexendo com a sua cabeça. Camarada. Nós comunistas estamos preparados para a adversidade. Podemos até tombar, mas não caímos de modo algum. Sabe por quê? O nosso partido é o nosso Deus. O Deus de vocês, não existe, é pura invenção da sua igreja. Não tem nada de concreto, de objetivo, de verdadeiro. É um velho que castiga. Que manda você para o inferno. Por isso é que tem uma porrada de gente doida. Vou ter dizer uma coisa: a morte não nos incomoda. Sabe por quê? Porque nós nos preocupamos com a vida. O partido está preocupado é com o bem estar do homem. Se você tem dois pães, você tem que dar um ao camarada que não tem nenhum. Vocês não realizam nada, porque têm medo, pois se estiverem errados, podem ir para o inferno. Alguém botou um inferno lá pra vocês. Pode ver que o imperialismo norte americano está por trás disso. Eles inventaram também uma falsa liberdade. É uma liberdade que escraviza os outros povos. Veja o que eles semearam pelas Américas. Uma corja de ditadores sanguinários. Nós, comunistas, somos sadios. Não enlouquecemos.
- Você fez um discurso e tanto. Puxou a brasa para a sua sardinha. O comunista é sadio! Não enlouquece? Me conta outra! Quer mais louco do que Stalin?
- Stalin não foi louco! Foi um grande líder! Um grande estadista. Se não fosse ele parar aquele louco do Hitler, a humanidade hoje estaria completamente afundada na miséria. Somente o povo ariano é que estaria na abastança. O restante do mundo, uma parte estaria morta e a outra escravizada.
- Olavo, Stalin foi um ditador cruel, isso sim! O comunista é cego?
- Ô gajo. Vais perder tempo com uma coisa que não pode ser mudada. Já aconteceu. Ninguém muda a história. Só se pode evitar que ela se repita.
- Tudo bem Pedro. Vou me concentrar no que tenho que fazer. Você tem razão. Essa história é a mais importante. Porque essa é a nossa história.
- Já está falando com o morto de novo? Você tem que entender, que quando a gente morre, acaba tudo. Não tem esse papo de alma, de espírito... Morreu, acabou. Eu entendo que você criou uma fantasia, para poder se manter vivo. No meu caso e dos meus camaradas, o que nos mantêm vivos, é o nosso ideal.
- É! Você já estava quase moribundo! Se não fosse Pedro, você teria morrido! Você é ingrato, cara. Você tinha que agradecer a ele.
- Olavo preferiu se calar. Mas ficou ruminando as palavras de João. Virou para o outro lado e fechou os olhos. Tinha falado muito e estava se sentindo cansado. Depois virou novamente para João e pediu um pouco d’água. Bebeu e deixou a vasilha do lado. Agradeceu, fechou os olhos novamente e dormiu.
Pedro saiu de onde estava. Preferiu ficar à parte e não participar muito da conversa dos dois. Cada pessoa tem a sua verdade. Se essa verdade não causa estrago em alguém, então tudo bem. Olhou para o amigo e apontou de novo a pedra que seria mais fácil de ser retirada. Depois comentou:
- Amigo, não te incomodes com o gajo. Ele é apenas um idealista. Não espere muito dele, pois só poderá dar o que tem. Ele só se preocupa em alimentar o corpo, mas deixa a alma morrer de fome. Um dia ele desperta.
- Tudo bem. Mas ele parece ser uma pessoa boa, você não acha?
- Parece. Eu não posso fazer um julgamento preciso. E, na realidade, nem julgá-lo. Não podemos esquecer que ele tem uma ideologia, pelo que entendi, radical. Uma ditadura, não é isso;
- Afirmativo. É isso mesmo. Uma ditadura de esquerda. Aqui, estamos vivendo ou morrendo numa ditadura de direita. É tudo a mesma merda!
- Então, sem querer julgá-lo, não dá para avaliar se o gajo é pessoa boa ou má. Mas como todos que aqui estão são “buena gente”- não é assim que o espanhol fala? – vamos acreditar que o gajo seja do bem também.
Algumas semanas se passaram. Nesse período Olavo ficou totalmente recuperado. João estava pelas tabelas e completamente desanimado. A sua ferramenta, a única, já estava bem gasta e ele ainda não tinha conseguido soltar nenhuma pedra do chão. Nem sabia dizer como a fivela do seu cinto estava resistindo tanto. Tinha momento que olhava para a ferramenta e achava que ela tinha melhorado. Como?  Aquilo era um verdadeiro milagre. Ele se sentou apresentando uma grande tristeza. Cobriu o rosto com as mãos e seus olhos se encheram de lágrimas. Pedro observando o estado do amigo foi em seu socorro.
- Fé! Fé, João! Tu vais conseguir! Ouça-me. Observaste que o gajo já está totalmente recuperado? Ela já poder ajudá-lo. Ânimo, meu amigo!
- Ânimo? Fé? Conseguir o quê, Pedro? A única ferramenta que nós temos é esta fivela, e já está bem gasta. Observou que tenho que trabalhar com extremo cuidado? Só posso raspar a parte mais macia. Mesmo assim ela não está resistindo. Com essa morosidade toda, só vamos acabar daqui a trinta anos, mais ou menos.
- Ô companheiro! Você tem que acreditar! Acredita como você acredita que está falando com uma alma de outro mundo! Nós vamos conseguir camarada. Agora somos nós dois. Nós vamos sair daqui!
- Nós dois não, nós três, ó pá! E antes que eu esqueça: alma de outro mundo é o “cacete”!
- Está bem. Pedro está “puto”, porque você o chamou de alma de outro mundo. Mas vamos ao que interessa. Você tem alguma coisa aí que possa ser usado como ferramenta?
- Não. Nem cinto eu tenho. Não sei como deixaram você com o seu. Temos que achar alguma coisa. Temos que pensar.
Enquanto os dois conversam, Pedro botou a cabeça para fora e ficou olhando o corredor, que estava na penumbra. Uma luz pálida tentava iluminar alguma coisa. Enquanto observava, Pedro pensava. De repente deixou escorregar um sorriso. Voltou para dentro da cela e falou para o amigo.
- João. Arranjei as ferramentas.
- Que ferramentas?
- O prato e a caneca que eles não recolheram.
- E o que adianta Pedro? Se eles não encontrarem o prato e a caneca, vão abrir a porta e aí a gente está frito!
- Ô camarada, o que é que você está falando?
- Acredite ou não, estou conversando com Pedro. Ele está dizendo pra gente usar o prato e a caneca...
- Até que não é má idéia! É um risco, eu sei. Mas não devemos descartar totalmente. A verdade é que a gente está ferrado mesmo! De uma forma ou de outra vamos morrer neste buraco fedorento. Então devemos arriscar!
- Você é prático mesmo, hein! Morrer... Eu não estou a fim de morrer não! Temos que usar de cautela. Não devemos chamar a atenção. É melhor que nos esqueçam aqui. Aí sim, vamos ter mais chance de fugir.
- Não fala besteira, ó gajo! A vida é feita de riscos! Mas o risco que vamos correr é muito pequeno. Eu tenho certeza que tudo vai dar certo. Podemos usar o prato e a caneca sem precisar botar a vida em risco. Escuta só. Lembra daquele gajo que saiu daqui correndo? Então, ele não retirou as vasilhas.
- E daí?
- E daí é que nunca foram recolhidas. As outras já foram trocadas algumas vezes e elas nunca foram mexidas.
- Isso mesmo! Então eu vou pegá-las!
- Agora não.
- Por quê?
- Os guardas estão chegando.
- Não! Os guardas estão chegando? Que droga! Vou rápido fechar a janela!
João passou rapidamente para a sua cela e fechou a janela que dava para o mar. Dessa vez Olavo não fez comentário algum, apenas observou e aguardou o desfecho do papo de João com Pedro, a alma do outro mundo.
Três minutos se passaram até que os guardas finalmente abriram a portinhola. Pegaram a vasilhas usadas e colocaram novas. As antigas permaneceram no mesmo lugar. Pedro então sorriu para João e colocou a cabeça dentro da parede, ali ficando até que os guardas fechassem atrás de si a porta pesada. Pensou que aquela porta que tinha ajudado a colocar ali, servia para manter pessoas ditas perigosas encarceradas até a morte. Gente sem identidade, sem nome, que era esquecida naqueles cubículos que só eram abertos depois que se passasse uma semana sem a comida e a água serem tocadas. Abriam somente para conferir o óbito. Pegavam o defunto, embrulhavam e levavam para ser queimado numa fornalha. Nenhum vestígio era deixado sobre a passagem da pessoa por ali. Quando da sua construção, os corpos eram jogados no mar.

                              Continua semana que vem...

terça-feira, 9 de junho de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 12

Continuando...
O tempo foi passando e o rapaz foi dando mostras de melhoria. João estava animado com a resposta do seu organismo. Era jovem e forte. Isso contava muito. Tanto é que não demorou muito e ele abriu os olhos. Olhou surpreso, mas não conseguiu emitir nenhum som. João aproveitou para ministrar-lhe o caldo. Pouco tempo depois, já estava se alimentando com mais vontade. Neste momento já não estava mais deitado no colo de João. Estava sentado e encostado na parede. A sua recuperação era surpreendente. João e Pedro ficaram eufóricos, quando o rapaz agradeceu. Pedro falou para o amigo:
-Graças a Deus! Viu João, a sua fé conseguiu trazer o gajo de volta! São mais dois braços para nos ajudar!
-É claro! Mas foi Deus e ele mesmo os responsáveis pela sua recuperação. Você está com razão Pedro, são mais dois braços pra trabalhar com a gente!
-Hei! Meu nome não é Pedro. Eu me chamo Olavo. Não entendi muito bem, esse negócio de trabalho. Estou sonhando? Ou já morri? Trabalhar aonde? A minha cabeça está que é só confusão. Eu devo ter morrido mesmo, pois já estou vendo até claridade. Desde que fui preso, essa é a primeira vez que vejo um pouco de luz.
Olavo pára um pouco para respirar. Estava visivelmente cansado. João então pegou a vasilha de água e deu-lhe mais um pouco e ele bebeu com mais avidez. Depois falou:
- Calma, amigo. Nós só pensamos alto. Depois você vai se inteirar do nosso trabalho. Eu e Pedro estamos tentando fugir. Pedro, é esse aqui meu amigo.
- Seu amigo? Eu entendo você, companheiro. Eu também, enterrado aqui, vivo, tive que criar o meu amigo imaginário. Só assim eu consegui me manter vivo até agora. Eu sei que se não fosse você, eu tinha morrido. Mas depois desses anos todos, não sei ao certo quanto tempo, consegui me manter lúcido. Consegui sobreviver.
- Mas esse meu amigo aqui, existe. É ele que está me ajudando a achar o caminho pra fugir desse inferno. Se não fosse ele, eu teria enlouquecido, com certeza.
- Companheiro, isso aqui deixa qualquer um com o miolo mole. Se a gente não ficar vigilante, entra em parafuso.
- João, tu achas que o gajo está cego?
- Não sei. Olavo, você consegue me enxergar direito?
- Claro. Estou vendo você perfeitamente. A gente acaba, nesse ambiente quase escuro, enxergando bem. Mesmo naquele breu que eu vivia, conseguia ver alguma coisa. Se bem que aqui não tem nada pra se ver. Mas você, pelo menos, eu sei que não é alma de outro mundo. Companheiro, vou confessar uma coisa: até que eu gostaria de ver um fantasma. Acho que seria uma boa. A solidão é uma merda. Por aqui deve ter uma porção de alma penada dando cabeçada. Devem ficar zanzando por aqui sem ter nada pra fazer. É ou não é? Companheiro, vou deixar uma coisa bem clara, não acredito em alma de outro mundo. Só existe mesmo é o trabalho e o partido comunista.
Pedro olhou com desdém para Olavo e zombou dele.
- Olha só João! Esse bunda mole está me chamando de alma penada! Esse pobre coitado morreu e ainda não se deu conta! Mas eu o desculpo. Ele não sabe o que está falando. É um pobre coitado. Falou de alma de outro mundo, depois disse que não acreditava. Eu acredito em alma de outro mundo, pois estou vendo uma.
- Calma Pedro! Ele ainda não se recuperou de todo! Vamos ter paciência com ele!
 -Ô companheiro, já te disse que o meu nome é Olavo!
- Você já disse. Só estou falando com o meu amigo... Deixa pra lá! Cara, por que é que você veio parar aqui?
- Sou comunista, camarada! Sou comunista!
Olavo falou e bateu no peito. Para uma pessoa debilitada, até que conseguiu bater com uma força razoável. Além de tentar se levantar. Ficou na tentativa. João olhou para ele e ficou admirado com aquela explosão de energia que brotou nele. Pedro olhou-o com um ar interrogativo e falou com João:
           - Que raio é isto? Nunca ouvi falar de alguém que tenha nascido em algum lugar com este nome! Que raio é isto? É algum país, ó gajo?
- Pedro, isso não é país. É uma ideologia. Tem alguns países que adotam o regime comunista. A União Soviética comanda...
- Ó raios! Agora tu me falas: União Soviética! Ó raios, do que se trata?
- A Rússia invadiu vários países vizinhos e fez deles aliados. Mas isso, eu acho, foi na marra. Democraticamente, fez todo mundo virar comunista. Eu acho que é por aí. Como não sou nada ligado em política, pode ser que esteja errado.
- A Rússia eu conheço!
- Conhece mesmo?
- Sim. Nunca fui, mas conheço pelo mapa. E a Rússia czarista, quem não conhece!
   Olavo fica olhando para João, sorri e comenta:
- Cara! Você está pirando! Eu sei que isso aqui pode deixar qualquer um maluco mesmo! Você pode até conversar com a sua alma de outro mundo, mas tenha cuidado! Veja só! O fantasma tem até nome! Uma coisa de bom tem nisso aí: agora somos três, não é camarada? Pensando bem, acho que vou arranjar um pra mim também! O camarada, não fala besteira sobre a minha União Soviética, não!
- É! Pra quem estava moribundo, até que você está muito bem! Ele melhorou muito, não é Pedro?
- Claro! O gajo vai até poder nos ajudar! Mas cuidado que ele é muito debochado.
- O que foi que a sua alma penada falou?
- Falou que você vai poder nos ajudar a fugir daqui. Falou também que você é muito debochado.
- Debochado, é? Tá bom! Mas como é que a gente vai fugir?
 João joga um sorriso na cara e, antes de falar, deixa o silêncio se prolongar um pouco. Depois, demonstrando otimismo fala, mostrando o lugar da provável fuga:
- Olavo! Vai ser fácil! Olha só! Nesse cantinho aqui passa um riacho, ou um duto para escoamento de água de chuva e esgoto. Sei lá pra que mais. Mas vai ser por aqui a nossa saída.
- Mas como é que você sabe disso?
- Foi Pedro que me contou.
- Pedro... A alma do outro mundo?
- E é mesmo. Mas ele afirma que quem está morto sou eu. Pode isso? Mas tudo bem. Estou aqui com você graças a ele. Me mostrou ponto por ponto onde eu podia abrir. Na minha cela, nos fundos, que dá para o mar, consegui abrir uma pequena janela. Por ali passa um pouco de luz e ar puro. Eu só tenho que ficar ligado para não esquecer ela aberta direto. Se os guardas virem qualquer claridade aqui,  o bicho vai pegar. Sorte que Pedro me avisa quando vem alguém.
- Estranho. Você vê mesmo esse cara? Não é invenção não?
- Não. Claro que não. Eu até custei muito a acreditar. Mas tenho certeza que o vejo sim. Ele me disse que ajudou a construir essa fortaleza.
- Agora é mais um a me chamar de alma de outro mundo.
  João sorri com a reclamação de Pedro e Olavo não entende o porquê do riso.
- Você está rindo de quê?
- Foi Pedro reclamando. Ele disse que agora são dois a chamá-lo de alma de outro mundo.
- É? Até que gostaria de vê-lo.
- Então já está acreditando em alma de outro mundo?
- Eu não disse isso!
João riu com a reação de Olavo. Pedro continuava sério, mas fez careta para Olavo. Depois disso um silêncio tumular tomou conta da cela. João ficou encostado à porta, parecendo que pensava alguma coisa. Olavo, como estava ainda debilitado, fechou os olhos. Pedro começou a andar de um lado para o outro. Depois meteu a metade do corpo dentro da parede e ficou observando o que se passava no corredor do lado de fora. Ficou um bom tempo assim. Em seguida passou o corpo inteiro para fora.  Voltou quando a porta grande começou a ser aberta. Retornou rapidamente e falou com João.
- João, vamos rápido para a nossa cela. Dois guardas se aproximam.
- Tem certeza?
- Claro gajo!
- Certeza do quê, João?
- Olavo, estou passando para minha cela. Dois guardas estão se aproximando.
- Como é que você sabe?
-Pedro me avisou. Estamos indo, depois nós voltamos. Segura as pontas aí! Vai ficar tudo escuro novamente.
João passou feito foguete pelo buraco e depois colocou a pedra tapando a janela, para barrar a claridade. Pedro atravessou a parede, sem cerimônia alguma, e se colocou do lado da porta. Menos de um minuto a botija de água e a comida já estavam dentro da cela. As vasilhas vazias foram recolhidas. Na cela que estava Olavo foi feito o mesmo procedimento. Mas antes dos guardas fecharem a portinhola, um deles fez uma gracinha para o prisioneiro.
- Aí, ó comunista safado! Resolveu comer de novo? Come mesmo, pra ficar gordinho! Os peixes não gostam de osso! Eles querem carne pra comer!
Olavo ouviu, mas preferiu não responder. Engoliu em seco a ofensa recebida e falou baixinho, para que os guardas não ouvissem.
- Safado? Você vai ver só quem é o safado, quando eu sair daqui! Quando vencermos... Irão todos para o paredão! Seus filhos da...
Abortou o palavrão, porque um acesso de tosse pegou-o de repente. Ainda ouviu quando o outro guarda falou:
- Resende! O cara tá mal! Pelo jeito esse não vai longe! Os peixes vão ter que se contentar mesmo só com os ossos! Ah! Ah! Ah!
Fecharam a portinhola e se afastaram rindo da desgraça alheia. Olavo continuava tossindo. Não conseguiu nem completar o palavrão. E a sua raiva foi crescendo, até que acabou chorando. João ouviu tudo. Esperou até os guardas saírem, meteu a cara no buraco e interrogou-o.
- Tudo bem aí? Já vamos ficar com você. Aguarde um pouco. Vou abrir de novo a janela para entrar claridade. Podemos ficar tranquilos, porque eles não vão voltar tão cedo. Não vou nem te perguntar o motivo do choro. Nós ouvimos tudo.
- O meu choro é apenas de raiva. Mas já vai passar. Eles, um dia, vão me pagar. E vão pagar caro.
- Não entendi direito o que você falou. Mas segura às pontas, que daqui um pouco estou aí. Pode deixar que vou te dar a comida. Primeiro vou comer um pouco. A comida é ruim, mas se a gente não comer fica pior.
- Não chama de comida não! Isso parece mais uma lavagem!
- Que seja. Mas essa lavagem vai botar você de pé.
Pedro não esperou João terminar de comer. Atravessou logo para a cela ao lado. Enquanto o amigo não atravessava, ele ficou tentando chamar a atenção de Olavo, achando que poderia ser visto por ele. Fez de tudo, mas ele não registrava a sua presença. Quando João passou para a outra cela, Pedro comentou:
- João, este gajo também está morto. Cheguei à conclusão que estou cá com dois ex- vivos. Como pode isso?
- Pedro, só rindo mesmo de você, cara! Engraçado que ainda não percebeu que você é o único morto aqui!
- És mesmo um brincalhão! Ô gajo, tu sabes que estou vivinho da Silva! És muito engraçado! Senti até vontade de dar umas boas gargalhadas! Vou fazer igual como fizeram os guardas: Ah! Ah! Ah! É melhor pegar as ferramentas e ir ao trabalho!

- Eu é que tenho que rir. Sabe de uma coisa: vou trabalhar que é o melhor que faço. Então, localiza logo o ponto certo! Enquanto o amigo aí não se recupera, vou fazer o trabalho sozinho.
                                      Continua semana que vem...

terça-feira, 2 de junho de 2015

UM GÊNIO QUE ENCONTROU O PARAÍSO NO ESGOTO - Parte 11

Continua...
 Pedro encosta-se na parede, coloca a cabeça dentro da pedra e vai caminhando vagarosamente. Pedra por pedra, na altura dos seus olhos, ele analisando. Na volta ele se abaixa um pouco. Na quarta pedra ele pára. Tira a cabeça da parede, olha para o amigo e dá um sorriso. João, impaciente, indaga:
-E aí, encontrou?
-Calma gajo. Pode ser que sim, pode ser que não. Mas tenho esperança que seja nesta pedra o início do caminho da liberdade. Comece a raspar esta junta. Acredita que a gente consegue.
Sem falar nada, João pega a sua ferramenta e começa a raspar as juntas das pedras. Quando ele forçou mais a fivela na massa, para a sua surpresa, ela cedeu. Começou a se soltar como se fosse farinha. Ela estava completamente solta. A pedra só não caiu, porque estava bem equilibrada em cima da outra. E se surpreendeu mais ainda, quando com a ponta da fivela fez uma alavanca e a pedra se soltou na sua mão. Era apenas uma casca de granito, que não passava de cinco centímetros de espessura. Sorriu ao constatar também, que por traz tinha um enchimento de barro. Sorriu novamente e falou para o amigo:
-Pedro. Eu acho que basta eu empurrar isso aqui, para o bloco todo se soltar.

O amigo pediu para que ele esperasse. Passou para o outro lado e foi ver se não havia nenhum perigo para o prisioneiro daquela cela. Voltou e deu ok. João forçou um pouco e sentiu que o conjunto se movia. Não demorou muito e o outro pedaço de pedra, juntamente com o bloco de barro, despencou. Por sorte o barulho não foi muito. Foi apenas um som abafado. Nesse instante o sorriso já inundava a cara dos dois. João não se conteve e tentou abraçar o amigo. Aí acabaram rindo ainda mais, tendo em vista que Pedro atravessou o corpo de João. Entre risos falaram juntos:
-Não disse que você/tu estava(s) morto? Não disse?
Desabaram no chão de tanto rir. Tentavam em vão segurar o riso. João percebeu que só a sua risada ecoava. Parou de estalo ao lembrar-se que poderia ser ouvido. De onde estava tentou fechar a portinhola, mas não conseguiu. Só se ficasse segurando. Se largasse ela se abria. Pediu ao amigo para ficar em silêncio, mesmo sabendo que ninguém poderia ver ou ouvir Pedro. Só pediu porque senão seria muito difícil engolir o riso. Finalmente ficaram em total silêncio. Esperaram algum tempo até que se confirmasse que não foram ouvidos. Depois, João se levantou e foi olhar o buraco. Do outro lado estava completamente escuro. A claridade que vinha pela portinhola era muito pouca, ou quase nada. João pediu a Pedro para dar uma olhada para ver se vinha alguém. Pedro saiu e voltou dizendo que estava tudo ok. João foi à parede que dava para o mar e tirou a pedra para deixar a claridade entrar. Pedro já tinha passado para a outra cela. Voltou e comentou:
-João, acho que o nosso vizinho está mais para lá, do que para cá. Parece-me um moribundo. Acho que o pobre não vai aguentar por muito tempo.
João olhou para o interior da cela vizinha e ficou chocado com a cena que viu. A pouca claridade que invadiu o local deu para visualizar um monte de pele enrugada jogada no chão. O homem era uma pele sem nenhum viço cobrindo um monte de ossos. João, que era filho de judeus, se lembrou de fotos que havia visto do holocausto da segunda grande guerra. Ali estava ao vivo e a cores. Sem perceber já estava com o rosto banhado de lágrimas. Tentou falar alguma coisa, mas não conseguiu. Respirou fundo e enxugou o rosto com a camisa, que de tão suja deixou-o com as faces manchadas de negro. Olhou para o amigo e desabafou:
-“Pedro o que é isso? Como pode um ser humano fazer uma coisa dessas com outro ser humano? Olha só no que transformaram esse irmão! Olha só! Um monte de ossos cobertos de pele! É um farrapo humano! Olha só essas feridas! Ele está apodrecendo em vida! Isso não pode estar acontecendo! Meu Deus, eu não posso acreditar no que estou vendo!
-Calma. Não fiques assim. Os guardas quando forem trocar as vasilhas, vendo que elas não foram tocadas, vão olhá-lo. Com certeza vão fazer alguma coisa por ele.”
-E você acredita realmente nisso? A gente nem sabe quando eles virão!
-Claro que não acredito. Só estou dizendo por dizer. É a esperança. Estou apenas querendo acreditar, para não deixar a esperança ser esquecida.
-Esperança. É sempre ela. Mas você tem razão. Se acabarem com a esperança, o que vai restar? Acho que nada. O sorriso pode acabar. E o que podemos fazer?
-Venhas para o lado de cá. Ele precisa de comida e água. Está muito mal, mas quem sabe, com a graça de Deus, ele consegue se erguer! Tu sabes que não tenho como ajudá-lo. Cuidemos dele.
Sem muita dificuldade João passou pelo buraco. Do outro lado, respirou fundo, mas acabou tendo um acesso de tosse, causado por algum agente alérgico que infestava aquele ambiente. Pegou a caneca de água que estava próxima à porta e ainda intocada, e tomou um gole. Depois foi olhar de perto o irmão de infortúnio que estava jogado num canto. Sentou-se ao lado e examinou-o. Quando virou o seu rosto, teve uma grata surpresa: ele abriu os olhos. João sorriu para Pedro e falou-lhe baixinho.
-Pedro ele está vivo! Graças a Deus, cara! Vou dar-lhe um pouco d’água. Depois vamos ver se ele come alguma coisa? O que você acha?
-Acho que está tudo certo. Mas temos que ter cuidado.
-Cuidado com o quê?
-Com os guardas. Mesmo que ele não consiga comer muito, temos que esvaziar todo o conteúdo da vasilha. Se a comida não for mexida, com certeza os gajos abrirão esta porta. Vamos logo.
-Você tem razão. Nem tinha pensado nisso.
João pegou a caneca d’água e o prato, com alguma coisa não identificada. Sentou-se ao lado do infortunado. Pegou a sua cabeça e colocou-a no seu colo. Ministrou algumas gotas de água, que ele sorveu lentamente. João olhou para Pedro e esboçou um sorriso e comentou baixinho:
-Pedro, a vida ainda não partiu. Então vou apostar que ela vai ficar.
Pedro sorriu e, sentindo que o amigo era todo esperança, falou:
-Amigo, acho que ele vai responder à sua fé. Acreditas que ele vai sobreviver e isso vai acontecer. Não és religioso, mas ages como um verdadeiro religioso.
-Pedro, a gente não pode perder a esperança nunca. Não foi você que me disse isso? Será que isso é religião? Olha só, a respiração dele não está mais tranquila? Vou dar mais um pouco de água pra ele. Depois vou tentar dar um pouco desse caldo. Parece água pura. Acho que vou dar logo um pouco.

-Não, espere mais um pouco. Isso parece água, mas não é. Vamos deixá-lo recuperar-se um pouco mais.
                                      Continua semana que vem...